terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Semi-árido

A luz amarelo-mortiça do poste deixava a rua com uma aparência meio mórbida. O frio de enregelar ossos uivava no meu ouvido. Era quase um deserto, e eu esperei em vão ouvir um barulho seco de um disparo. Eu ouvia as passadas dela à minha frente e cada passo doía, como um golpe seco, como doía. Ela ria, bêbada, e gritava andiamo, andiamo!, mas eu não conseguia alcançá-la. Talvez tivesse medo de alcançá-la, na verdade. Porque de nada adiantaria chegar até lá pra não conseguir dizer que eu a amava. Porque eu nunca consegui escrever poesia.

Não que ela ligasse pra poesia, ela não ligava pra maioria das coisas que eu ligava, e no estado em que se encontrava, ela não ligava pra absolutamente nada. Minha prima, ela. Meu amor desde que tenho lembrança. Minha melhor amiga. Que me ligou no início da noite pra dizer que o namoro tinha acabado e ela estava arrasada e ia beber umas vodcas pra variar.

Não que eu visse ali, em sua dor e embriaguez, uma possibilidade pra dizer a ela que eu a amava sem medida, desde sempre, e que ela nunca soube porque eu nunca pude dizer. Não, eu não via. Porque quando a encontrei, já bêbada, o seu olhar seco (como o golpe seco que era cada passada dela, como o vento seco que corria naquela noite árida, como seco é o som do disparo que me acordaria pra vida) me disse que ali não haveria mais nada de amor, pelo menos não por um tempo, aquele tempo que todo mundo precisa quando sofre uma desilusão, e costuma desperdiçar em todos os bares da cidade. E não, não poderia só me aproveitar de sua fragilidade pra ter uma noite tórrida de um sexo embriagado e seco, porque a ela eu amava.

Continuava a correr e eu continuava a lhe acompanhar, de longe, não queria sentir o cheiro do cabelo dela. Até que ela parou, olhou pra trás com olhos de perdição e piedade, o olhar que ela tinha vez em quando e que me dilacerava e pediu: primo, me leva pra casa.

Pude lhe oferecer um abraço, sabendo que ali estaria toda a minha poesia, transbordando dos meus braços pro corpo dela, mas era tudo que eu podia. E senti seus cheiros, tanto o perfume quanto o hálito de vodca quanto o suor da correria quanto o sangue do joelho machucado quanto o vômito da esquina anterior e amei todos aqueles cheiros num desespero silencioso e momentâneo, e fui feliz tendo todos aqueles cheiros assim tão perto de mim. E a levei pra minha casa e a deitei na minha cama e ela adormeceu de embriaguez e dor. E eu adormeci no chão, ao lado dela e sentindo a respiração dela.

Quando acordei no meio da tarde seca e cinzenta, só havia dela os cheiros deixados, cheiro de suor seco, de sangue seco, de embriaguez seca, vômito seco, lágrima seca e coração seco. Assim como era seco o disparo que ouvi e que me acordou naquele deserto semi-árido que era a tarde. Meu coração junto com o dela.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Limites ultrapassados

Nós estávamos nessa vida terrível de idas e vindas. Terminamos nos últimos três meses coisa de umas 7 vezes. Brigávamos pelos motivos mais banais, e reatávamos pelos menos importantes. Não havia nada que nos mantivesse unidos, nem nada que conseguisse nos manter separados.

Acredito que, nunca na minha vida, viverei algo tão intenso quanto o fim desse relacionamento. Agora que acredito que ele realmente tenha chegado ao ponto sem retorno, vejo que amadureci demais. Vivenciei sentimentos que jurava ser incapaz de sentir. Odiei, perdoei, odiei ainda mais e alcancei novamente o ápice do perdão. Quis vinganças, busquei serenidades e cheguei até a admitir que a situação estava fora do meu controle, coisa que, para mim, é praticamente impossível.

Depois de eventos descabidos, como eu me trancando no banheiro para não levar uma facada, ou ela correndo escada abaixo de camisola para não levar uma surra, finalmente cheguei à conclusão de que havíamos ultrapassado até mesmo o limite do irracional. Obviamente não foi uma decisão comum. Xingamos-nos, brigamos, nos agredimos fisicamente e no auge da briga começamos a nos beijar. Um beijo intenso, vívido e quente. Desses que imaginamos ser coisa de novela até nos acontecer.

Fizemos sexo. Um sexo sem limites, sem perversão e sem sentimento. Sexo puro e simples. Depois de terminado o coito eu limpei o canto da minha boca, que sangrava por causa de uns socos que ela havia me dado após desferir-lhe um tapa na cara. Olhei o sangue em minha mão e vi meu rosto marcado nas dezenas de reflexos no espelho quebrado, que milagrosamente manteve-se na moldura do guarda-roupas.

Ali eu entendi o grau de insanidade a que havíamos chegado. Sem falar nada eu retirei as malas de cima do guarda-roupa e comecei a jogar minhas roupas dentro. Ao ver a cena ela começou a pedir que eu não fosse embora, que eu era tudo que ela queria na vida. Vendo que não me abalei ante seus apelos ela se pôs a chorar e começou a me xingar. Xingou-me de uma maneira tão impiedosa que, por um milésimo de segundo ponderei recomeçar a briga que havíamos acabado de encerrar como dois animais no cio.

Quando fechei a mala e comecei a vestir a roupa que eu estava usando antes ela começou a me bater. Desvairada. Chorava, gritava, xingava e me batia. Eu estava tão decidido que parecia que não estava vivendo aquela cena. Eu apenas continuei me vestindo calado enquanto ela me batia e ficava cada vez mais fraca.

Perdeu as forças e sentou-se nua no chão, sem importar-se com os cacos de vidro espalhados, os restos de um porta-retratos com uma linda foto nossa. Botou a cabeça entre os joelhos e chorou todas as lágrimas do mundo. Um choro convulsivo e desesperador que sequer me tocou. Havíamos ultrapassado o limite há muito tempo, muito embora só ali eu tenha me dado conta.

Peguei a mala e sai porta afora. Quando cheguei ao térreo do prédio o celular tocou. Era ela. Eu apenas atirei o aparelho no espelho d'água na entrada do prédio, sem atendê-lo. Dirigi-me até o carro, acendi um cigarro e olhei pela última vez para a janela do apartamento onde morávamos. Joguei a mala dentro do carro e sai guiando sem direção até parar em um desses botecos de esquina, tão imundos na entrada que chega a dar medo de pensar em como é o banheiro.

Pedi uma garrafa de uísque e adormeci na mesa do bar, embriagado com aquele uísque falsificado.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Ele vinha, passava um tempo que eu considerava a eternidade ao avesso e depois sumia, demorava uma eternidade de verdade pra voltar. E eu sei lá o que ele fazia quando ia. Sei que ele ia e eu me afogava em Lou Reed e cigarros e, pasmem, adquiri o hábito bacana de beber uísques todos os dias, umas duas ou três doses duplas de qualquer uísque que aparecesse. E ele devia andar a fazer trilhas ou qualquer coisa pseudo-inteligente, dentro das diversas decisões pseudo-inteligentes que ele havia tomado quando éramos um casal feliz - é assustador pensar que já fomos um casal feliz e hoje temos uma relação assim-assim. Porque, assim, quando éramos um casal feliz as coisas iam em conjunto e tínhamos os mesmos gostos e vontades, e de repente não mais que de repente ele resolveu que a vida andava parada demais e tinha tanta coisa pra se ver, não acha? Não, não achava, queria só ficar por aqui, mas ele achava que tinha tanta coisa pra se ver e se foi, oh, se foi mesmo, de verdade verdadeira, e me deixou a comer unhas e enlouquecer um pouco a cada dia. Passava uns três meses em destino incerto e não-sabido e voltava com uns presentinhos fajutos, arte de hippie, e eu me desmilinguia toda porque, no fim das contas, ele havia pensado em mim por um minuto que tivesse sido. Aí passava uns dias comigo, dias loucos e cheios de vida e sexo e amor, muito amor meu, depois partia pra um outro lugar que ele tinha a certeza que precisava conhecer. E aí eu me afundava de novo em cigarros e Lou Reed, e antes eu me afogava em vodka porque era a nossa bebida, nossa amada puta russa, mas depois fui acumulando umas raivas dele e abandonei a puta russa também, quando eu me embriagava muito eu sentia o cheiro dele nela ou por causa dela ou qualquer coisa nesse sentido e me enchia de ciúme e mágoa. E quando ele me ligava eu chorava e pedia peloamordedeus que ele voltasse logo porque senão eu ia pintar meu cabelo de laranja e a parede do quarto de preto, ia fazer um corte moicano no nosso cachorro (o Zé, criaturinha agradável) e ter um filho com um desconhecido. Ele ria e perguntava se eu queria ir pra onde ele estava, pedia pra ele dizer mas ele não dizia, falava que não ia e ele suspirava e desligava o telefone. Numa dessas ele me ligou de Portugal. Não acredito, não acredito, não acredito que você foi parar em Portugal sem mim, eu berrei no telefone, abraçada com carinho à garrafa de Jackson Daniel, meu atual melhor amigo. Ele suspirou fundo fundo bem fundo e falou que o tempo todo ele quis me levar mas eu nunca quis ir, estava com os pés fincados a este apartamento de quarto-e-sala que a terra um dia há de comer junto com meus olhos porque vou pedir pra ser enterrada dentro dele ou junto com ele e ai da funerária se não houve um caixão que caiba, volto pra infernizar a vida de todo mundo. Não, não é bem assim, você quis fazer isso sozinho, eu repliquei. Ele suspirou ainda mais fundo e disse que andava cansado, sabe? Tava pensando em parar um pouco em algum lugar pra ver o que acontecia. Eu te amo, eu disse. Para por aqui e você descansa e a gente descansa junto pra sempre. Isso soou meio mórbido, descansar junto pra sempre. Você quer me matar?, ele perguntou num misto de susto e riso e eu me dei por tranquila, sorri para o Jackson Daniel e ele sorriu pra mim, porque eu sabia que mesmo em Portugal meu amor pensava em mim. Pelo menos eu achava, né, porque ele nunca voltou, já tem um ano ou mais isso, nunca voltou, nunca mais ligou, mas eu sei que anda vivo porque a mãe dele me disse da última das trezentas vezes que liguei na casa dele. A mãe dele me disse que ele ainda estava em Portugal e deve andar se entupindo de pastéis de Belém ao lado de uma portuguesa bigoduda com certeza. Enquanto isso eu continuo aqui, com meu Lou Reed e meu Jackson Daniel e meus cigarros, na decisão pseudo-inteligente de não utilizar a passagem que comprei pra ir atrás dele. Porque, você sabe, se entupir de pastéis de Belém não é uma coisa saudável de se fazer. Meus poucos amigos me dizem que devo aceitar que acabou e pronto, mas eu acho só que ele esqueceu, ou perdeu alguma coisa no meio do caminho. Prefiro acreditar nisso a aceitar o fato de que meu amor partiu. O Jackson Daniel concorda comigo. E um cutelo na cabeça da portuguesa bigoduda até que ia bem.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Casais

Caminhavam felizes pela calçadinha do parque, naquele pôr-do-sol típico de Brasília. Aquele céu encantador com suas tonalidades rosáceas, alaranjadas mesclando-se à negritude da noite que se aproximava.

Marcelo era alto, esguio e sorridente. Priscila era baixa, formosa e séria. A despeito dessa disparidade notória, formavam um casal perfeito. Suas discordâncias eram saudáveis e enalteciam as discussões do casal. Discussões das quais, não raro, ambos saiam com pontos de vista transformados, característica comum dos que estão abertos á novas idéias.

Combinavam em tudo, até mesmo nesse gosto provinciano de caminhar de mãos dadas ao final da tarde, enquanto o sol se põe. Caminhavam felizes conversando sobre a vida, o cotidiano e sobre os planos futuros.

Ele levava a vida como uma grande brincadeira o que fazia com que Priscila assumisse o papel da pessoa lúcida do casamento. Marcelo era a alegria que faltava a Priscila e ela era a seriedade que falta a ele. Uma relação simbiótica ímpar.

Nesta segunda-feira brasiliense típica eles caminhavam pelo Parque da Cidade, um casal de idosos ia à sua frente também caminhando, enquanto eram ultrapassados pelos atletas amadores, ciclistas de patinadores. Apenas caminhavam pelo prazer de estar lado a lado ao final de um dia de trabalho estressante.

- Sabe, amor...
- Hum...
- Não entendo como alguns casais não conseguem e manter juntos.
- Que papo é esse? Eu, hein...
- Ah, é que o Augusto lá do departamento tá se separando.
- Sério? Por quê? Aconteceu alguma coisa?
- Ah, eu perguntei a ele. Disse que não dá mais. Só isso.
- Como assim "não dá mais"?
- Foi o que eu perguntei. Ele só repetiu que não dava mais e saiu meio nervoso.
- E porque ele ficou nervoso?
- Foi o que eu me perguntei, mas não tive coragem de perguntar a ele. Na verdade eu acho que ele ainda gosta dela.
- Se gosta, por que vai separar?
- Porque não dá mais.
- Todo engraçadinho, você, né?
- Ah, amor. Eu penso nessas coisas e fico com medo de acontecer com a gente.
- E porque você acha que pode acontecer conosco?
- Não sei. Vai ver é só um medo bobo, mas não deixa de ser um medo.
- Eu não tenho medo.
- Não?
- Não. Quero você e pronto.
- Que bom então.

Abraçou-a. Enquanto conversavam aproximaram-se do casal de idosos que, inevitavelmente ouviu a conversa. Enquanto Marcelo e Priscila se afastavam abraçados e sorridentes, Seu João olha Dona Catarina. Abraça-a, dentro das possibilidades que seu corpo enrijecido permite e lhe beija a face.

- Foi assim que a gente conseguiu não foi, meu bem?
- Deixa de ficar ouvindo a conversa alheia, velho safado.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Noite de Bukowski

Não fiquei necessariamente surpreso quando ela anunciou, de maneira apoteótica, o fim do nosso casamento. Fiquei ofendido, de certa forma. Assim, não que o casamento tivesse salvação, estávamos num declínio vertiginoso há anos, mas eu não podia aceitar que ela me deixasse, como macho dominante que sou – ou pelo menos devia ser. Tentando recuperar um restinho de dignidade, anunciei que ela podia até me deixar e nunca mais olhar na minha cara de novo, mas quem sairia de casa seria eu. Ela riu, condescendente. “Moramos na casa dos seus pais, idiota”. Titubeei um segundo, não tinha atentado praquilo, e de repente sair de casa me pareceu sem sentido. Mas me mantive firme na decisão. “Não faz diferença. Quem deixa esse lugar que um dia, sonhadoramente, chamei de lar, sou eu”. Ela riu de novo, mais condescendente ainda, e aquilo me irritou. Peguei uma mala no armário, enfiei minhas roupas de qualquer jeito e por último arremessei meu portfólio de fotografias por cima de tudo, de um jeito propositalmente dramático. Ela me olhava e eu sei que se enchia de pena a cada segundo que passava, mas mantive minha cena cinematográfica. Fechei a mala de qualquer jeito, dei uma última olhada pelo quarto e saí sem olhar pra ela. Passei no quarto dos meus pais e inventei uma viagem de última hora, não queria preocupá-los, e fui embora. A pé, porque fugir da casa dos pais com o carro que o pai te deu não me pareceu muito rebelde.

No segundo seguinte já estava arrependido, porque chovia a cântaros e cada osso do meu corpo doía com o frio. Caminhei até um hotelzinho do centro, o atendente mal humorado da recepção me jogou num quartinho de segundo andar com a janela emperrada e o ar condicionado quebrado. O quarto cheirava a casa de gente morta. O chuveiro só tinha água gelada, então só troquei de roupa e me joguei na cama. Por um segundo pensei estar agindo feito um estúpido, mas como essa era uma sensação velha conhecida, não lhe dei atenção.

Devo ter dormido duas horas, aproximadamente. Depois de beber todos os mini-uísques que vi pelo quarto (e não eram muitos), liguei para a recepção e perguntei ao atendente mal humorado se ele sabia onde ficava o bar mais próximo. Não consegui entender uma palavra do que ele me disse, mas soou como “primeira à esquerda, segunda à direita, putas baratas”. Ainda tentei retrucar esclarecendo que não estava à procura disso, mas ele simplesmente desligou o telefone. Peguei minha câmera e saí fotografando as ruas da cidade, os postes, ainda caía uma chuvinha fina, mas eu fotografei tudo que vi pela frente. Os passantes me olhavam de maneira suspeita, acho que não era comum alguém fotografar àquela hora da noite um lugar que seria teoricamente sem atrativos. Mas a luz (ou a ausência dela) me atraiu naquele lugar.

Acabei caindo na esquina das tais putas baratas, e elas realmente estavam lá. Fui a um bar próximo, tomei uma cerveja gelada cujo primeiro gole me pareceu irreal e pedi para fotografá-las. Elas riram, meio tímidas, me perguntaram se era algum tipo de tara, expliquei que não, que era fotógrafo e queria fotografá-las, podia até pagar por foto, sei lá. Então elas se animaram, fizeram pose, comprei mais cervejas e bebemos e fotografamos por quase meia-hora, e nos intervalos para trocar o filme da máquina eu contava a elas minha história. Quando já estávamos todos meio bêbados e as putas bem menos tímidas, apareceu um cafetão sabe-deus-de-onde e me encheu de pancada. Destruiu minha máquina e os rolos de filmes, e só não destruiu minha estrutura facial porque as meninas conseguiram explicar a tempo que eu não era um tarado, nem da polícia e nem de um puteiro cybernético, era apenas um recém-divorciado que tinha a mania doentia de fotografar putas e pagar pelas fotos. Ele tomou isso como aceitável e me deixou ir embora, jogando cem reais em cima de mim pelo conserto da máquina que não teria conserto.

Voltei para o hotel bêbado, encharcado de chuva e suor do cafetão, sangrando e mancando muito. O atendente mal humorado não queria que eu subisse pelo elevador pra não manchar o carpete, armei um escândalo na recepção e ele me xingou de vários palavrões num castelhano feroz. Então ele não era brasileiro, por isso eu não entendia uma palavra do que ele dizia. Mas ele tinha cara de brasileiro, isso era o assustador. Tinha cara de José da Silva, mas não era brasileiro. Tentei dizer isso a ele, que se enfureceu ainda mais e gritou palavras de ordem em castelhano, das quais só consegui entender ‘viva la revolución!’ e ‘Guevara hasta siempre!’. Boliviano? Quando perguntei ele subiu no balcão da recepção, colocou um chapeuzinho de lã na cabeça e cantou o hino, que imaginei ser da Bolívia e preferi acreditar que seria, aquilo já tinha ultrapassado todos os limites. Ao final da demonstração de ataque de hipoglicemia ufanista, ele bradou ‘EVO! EVO! EVO!’. Ótimo, um José boliviano. Disse a ele num castelhano arranhado que era partidário de Evo Morales e da revolução indigenista (isso existia?) e pedi que me conseguisse uns mini-uísques. Ele me perguntou onde eu tinha conseguido o olho roxo, falei que na esquina das putas baratas e ele começou a guinchar feito uma hiena mutante, mas me arranjou os mini-uísques. Saiu por uma portinha lateral, eu fiquei batucando os dedos no balcão, impaciente. No calendário pendurado na parede, a foto de uma modelo muito feia mas muito gostosa, possivelmente boliviana. Quando me dei conta da data, entrei em choque. 16 de agosto. Aniversário do velho Bukowski. A informação me veio num relance, eu não me lembrava de saber a data de aniversário daquele velho safado, mas de algum jeito eu sabia que aquela era a noite de 16 de agosto, ou seja, era aniversário do Velho Buk, então era por isso que todas essas coisas estúpidas estavam acontecendo comigo. Prestidigitação cigana. Devo ter passado muito tempo com a boca aberta, em choque, porque quando o José boliviano voltou com umas vinte garrafinhas de mini-uísque voltou a guinchar feito uma hiena, apontando descaradamente da minha cara pra cara da moça do calendário. Tentei explicar que não tinha achado a moça bonita, mas ele continuou a guinchar e eu me dei por vencido, tomei as garrafinhas dele e fiz questão de subir pelo elevador.

Quando voltei ao quarto ele estava parecendo uma sucursal do inferno de tão quente. A janela estava emperrada, então era impossível abrir sem quebrar, e se eu destruísse o hotel do José boliviano ele mandaria o Evo me matar. O ar condicionado não funcionava, ou melhor, ligava mas não refrigerava o ar, soltando aquele bafo quente na minha cara. Culpa do velho Buk, eu repetia, completamente sem sentido. Que noite horrível. Fiquei me perguntando o que minha ex-mulher teria feito, se já teria dito aos meus pais que eu fugi de casa num arroubo de adolescência tardia, se já teria contado sobre o fim do casamento, se já teria viajado para as Ilhas Fiji com aquele amante sem vergonha que ela tinha e que trabalhava na Bolsa de Valores. Fiquei me perguntando o que meus pais estariam pensando de mim, se já teriam mandado as equipes de busca atrás do meu corpo apodrecendo nas ruas perigosas, escuras e fétidas do centro. Depois pensei nas putas e fiquei me perguntando porque diabos eu não tinha chamado uma delas pro hotel, elas me disseram que eram baratinhas mas o material era de qualidade, e me pareceu mesmo, cada bunda e par de peitos que nunca tinha visto antes. De todos os pensamentos, pensar nas putas foi o que mais me confortou, então fiquei com ele. Tentei limpar o filtro do ar condicionado, sem sucesso, e a única solução para aquele calor infernal seria tomar um banho no chuveiro que só tinha água gelada. Ok, banho de uma hora, banho de onanista (a puta loira me fez uma grande companhia), já me senti melhor. Tentei dormir mas não consegui, tomei os outros mini-uísques e quando passava das duas da manhã minha mãe adentrou o quarto do hotel.

__ Certo. Filho, já sabemos o que está acontecendo. É hora de voltar pra casa.
__ Não vou voltar, mãe. Acabei de declarar minha independência. Vou fazer quarenta anos e ainda moro com vocês! Isso é ridículo.
__ Tudo bem. Tudo bem. Quer morar sozinho?
__ Quero!
__ Tudo bem, a gente prepara aquele apartamento da Augusta pra você. A Linete pode ir lá duas vezes por semana pra fazer a limpeza.
__ Certo!
__ E dinheiro?
__ Vou fotografar profissionalmente. Vou vender minhas fotos.
__ Tudo bem, vou te passar uma lista depois dos nossos conhecidos em jornais e revistas e essas coisas. Entro em contato direto com eles.
__ Ótimo!
__ Será que agora podemos voltar pra casa?
__ Não! Só saio daqui direto pro meu apartamento!
__ Bom, você é quem sabe. Vou deixar diárias pagas até o final da semana. Tudo bem pra você?
__ Sim!
__ Certo, então. Boa noite, meu filho. Ligue para o seu pai amanhã.
__ Boa noite, mamãe.

Ela deu as costas e cinco minutos depois o telefone do quarto tocou. O José boliviano disse que ela deixou as diárias pagas e mais todo o estoque do bar do hotel à minha disposição, então eu devia ir até lá pegar os mini-uísques porque ele não andava em elevadores por medo de queda. Desci de roupão até a recepção, e fiquei batucando os dedos na mesa esperando o atendente voltar. Olhei de novo para o calendário, e muito embora tecnicamente não fosse mais 16 de agosto, ainda estava acordado desde que o aniversário do Velho Buk começara. Decidi comemorar.

Desci de roupão até a esquina das putas baratas e encontrei a minha loira. Comemoramos com o Velho Buk no estilo do Velho Buk até amanhecer.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Amor doentio

Trancada no banheiro Giovana gritava histericamente, enquanto seu noivo, ou àquela altura ex-noivo, socava a porta aos berros chorando desesperado. A notícia do término despertou no homem uma bestialidade tal que, quem o visse naquele estado, não acreditaria nunca que se tratava de Luís Sousa: médico cirurgião. Homem dos nervos de aço e de mente serena. Bastante admirado em seu trabalho pela sua frieza em situações de emergência.

- Vai embora, Luís. Sai daqui, não quero te ver nunca mais!
- Giovana, me perdoa. Eu perdi a cabeça... me perdoa, pelo amor de Deus.

Cacos de vidro e sangue fresco estavam espalhados pelo chão da casa, enquanto uma ponta de cigarro manchado de batom queimava um pedaço do sofá na sala, enquanto isso Luís sentava no chão do corredor, apoiando as costas na porta do banheiro. Com o rosto entre as mãos, e os braços apoiados nas pernas chorava compulsivamente, um choro desesperador e amedrontador.

Dentro do banheiro Giovana chorava encostada no azulejo frio, manchado de sangue. Um choro silencioso, como se estivesse tentando não denunciar sua presença a algum monstro que rondasse pela casa à espreita de qualquer movimento seu. Enquanto chorava, absorta em seus pensamentos não ouvia através da porta do banheiro o choro convulsivo do homem que amou durante tantos anos. Apenas chorava silenciosamente e pensava em dar Um basta à sua vida.

Luís desfazia-se em prantos e soluçava de maneira quase convulsiva enquanto pegava um caco do porta-retratos que arremessara na parede e cortava os próprios pulsos. "Se não for pra viver com ela, que tudo mais vá pro inferno", pensava enquanto cortava os próprios pulsos, sem imaginar que dentro do banheiro Giovana tomava todos os comprimidos que encontrara no armário.

Agora calado, aguardava a morte de braços estendidos, sangrando pelos cortes de precisão cirúrgica que havia feito em seus próprios pulsos, a despeito do instrumento rudimentar do qual dispunha, e se olhava na foto que estava ali perto dentro dos restos do porta-retratos, uma foto onde sorridente, carregava a então noiva em seus braços, num momento de amor primaveril e radiante. Foi então que se pôs a chorar novamente até perder a consciência. Chorava novamente aquele choro bestial e nem percebia a fumaça que preenchia o ar do corredor.

Morrera naquela mesma posição, vigiando a porta do banheiro onde estava a mulher que adorava mais que tudo nesse mundo, enquanto o fruto de seu esforço, o apartamento que dividiam, era consumido pelo fogo que se alastrava pelos tapetes, carpetes e cortinas.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

E era assim, e desde que te conheci era assim, eu pensava em ti todos os dias. Todos os dias. Qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa do meu dia, fazia me lembrar de ti. Fosse porque o céu estivesse mais azul, fosse porque ventava, fosse porque o dia era comum, qualquer coisa me fazia lembrar de ti.

Era assim. Eu te conheci, e nunca mais descansei. As coisas não têm paz.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Loucura

Isolado em sua própria mente,
Pedro vivia sua vida decadente.
Não tinha amigos nem parentes
Tinha apenas sua imaginação doente.

Em sua camisa branca ele descansa,
De braços enlaçados como uma criança.
Em seu abraço carente de esperança
Pedro revive suas lembranças.

Seu quarto acolchoado o protege,
Sua camisa branca o aquece,
Seu abraço constante o fortalece,
E a realidade dura o persegue.

Pensamentos correm inconclusos,
E perdido em devaneios obtusos
Anseia por objetivos escusos
Por não ver na vida algum uso.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O cheiro que precede a chuva

Dia normal e enfadonho no trabalho. A verdade é que eu já não ligo mais a mínima para o que acontece ou deixa de acontecer no escritório. Eu me rendi ao sistema e trabalho no modo automático executando instintivamente todas as tarefas do cotidiano. Sair do escritório é como sair de uma caverna após um século hibernando, como todos os dias úteis anteriores neste último ano.

Acontece que nem sempre foi assim. Antes havia alegria e vigor. Antes havia vida. O fato é que meu mundo tornou-se cinzento desde que meu amor morreu. Engraçado falar isso assim de maneira tão displicente: "meu amor morreu". Nunca percebi o quanto isso soa ridiculamente emotivo e pensando bem, agora que isso soa demasiadamente emotivo percebo que acabei me tornando malditamente frio: o tipo de pessoa que eu desprezava.

Caminhando até o carro sinto aquele cheiro de terra molhada que precede as chuvas após o período da seca nesta savana maldita que é o cerrado do Planalto Central. Esse cheiro me traz tantas lembranças. Encontros, desencontros, brigas, tréguas, realizações e frustrações. Dizem que isso acontece porque raramente os sentimos por estas bandas, já que a chuva é escassa por aqui, mas eu prefiro acreditar que é porque eu sou ridiculamente emotivo. Preciso resgatar alguma coisa boa do passado.

Ao entrar no carro tiro a gravata e desabotôo o colarinho em busca de ar, especialmente aquele ar com o cheiro que precede a chuva. Então fico lá sentado divagando experimentando o meu passado distante e o meu passado recente. Lembro-me de Júlia por alguns instantes e procuro afastar esses pensamentos. Ligo o carro e o dirijo até minha casa.

Lá chegando eu entro, abro todas as janelas, desligo todas as luzes e abro uma garrafa de Cabernet argentino. Fico no escuro sentindo aquele cheiro especial que me trazia de volta o passado até mesmo mais do que minha própria memória e a lembrança de Júlia inevitavelmente ressurge. Fico lembrando nossa última conversa, de quando ela me contou o quanto achava miserável por sentir pena de mim mesmo. Ela achava que eu tinha potencial, mas que eu mesmo me sabotava. Por fim disse que já não sentia mais a mesma coisa por mim, que estava gostando de outro e que estava indo embora de minha vida. Saiu sem me dar oportunidade de falar nada, não que eu quisesse, mas acho que merecia essa oportunidade. Simplesmente virou as costas e saiu. Eu fiquei na janela acompanhando a sua partida e sentindo esse mesmo cheiro que sinto agora. Foi esse o dia que meu amor morreu.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Termina o café. Apaga o cigarro. Solta a fumaça.
Ela caminha, mas num caminhar incerto, desses mesmo de quem não sabe aonde ir. Recusa uma ligação. Respira fundo enquanto olha a Lua, cheia. Num meio sorriso, lembrando de outro tempo, ela quase uiva. Não, não é momento.
De tanto caminhar, se cansa. Pára e senta num banco de praça. Afaga o peito pra conter a lágrima. E cai a chuva.
E com a chuva ela atende a ligação há pouco recusada. Num meio sorriso, mais de resignação, ela conversa. Porém nada manifesta, apenas diz sem dizer, como já é de seu costume fazer.
Volta a caminhar, agora sabendo aonde ir. E de tanto caminhar acaba chegando, ofegante, ao lugar onde não deveria estar.
Toca a campainha uma, duas, dez vezes. Ninguém vem ao seu encontro. Ninguém nunca está.
Pára diante da porta. Senta. Acende o cigarro. Solta a fumaça. E a lágrima.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Profissão: literato

"Workshop de literatura com Miguel Leal, autor dos best-sellers 'O anjo dos fracassados' e 'O amor e seus demônios'. De 22 a 26 de setembro..." e blá blá blá, eu enjoava toda vez que lia aquele anúncio no jornal. Aí meu editor me ligava, empolgadíssimo: "leu o anúncio do jornal? Vou fazer uns contatos hoje, acho que consigo veicular no rádio e na tevê também" e eu tinha mais um colapso mental. "Já te disse que não quero fazer isso, Otávio. Não posso ensinar ninguém a escrever", eu dizia, mas era vão, ele não me ouvia. Podia imaginá-lo quicando por sua sala, feliz da vida com o novo contratado de sua editora: eu. E só um ser humano que teve hiperatividade na infância e a cabeça cheia de Ritalin poderia ficar empolgado em me contratar.

Depois do rolo com a editora anterior e sua revisora mal comida, gastei uma fortuna pagando as custas do processo, os danos morais e materiais, até o tratamento psiquiátrico daquela desgraçada ficou por minha conta. Tive de tirar meu blog do ar e fiquei meses sem conseguir me publicar. Curiosamente, foi o meu período mais fértil, escrevi quase cinco romances, todos eles com qualidade acima da média. Como dizia Ana, a mulher amada, eu estava enfim beirando a perfeição.

Aí, numa tarde dessas secas e quentes de Brasília, fui até o bar do Rubens pra tomar uma cerveja e vi o Otávio por lá. A gente já se conhecia de longa data, fizemos faculdade juntos, ele seguiu e eu larguei. Sentei à mesa com ele, conversamos, relembramos velhas histórias e demos muita risada.

__ E você, Miguel? Grande literato, quem diria. Já tem previsão de quando sai livro novo?
__ Estou sem editora, Otávio. Não publico nada há quase um ano, mas estou cheio de material.
__ E como você conseguiu ficar sem editora?
__ Uma história suja aí. Envolvendo um blog e uma revisora, enfim.
__ Você fazia sexo com ela, ahn? Pode falar, garanhão, pode falar! Fez sexo com ela, tirou fotos e postou no blog, ahn?!
__ Meu Deus, Otávio, você é doente. Não foi nada disso. Só tive um problema judicial, que já está resolvido. Mas fiquei sem editora e sem dinheiro.
__ Hum. Eu abri uma editora há pouco mais de seis meses.
__ Eu soube. E aí?
__ Muito trabalho. Tem muita gente nova querendo ser publicada. Conhece a Mariana de Médicis?
__ Nunca ouvi falar.
__ Incrível. Ela é incrível. Tem 22 anos. Já publicamos dois livros dela. Quase tudo tirado da internet, ela também tem um blog.
__ Ah. Mais uma.
__ Como assim?
__ Mais uma dessas. Orgias, drogas, pais ricos que não se importam.
__ Exatamente. Maravilhoso. Maravilhoso. Isso vende que nem água.
__ Isso não é literatura.
__ Não seja purista. Enfim. Manda algum material seu, quem sabe a gente publica.
__ Pode ser.

E assim fui contratado, não por período, nem por obra. Apenas fazia parte do casting da editora, já conhecida no mercado editorial por publicar praticamente qualquer coisa que tivesse mais de cem páginas, fosse lá o que fosse. Logo depois o Otávio teve a idéia de fazer o maldito workshop, pra avaliar como andava minha aceitação com o público antes de voltar a me publicar, muito embora meu romance já estivesse pronto pra ser distribuído. E me passou o endereço do blog da tal Mariana de Médicis, que joguei fora sem me interessar em ler.

No primeiro dia de aula eu estava nervoso. Não por ter de dar aulas, falar sobre literatura nunca foi problema pra mim. Eu estava nervoso por não concordar com aquilo. Quer dizer, como eu ia ensinar a alguém como ser um bom escritor? Isso não fazia sentido. Você pode ensinar alguém a escrever, juntar palavras de um jeito que tenha significado, mas jamais vai poder ensinar alguém a ser um escritor talentoso. Cansei de explicar isso pro Otávio, mas ele simplesmente não me dava ouvidos.

Cheguei ao local do maldito workshop e, para meu terror, estava lotado. Infestado de jovenzinhos da classe tipo Mariana de Médicis, todos que escrevem em blogs e sonham em um dia ver suas reclamações sobre a vida em papel impresso exposto em uma livraria qualquer. Vários estudantes de Letras que achavam que o domínio da norma culta o faziam literatos melhores que seus ídolos, gente tipo o Paulo Coelho e Sidney Sheldon. O tipo de gente que eu abomino.

__ Pois bem. Agradeço a presença de todos vocês aqui. Gostaria de dizer que ser um escritor de talento é bem simples. Basta ter nascido com ele. Se você nasceu com talento, ótimo. Vá escrever e encaminhe seu material pra editora e colha os louros da fama. Se você não tem talento, desista. Estude pra concurso público, vá trabalhar numa loja de shopping, vire artista de tevê, celebridade instantânea, participe de um reality show ou o que valha. Mas, por favor, não escreva. É isso. Obrigado por terem vindo e tenham todos uma boa tarde.

Não fiquei pra esperar a reação, apenas dei as costas e fui embora, me sentindo dez quilos mais leve. Poucas sensações no mundo se assemelham a de alívio. Voltei a pé pra casa, uma caminhada considerável, passei na casa de Ana pra dar-lhe um beijo e lhe dizer que a amava e finalmente entrei em casa. O Otávio já estava lá, tomando um cafezinho com a minha mãe.

__ Meu editor favorito.
__ Miguel, Miguel. Como você pôde fazer isso comigo?
__ Eu disse pra não contratá-lo, Otávio.
__ Obrigado, mãe. Otávio, eu cansei de dizer que não concordava com aquilo. E continuo discordando. É absurdo. Surreal.
__ Certo. Certo. O mais importante, porém, é que a pesquisa que fizemos no final de tudo indica que sua imagem não foi assim tão afetada. Eles te acham excêntrico, e excêntrico no mundo editorial é sempre um elogio.
__ Hum.
__ Ok. Vamos devolver o dinheiro deles e pedir que eles comprem seu livro. Já autorizei a distribuição. Mês que vem teremos noite de autógrafos! Saudade?
__ Não.
__ Hum. Você é realmente excêntrico. Bem, tenho uma reunião com a Mariana, parece que querem filmar o último livro dela, isso é fantástico.
__ Sim, estou molhado de excitação.
__ Ei! Você não quer ir à reunião comigo? Ia ser ótimo se os dois maiores escritores da minha editora se conhecessem.
__ Não posso. Tenho que colocar meus pés na água morna.
__ Não seja chato. Vamos.

Pouco depois chegamos à casa da tal Mariana, uma mansão no Lago Norte. Exatamente como eu imaginava. Ela era linda, loira e pseudo-rocker, ou punk de boutique, como já ouvi por aí. Usava roupa de couro preto, um coturno pesadíssimo e uma maquiagem que a deixava com cara de defunta. Contei uns cinco piercings numa primeira olhada, e no fim de tudo cheguei à conclusão que ela me dava medo.

__ Mari, meu amor. Como você está?
__ Hum. Entrem.
__ Oi, eu sou o Miguel.
__ Sei quem você é. O cara do blog. Ele saiu do ar, né?
__ Sim.
__ Essas 'fucking' instituições...por isso eu gostava de morar em Nova York. Existe liberdade de expressão por lá.
__ E por que voltou pro Brasil?
__ Uns lances aí. Família, 'tals'.
__ Tals?
__ É.
__ Hum. Otávio, vem até aqui no meu escritório.

Puxei o Otávio de volta em direção à porta e anunciei dramaticamente que iria embora.

__ Miguel, quer parar com isso? Dê uma chance à menina!
__ Otávio, ela fala 'tals'! Eu sei lá que diabos é isso! Se eu ficar, vou fazê-la se sentir tão deprimida que aí sim haverá razão pra cara de defunta dela.
__ Por favor, cara. Em nome da nossa amizade. E pra apagar o que você fez comigo hoje à tarde.
__ Tudo bem. Mas não me responsabilizo.

Voltamos à sala e ela bebia um dry martini enquanto fumava um charuto. Tudo nela me parecia ensaiado, forçado, pensado com calma. Pedi um uísque duplo sem gelo e me sentei no canto oposto da sala, meio que acuado no sofá, rezando pra que conseguisse permanecer calado. Otávio começou a falar do filme com ela e ela parecia propositalmente desinteressada. Dizia coisas como 'whatever', 'who cares?', 'oh, gosh!' e por aí vai. Ela me dava coceira.

__ Posso te fazer uma pergunta sincera?
__ 'Go on'.
__ Por que você escreve?
__ Sei lá. Um dia, contando minha história de vida pra alguém, um cara aí, ele falou que minha vida dava um livro. Então escrevi e vendeu e achei legal fazer isso. Quer dizer, agora tenho uma profissão, meu pai vivia reclamando que eu larguei a faculdade, agora posso dizer pra ele 'sou escritora, você pode viver com isso?'. Meu pai me odeia, 'by the way'.
__ E você escreve como fala?
__ 'Ié, babe'.
__ Deus. Você sente o mínimo de paixão por isso?
__ Minhas paixões são engarrafadas, querido. O resto é consequência do líquido.
__ Literatura não é profissão, Mariana.
__ Rá, vai dizer isso pro Paul Rabbit!
__ E quem diabos é esse?
__ 'Gosh', o Paulo Coelho!
__ Otávio, agora é sério, eu vou embora.

Dei as costas e saí da sala, doido pra respirar. Quando já estava a uma distância segura, liguei pra editora e pedi pra cancelarem meu contrato. Depois liguei pra minha mãe e avisei a ela que tinha enfim saído da editora, que voltaria a ser um peso pra ela e pro Estado. Ela sorriu e disse 'tudo bem, meu filho, não há nada tão ruim que não possa piorar'. Fui pra casa da Ana e disse a ela que não aguentava mais aquilo, estava decidido a largar tudo, encarar literatura como profissão foi justamente o que fez desses últimos dois anos os piores de minha vida. Disse a ela que minha meta agora era escrever tão somente por prazer, e deixar os escritos espalhados pela casa, os visitantes poderiam ler caso se interessassem, mas nada de publicar ou assinar contratos ou autografar exemplares em livrarias lotadas de imbecis. Ela sorriu o sorriso mais lindo da face da terra e disse que finalmente eu alcançara a perfeição.


***

Texto escrito para ler ao som de "Essa moça tá diferente", do Chico Buarque. Ou qualquer música que seja uma conversa do autor com sua própria obra.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Felicidade

Stanley era um sonhador. Iludido pelo sonho de ser feliz, via em todos os caminhos impostos pela vida algum desígnio do destino para que ele entrasse no caminho correto que o levaria à felicidade.

Costumava acordar de bom humor e via em todos um leve vislumbre do que seria uma parte da felicidade. Estava convencido de que quando a encontrasse não seria aos pedaços, mas sim completa e intacta. Ele acreditava em felicidade parcial, aquilo que comumente conhecemos como momentos felizes, para ele eram apenas uma parte da felicidade que nos seria possível alcançar, mas que rapidamente se desfazia porque a felicidade quando não é completa tende a se dissipar nas agruras da vida.

Essa forma de pensamento levou Stanley a viver em sua vida uma procura incessante e incansável pela felicidade. Durante os trinta primeiros anos de sua vida fora guiado por um positivismo inigualável e alcançou sucesso em quase tudo que fez. Um ótimo salário em um trabalho invejável, o amor de uma bela mulher com a qual casou-se ainda jovem e a conquista de todos os sonhos de consumo que uma remuneração alta poderia proporcionar. Stanley tinha em mente que só seria feliz se o fosse por completo e em todas as esferas da sua vida.

No ano em que completou trinta e um anos de idade Stanley começou a se perguntar porque ainda não conseguira ser feliz. Tinha uma bela casa, uma bela esposa que o amava, estava sempre com o carro do ano e sua carreira estava em plena ascenção. O problema é que nunca, em nenhum momento, todas áreas da sua vida estiveram plenamente bem ao mesmo tempo. Quando o trabalho estava bem, acontecia alguma briga com a esposa e vice-versa.

Houve um único dia em que estava num excelente momento com sua esposa, chegando no trabalho fechou um negócio espetacular que rendeu-lhe uma promoção. Decidido a ir comemorar com a esposa pediu para sair mais cedo da empresa e, chegando ao estacionamento, seu carro não estava mais lá: havia sido roubado. Adicionalmente enquanto estava na delegacia fazendo o boletim de ocorrência sua mãe liga informando que o irmão havia sofrido um acidente de moto. Sua felicidade completa durara apenas alguns minutos.

Desde então Stanley passou a se perguntar o que era a felicidade e por que ele não conseguia ser feliz. Mergulhou em uma depressão profunda. Triste, seu trabalho já não rendia mais e começou a cometer deslizes que o levaram a uma demissão. Desempregado e à procura da resposta para o motivo de sua falta de felicidade perdeu a esposa e a vontade de viver.

Se patrimônio foi aos poucos dilapidado pelos credores e Stanley terminou seus dias deitado em um beco fétido, brigando com outros mendigos por um pedaço de carne podre. Em uma dessas brigas acabou sendo esfaqueado mortalmente. Enquanto agonizava, o sangue jorrando pela boca, Stanley vislumbrou seu passado. Então sorriu e, sentindo-se realizado, pensou: "eu era feliz e não sabia".

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Tempo errado

Aconteceu hoje de novo, sabe? Aconteceu de novo. Eu fico tão mal quando acontece, tão mal, mas isso sempre se repete. Todo dia alguém me vê e pergunta por você. E eu não me chateio por perguntarem, as pessoas não têm culpa de não saber. O que me enerva é que perguntam por você e eu respondo que não sei e daí eles encaixotam a discrição e o bom-senso e sempre perguntam com um ar fingidamente chocado se a gente terminou e eu respondo com o silêncio, talvez um aceno breve de cabeça, mas sempre em silêncio. E então eles começam a discursar sobre como éramos um casal bonito e feliz e, poxa, que pena que não estamos mais juntos, mas desejam que eu fique bem, essas coisas passam e logo eu vou encontrar outra pessoa - às vezes soa como "vá em frente, amigo, não morra, você consegue viver sem ela", como se eu estivesse morrendo de uma doença galopante por você ter me deixado. Outra coisa que me chateia é que quando eles perguntam por você imediatamente me pergunto por você também, porque assim como eles eu não faço a mais pálida idéia de por onde você anda. Ah, não, não me chateia não saber de você, me dá raiva por querer saber. Porque antes eu ainda tinha aquela coisa boba e dolorida de guardar os momentos bons, sabe? Antes ainda tinha aquela coisa de lembrar do dia ensolarado no parque ou qualquer coisa que eu tivesse como feliz na nossa história. E depois veio o tempo da amargura, o tempo de lembrar de todas as infelicidades e mágoas e dores pra ver se eu te esquecia. Depois veio o tempo mais feliz, pelo menos pra mim, que era lembrar de ti apenas como um ponto de referência, sabe como? Quando eu te inseria em uma lembrança minha era mais pra me situar no tempo e no espaço, algo como "choveu naquela noite", dizer "eu estava com ela" era o mesmo que dizer "foi um dia de calor absurdo". E agora eu acumulo todas as lembranças, boas e ruins, consigo me lembrar de cada gosto, de cada gesto, e agora sim eu pareço estar morrendo de uma doença galopante, porque antes não tinha isso de me perguntarem por você todos os dias. Engraçado, sabe do que me lembrei agora? Me lembrei que isso também me chateava no início de tudo, quando ainda estávamos "nos conhecendo e ficando ocasionalmente", passamos bem uns seis meses nessa, e as pessoas sempre me perguntavam por você e o que me dava raiva era porque de fato eu não sabia, você tinha a sua vida que não fazia parte da minha e era tão sua que eu não conseguia sequer imaginar o que você fazia quando estava longe de mim, porque estávamos apenas "nos conhecendo e ficando ocasionalmente" e eu não podia ligar só pra saber que diabos você andava fazendo. E muito embora eu soubesse que você tinha suas ocupações e não podia girar na minha órbita 24 horas por dia, meu coração apaixonado se enchia de delírios conspiratórios e sua ausência doía todas as noites, porque eu me sabia sozinho todas as noites mas não te sabia sozinha fumando um cigarro e pensando em mim antes de dormir. E aí se eu encontra alguém a primeira pergunta era sempre por você, e eu recalcado respondia "como é que eu vou saber?", ao que ouvia sempre uma piadinha na volta, algo como "é, se você não sabe, quem vai saber?". E foi assim até assumirmos o namoro, e incrivelmente as pessoas pararam de perguntar por você, justo na época que eu queria que perguntassem, porque aí eu saberia responder. Estão no tempo errado, todos eles. Dá vontade de tatuar na testa "não sei dela", pior é quando vão ao meu/que era nosso apartamento, "ah, ela não mora mais aqui", "por isso está essa zona" e por aí vai, e cada pergunta me traz uma lembrança nova, ainda mais corrosiva que a anterior, só fazendo aumentar a angústia e o tamanho da ausência. Quer saber? Da próxima vez que me perguntarem por ti, vou dizer que você morreu. De uma doença galopante qualquer. "Morreu, não é uma pena?".

quinta-feira, 24 de julho de 2008

De olores

Havia um cheiro em cada madrugada. Na primeira, o cheiro era uma mistura meio ébria de café, álcool, cigarros e maresia. Depois, com o tempo, veio o cheiro do sexo dela, do hálito amanhecido, do café requentado, sempre havia cheiro de cigarro, muitas vezes de álcool. E em mim havia o cheiro de gente doente, que morre um pouco a cada dia. Havia cheiro de flores brancas que eu sentia comigo desde o enterro de Nina, como se eu as carregasse pela eternidade em minhas mãos cansadas. E logo veio o cheiro de poeira, a poeira que se acumula sobre as coisas esquecidas na janela, em uma daquelas tardes em que estivemos a fumar e olhar o mar, tardes essas que não se repetem porque não compartilhamos cheiro algum agora. Não sinto, nunca senti o cheiro dela em minhas mãos. Lembro que ela tinha um cheiro bom na nuca, que não era perfume, era um cheiro próprio mesmo, e eu dizia que o cheiro de Clara era o meu preferido, ela ria feliz e me perguntava se eu ia engarrafar e vender. Eu, ciumento até da luz que a fazia ainda mais branca, ria e dizia que não haveria nunca de engarrafar, porque aquele cheiro estaria na nuca dela pra sempre eu haveria de senti-lo pra sempre. Tudo bem que meu 'pra sempre' era curto, mas só porque eu estava prestes a morrer, não por querer me livrar dela ou de todos os cheiros que ela tinha. Ela me dizia que eu tinha também um cheiro bom, um cheiro que não saía com banho ou a falta dele (eu tomava banho com frequência regular, só pra constar). Mas ela continuava a sentir o cheiro, e descobrimos depois de meses de uma convivência difícil e deliciosa que era o cheiro de um perfume que eu já não usava há anos. Pequenas magias. Minha casa tinha o cheiro de remédios e humores fatigados pela manhã, eu morrendo. À tarde a casa tinha cheiro de café e jazz, cheiro de tinta que eu usava pra escrever (eu sou desesperadamente formal e envelhecido, escrevo com caneta tinteiro), além do cheiro dela, um cheiro suave e marcante, que me fazia buscar seu pescoço de momento em momento. À noite a casa tinha cheiro de álcool costumeiramente, mas Clara era mundana e queria rua, sempre rua. Então eu a deixava, com o coração em um aperto só, fechando as janelas pra tentar prender o cheiro dela comigo. Às vezes eu me sufocava com o cheiro dela que era bom e se misturava aos meus que eram horríveis e corria pra beira do mar, tentando captar o cheiro de sal, e por vezes sentia junto com ele o cheiro de peixe podre do mercado ali no final da Copacana, sentia o cheiro das putas do calçadão, o cheiro de batata frita dos quiosques da orla, até cheiro de água de coco eu sentia. Todos aqueles cheiros. Voltava pra casa cansado como se tivesse corrido uma maratona e voltava a me sufocar com o cheiro dos remédios e com o cheiro da senhora dona morte que já caminhava ali perto à essa época. E um dia, um desses dias em que deixei Clara ser mundana, ela saiu e não voltou. Levou minha carteira de cigarros e levou o cheiro dela, nunca mais voltou. E enquanto o cheiro dela se esvaía o cheiro da senhora dona morte se acentuava. Ela me sorria, condescente, a senhora dona morte. Mas não, não era a hora. Senti o cheiro das flores brancas nas minhas mãos por alguns meses, alguns poucos, até o dia em que Clara voltou, era uma tarde límpida e ela voltou, branca e bela. Mas tinha um outro cheiro, não era mais o cheiro dela. Senti aquele cheiro novo na nuca dela por uma semana, sem nunca ter conseguido amá-lo. E ela se foi de novo, levando aquele cheiro estranho com ela. Nina me sorriu do espelho, senti o cheiro das flores brancas nas minhas mãos e no sorriso dela, segurei as mãos da senhora dona morte; ela toda cheirava a flores brancas. Flores brancas e mortas.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Confuso

Engraçado ver essas coisas acontecendo conosco, sentir essa distância se tornando cada vez maior. Juro por tudo que há de mais sagrado que tudo que eu quero é fazer com que as coisas dêem certo.

Não dá pra dizer "eu te amo" o tempo todo porque têm horas que tudo que eu queria era que você virasse fumaça e sumisse da minha frente, mas logo em seguida me desespero por pensar nessa possibilidade. Minha vida sem você seria por demais penosa: uma busca constante e um eterno desgosto por não te encontrar. É justamente pensando nessas coisas que eu acho engraçado te ver assim, se distanciando e eu aqui quieto na minha só sentindo essa distância aumentar.

Não faz sentido pensar que me desesperaria sem você e, ao mesmo tempo, assistir mudo e imóvel à tua partida lenta e sofrida de minha vida lenta e sofrida. Acho que cheguei nesses dias de conflito pelos quais todos passam algum dia na vida e pelos quais alguns passam a vida toda. Estou confuso a respeito do que me confunde. Não sei se estou confuso a respeito do que sinto, ou se estou confuso a respeito do que fazer! O fato é que estou confuso, e isso não tem nos ajudado. Será que você está confusa também? Seria tão mais fácil se ainda tivéssemos a mesma comunicação de antes.

Onde foram parar nosso diálogos, nossas loucuras e nossas contas telefônicas estratosféricas? Não sei e aposto que você também não sabe. Aposto que ninguém sabe. Estranho pensar nessas coisas. Estranho pensar em você sorridente no passado e te ver muda e inexpressiva hoje. Estranho achar estranho nosso relacionamento, quando antes eu o achava perfeito.

O que fazer? Pedir ajuda? A quem? A você? Você está tão perdida quanto eu, minha jovem: isso é fato.

(silêncio...)

quarta-feira, 16 de julho de 2008

o retorno

eu voltei... é voltei sim. mas não foi pra pedir perdão não... não, não... foi pra te dizer... olha pra mim! foi pra te dizer que sem a tua presença, sou uma pessoa muito, muito melhor. é, é... sabe aquela pessoa que eu sempre quis ser? é, aquela que põe água nas plantas, não fuma e consegue beber com moderação sim. uma pessoa muito melhor. até tô mais bonito. já disse pra olhar pra mim. eu voltei pra dizer, minha cara, que sem a tua presença, a tua presença desprezível, eu sou bem mais eu. bem mais eu sem ti. sem a tua influência podre. meus dentes tão até mais brancos. olha aqui ó: muito mais bonitos. e não adianta esfregar na minha cara essa foto do teu namorado não.

não dou duas semanas pros dentes deles estarem podres...

agora dá licença que eu vou de vez!

terça-feira, 15 de julho de 2008

Dois lados - O lado dele

Estava entediado. Nenhum livro novo pra ler, computador quebrado e uma manhã inteira assistindo televisão. Sentia-me um prisioneiro dentro de casa. Repentinamente em um desses arroubos que nos acometem inesperadamente levantei-me e sai de casa. Não suportava mais aquela quietude fúnebre. Sai sem destino e sem ter idéia do que procurar fora de casa, além da sensação de não estar em casa.

Incrível como eu pude passar a manhã toda deitado no sofá assistindo televisão mudando de canal e reclamando da vida. Estava um dia muito bonito. Repassei mentalmente algumas coisas que eu faltavam em casa e decidi que iria fazer pesquisa de preços. Assim passei a tarde toda entrando de loja em loja e olhando preços, até que essa tarefa deprimente me cansou. Estava indo para uma lanchonete comer alguma coisa antes de ir para casa quando começou um temporal, absurdo.

Em questão de segundos a chuva tomou conta de tudo. Corri para debaixo de um toldo em busca de abrigo, algumas pessoas chegaram junto comigo e começaram a reclamar e xingar. Eu apenas ri. O que mais se pode fazer numa situação dessas? Foi então que chegou uma garota linda. Sem esperar muito tempo procurei puxar conversa tentando parecer espontâneo:

- Como pode, né? Estava tão claro agora há pouco.
- Pois é. Quem diria que ia chover.
- O bom é que quando é forte assim passa logo.
- Ahan...
- Bem, enquanto não passa vou entrar ali naquela lanchonete pra tomar um café.
- Então tá...
- Aceita um café?
- Não, obrigado.
- Tá, o café é o de menos. Não quer ir para um lugar onde vente menos? Lá pelo menos é coberto.

Ela aceitou. Magrinha daquele jeito devia estar morrendo de frio. Chegando na lanchonete nos sentamos e conversamos bastante. Ela tinha um sorriso lindo, não conseguia deixar de reparar no quanto o sorriso dela era lindo, tanto que procurei fazê-la sorrir o tempo todo só para ver aquele sorriso iluminando aquele dia que até então estava sendo péssimo. A chuva passou e continuamos sentados. Conversando e rindo.

Quando começou a escurecer ela precisou ir embora. Ela morava num prédio longe da minha casa, mas a companhia era tão agradável que nem me importei em acompanhá-la. Lá chegando ela me convidou a subir. Neguei para não parecer muito afoito. Inventei uma desculpa qualquer e peguei o número do celular dela. Iria ligar no dia seguinte ou dois dias depois, para parecer despretensioso. Ela subiu e eu fui embora. Duas quadras depois fui assaltado. Levaram minha carteira e meu celular, junto com o celular foi-se embora o telefone dela.

Dois lados - O lado dela

Nunca esquecerei a situação em que nos conhecemos. Eu precisava comprar um sofá novo pra minha casa e, como o dia estava claro, decidi sair para olhar as vitrines a pé mesmo. Caminhar, espairecer e gastar. Eu usava uma blusinha branca de alcinha e um jeans coladinho, estava bem básica.

Então sai por aí caminhando e olhando vitrines. Acho que só olhei sofás mesmo por uma meia hora, porque lembro de ficar deslumbrada com alguns vestidos que vi nesse dia. A sensação que eu tinha era de euforia, alegria, liberdade. O céu estava limpo, de um azul fascinante. Passei a tarde toda caminhando pelas lojas da cidade e, assim empolgada, nem percebi que o céu fechou repentinamente. Chuva de verão.

Uma chuva forte e impiedosa preencheu tudo e desapareceu em poucos minutos. Enquanto chovia, fui obrigada a me abrigar embaixo de um toldo, e lá estava ele também. Sorridente, charmoso. Ria da própria impotência ante a chuva inesperada. Quando cheguei tratou logo de puxar conversa:

- Como pode, né? Estava tão claro agora há pouco.
- Pois é. Quem diria que ia chover.
- O bom é que quando é forte assim passa logo.
- Ahan...
- Bem, enquanto não passa vou entrar ali naquela lanchonete pra tomar um café.
- Então tá...
- Aceita um café?
- Não, obrigado.
- Tá, o café é o de menos. Não quer ir para um lugar onde vente menos? Lá pelo menos é coberto.

Pareceu uma ótima idéia, já que eu estava de camisa branca. Problemas femininos. Fomos para a tal lanchonete e lá, com certa descontração, Klaus conseguiu prender minha atenção. Acabei descobrindo a pessoa maravilhosa que ele era, tanto que a chuva passou e continuamos os dois sentados à mesa. Conversando e rindo.

Foi um fim de tarde ótimo. Ele me deixou no prédio onde eu morava, eu o convidei a subir e ele declinou. Disse que tinha um compromisso que não podia adiar. Pediu meu número de telefone e foi embora. Nunca me ligou, mas até hoje eu me lembro do sorriso dele. Engraçado como essas coisas acontecem, ele se tornou minha paixão platônica e eu só o vi um dia na minha vida, há dois anos.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Tempo perfeito

Sabe, eu tenho essa tendência nata a complicar as coisas. O raciocínio metódico é inerente à minha pessoa. Penso, analiso, calculo, repasso. Faço tudo isso em busca de um resultado não apenas satisfatório, porque de resultados satisfatórios são feitos os homens comuns. Eu busco a perfeição, porque tenho a ambição de alcançar a excelência. Sim, é um anseio deveras ambicioso, mas, por favor, não confunda minha ambição com ganância. São coisas que, se analisadas a fundo, podem ser completamente díspares, e acredito ser esse o meu caso.

Você deve estar se perguntando o porquê de tantos preâmbulos e eu direi agora. Tenho protelado o momento de tomar uma atitude de verdade ao que você tem considerado como "nós". A verdade, é que não existe "nós". Essa junção de duas pessoas em uma só é uma invenção patética dos românticos frustrados do passado. Veja bem, estou explicando o que, para mim, seria o "nós", e ele seria justamente isso: romantismo frustrado. Analisei a fundo essa questão e, depois de tanto pensar, firmei os pés no chão e cheguei à conclusão que tanto para mim, quanto para você deve haver um "eu e você", confesso que chega a parecer uma coisa monstruosa para a maior parte das pessoas, acostumadas a filmes água-com-açúcar veiculados por nossos meios de comunicação que tornam as pessoas cada dia mais acéfalas. Oh, desculpe-me, mas a televisão me enerva.

Bem, quando eu digo que deve haver dentro de um relacionamento o "eu e você", quero dizer que nosso relacionamento é feito por dois indivíduos diferentes, que podem pensar de maneira diferente e tomar decisões individuais. Acho que essa é a solução ideal. "Nós" é muita gente, "eu e você" somos dois indivíduos distintos.

Assim refletindo cheguei também a algumas conclusões no que tange a questões temporais. Eu e você somos duas pessoas com projetos de vida que tendem a serem construídos em torno de um pilar comum, nosso bem estar. O porquê disso? Certamente porque nos conhecemos o suficiente para nos querermos bem, e essa é uma questão que segue unicamente uma lógica passada. Por que eu haveria de gostar de quem você poderia ou não ser? Não tenho essa pretensão futura. Tenho um sentimento construído no passado e nenhum plano pro futuro. Não, não me olhe assim de maneira tão exasperada, não quero comunicar que pretendo terminar o relacionamento, muito pelo contrário, acredito que a conclusão a que cheguei é muito mais interessante do que esse pensamento comodista de quem pensa no futuro.

Os amantes que pensam no futuro fazem planos para futuro, fazem juras de amor eterno e essas outras baboseiras que no final se tornam apenas palavras ao vento. Oras a eternidade é por demais longa e eu tenho quiçá mais uns quarenta anos pela frente. Não, não possuo a eternidade, e ainda se a possuísse enlouqueceria, o momento de vida humano é breve para ser vivido em sua intensidade, e aí chegamos ao ponto que eu queria. Intensidade. Não te prometo amor futuro, porque do futuro eu não sei. O que posso te prometer é o melhor tempo que eu tenho na minha vida: o agora.

Concorda que se vivermos o agora, sem a esperança de um futuro, cada segundo nos parecerá muito mais precioso do que a eternidade que as pessoas prometem como se realmente a tivessem? Então, o que te prometo é o agora, porque agora estou aqui, agora só quero você, agora esse seu sorriso me conquista, porque agora te amo. É tão simples, não sei porque compliquei durante tanto tempo.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Sigo, busco, admito
Ao teu passo repasso
O teu ódio, a tua libido
O ócio e o descompasso

Deus, ópio nosso de cada dia
Que nos leve na leveza do pensamento
Que nos vele na eternidade do firmamento
Que as diferenças lançadas à frente
Sejam tua imagem e semelhança
Tua menina, tua esperança

Admito, busco o caminho
Repasso ao teu passo
A tua libido, o meu ódio
O ópio, meu pequeno paço.

[Escrito por Adaildo Neto e Daniela Andrade]

*

Mas quem é Adaildo Neto? O Neto veio na safra de novos amigos dessas terras acreanas tão distantes. Escreve para os blogs Grito Acreano e Excesso de Dúvidas Frequentes Sobre o Nada, dentre outros. Além de novo amigo da safra, espero que Neto seja também parceiro nesses passeios literários que surgem enquanto bebemos idéias, trocamos cigarros e fumamos cervejas.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Klaus e Flavinho

Momento inescrupuloso – Parte I

O primeiro tempo do jogo acabou e eu ainda estava divagando, pensando qual seria o motivo para Mariane ainda não ter chegado à casa da Penélope. O Flavinho me cutucou no braço e eu levei o maior susto.

– Tá tudo bem, Klaus? Você tá tão calado.
– É falta de cerveja, pega uma lá pra mim.
– Pega você, seu folgado.

Dei um cascudo nele.

– Deixa de ser mal-agradecido, rapaz.
– Agora que eu não pego mesmo.
– Deixa você me pedir cerveja de novo, pra você ver.
– Tá bom, tá bom. Tô indo...

Ele saiu. Eu levantei, dei aquela espreguiçada, como se estivesse sentado ali por séculos, depois fui pegar uma carne de sol na mesa, perto do Seu Dorival e da Dona Isadora. O Flavinho voltou com a latinha de cerveja aberta e bem mais leve do que deveria estar.

– Aqui, Klaus, a cerveja que você deixou lá na cozinha. Vê se não desperdiça.

Aquele moleque sempre foi uma figura, mas aquela superou todas. Eu não agüentei e comecei a rir. Seu Dorival me olhou daquele jeito meio desconfiado.

– Tá rindo do quê?
– Olha quem tá preocupado com a cerveja. Não toma nem leite direito e vem me dar lição de moral pra não desperdiçar cerveja.
– Flavinho, vai lá dentro e traz uma pra mim também.
– Toma essa aqui, Seu Dorival. Tá geladinha, eu tô meio empapuçado.
– Tá bom.
– Flavinho, vamos comigo na casa da Juliana?
– Ela não tá vindo pra cá?
– Tá, mas o Henrique me ligou pedindo pra ir lá ajudar eles a arrumar umas coisas, mas não disse o que era.
– Posso ir, pai?
– Se quiser ir, vai.
– Beleza.

Sai, passei na geladeira, peguei duas latinhas e entrei no carro com o Flavinho. Sei que eu não devia fazer o que eu estava fazendo, mas o Flavinho era gente boa demais e ao fazer isso eu pelo menos controlava o quanto ele bebia, do contrário ele bebia escondido até ficar bêbado como no dia do casamento de uma prima deles. A sorte dele foi que eu vi antes de todo mundo e o enfiei dentro do meu carro às escondidas. Deixei-o dormindo e voltei pra festa. Quando senti que Seu Dorival estava querendo ir embora e estava procurando por ele, voltei no carro e o acordei. Ele ainda teve a capacidade de vomitar lá dentro.

Enfim, entramos no carro e quando dei a partida ele abriu a cerveja e deu um gole. Eu o repreendi porque ele só deveria fazer isso quando estivéssemos longe da casa dele. Duas quadras depois parei o carro e ficamos lá dentro conversando.

– Quê que o Henrique quer?
– Não quer nada, seu Mané. Te trouxe aqui pra você tomar essa última cerveja, hoje. Estamos entendidos?
– Ah, Klaus. Só mais essa?
– Enquanto teu pai não liberar, eu te encubro, mas tem que ter limite.
– Mas eu já tenho dezesseis anos!
– É um problema seu com seu pai, além do mais até onde sei é proibido menor de idade beber.
– Por que você me dá bebida então?
– Porque se eu não der você vai beber escondido, e nós dois sabemos que você não tem limites.
– Ih, essa história de novo.
– É essa história de novo, seu Zé Ruela. Foi dose voltar pra casa com a tua prima e o carro cheio de vômito sem poder explicar o quê que era. Eu tive que culpar o Henrique e depois disso, ela ficava no meu pé toda vez que eu saia com ele. Tudo isso pra você não levar uma surra.
– Pô, valeu.
– Valeu uma pinóia. Você me deve sua alma, caramba.

Fez cara feia, porque sabia que era verdade. Eu o chantagearia eternamente por causa daquilo, muito embora até o momento estivesse sendo extremamente condescendente com ele e só o chantageasse para protegê-lo da própria sede insaciável.

Liguei para o Henrique para que passasse onde estávamos antes de ir para a casa da Penélope. Chegando juntos não haveria o incômodo de explicar porque fomos à casa da Juliana e voltamos separadamente.

Diversão inescrupulosa – Parte I

Ficamos tomando a cerveja, ambos calados. Até que o Flavinho falou uma besteira qualquer e eu discordei dele só para irritá-lo. O Flavinho era muito engraçado quando ficava nervoso. Começava a falar coisas desconexas e por fim ficava calado durante um longo tempo para depois, quando pensávamos que o assunto já estava encerrado, recomeçar a falar. Só que ele recomeçava a falar igual uma metralhadora quase sem recuperar o fôlego até que se esgotava e calava-se novamente dando tudo por encerrado, sem aceitar que tocassem no assunto novamente. Uma figura ímpar.

Depois de discordar dele ele começou a falar e falar e não falava nada com nada, até que o carro do Henrique apareceu na esquina com toda aquela velocidade de tartaruga maratonista, como sempre. Ele parou o carro dele ao lado do meu, olhou para o Flavinho todo emburrado e depois olhou pra minha clássica cara cínica. Balançou a cabeça e começou a rir.

– Vocês dois não mudam nunca. Vamos.
– Vai na frente aí que eu vou seguindo atrás. Se eu for na frente você vai chegar lá no final do segundo tempo.

Ele arrancou o carro e nem se deu ao trabalho de me responder. Odiava quando falavam da forma como ele dirigia. Quase que automaticamente incorporava o Airton Senna e saia ziguezagueando os carros mais lentos.

Eu havia olhado dentro do carro de maneira discreta, mas não vi a Mariane lá dentro nem a Juliana, o que achei ainda mais estranho, já que ela e o Henrique eram unha e carne, e a Juliana era Flamenguista fanática

Liguei o carro e segui em direção à casa da Penélope, andando a quase vinte quilômetros por hora. Flavinho ao invés de encerrar a discussão de sua maneira particular, resolveu tentar me importunar.

– Você fala do Henrique, mas é pior que ele.
– Olha quem resolveu falar. É o Emburradinho da Estrela. Conhece o Emburradinho da Estrela, Flávio?
– Vai te catar.
– Hahaha... Calma, Flávio. Calma! Eu tô indo devagar porque Vossa Excelência ainda não terminou a cerveja.
– Ih, nem lembrava.
– Toma mais um gole e me dá aqui. Pode ser?
– Pode, eu já tô cheio mesmo.

Ele bebeu mais um gole da cerveja e me deu a latinha, só então comecei a andar a uma velocidade compatível com a via. Indiquei a ele umas pastilhas de menta que estavam no porta-luvas havia pelo menos três meses, sem, é claro, revelar este pequeno detalhe.

– Gosto estranho. É de quê?
– Menta arábica. Sabor novo no mercado.
– Quer uma?
– Ah, não. Obrigado. Vai deixar a cerveja com gosto diferente.
– Tá bom.
– Pode ficar com as pastilhas pra você.
– Pô, valeu Klaus.

Liguei o som e logo chegamos à casa dele.

sábado, 14 de junho de 2008

O homem no espelho

Eu sei, é o que todos dizem: histórias de pessoas e espelhos já foram contadas antes, anos e anos antes de mim. Mas esse maldito espelho de última categoria que tenho no meu quarto não conversa comigo, não me leva a outras dimensões e tampouco afirma o óbvio: que existe alguém mais belo que eu. Ele só me mostra diariamente minha degradação física e meus colapsos mentais.
Eu tinha uma esposa. Quer dizer, ela não era bem minha esposa, nunca fomos formalmente casados. Mas eu a conheci aos dezenove, montamos um apartamento aos meus 21 e vivemos juntos por 13 anos, quando eu tive meu primeiro colapso mental e a deixei. Aproximadamente dois anos depois ela morreu, suicídio, a covardia mais corajosa que já vi alguém cometer. Eu já estava doente antes disso e continuo doente agora, agora que se passaram cinco anos da morte dela, e muito embora eu tenha piorado consideravelmente desde que ela se foi, meu corpo sempre se esquece de morrer. Coisa muito agradável de se fazer, por sinal. Desde que ela morreu eu me abracei à minha mortalha e tenho esperado pela Indesejada, que anda me ignorando solenemente.
Nina nasceu pra mim numa noite subterrânea na faculdade. À época eu já parecia doente, tinha um quê de sorumbático que irritava muita gente. Sempre fui uma pessoa grave e silenciosa, tão tímido quanto um ser humano podia ser, e isso parecia meio arrogante às pessoas. Ou seja, eu praticamente não tinha amigos. Cursava Filosofia, era chato e carregava comigo a maior solidão do mundo. Andava pra cima e pra baixo com meu maço de cigarros completamente amassado, um livro velho que de tão lido e relido eu já tinha decorado e o porta-uísque sempre abastecido, que passou do meu avô imediatamente pra mim por ser meu pai um abstêmio convicto e feroz. O livro era Cem Anos de Solidão, em espanhol, uma raridade que encontrei a um preço irrisório num sebo vizinho à minha casa, abandonado como eu. Não tinha lá muito respeito por ele, fazia todo tipo de anotação nas suas páginas e, por nunca deixá-lo na estante, estava todo deteriorado. Mas eu tinha um apego sobre-humano àquele exemplar, como se eu não pudesse andar sem ele. Falava pouco às aulas e, às vezes, sequer atentava para a explicação do professor, absorvido na produção do meu romance, a minha grande obra que nunca consegui concluir na vida, uma das muitas coisas às quais me dediquei e falhei miseravalmente. Ora, nem morrer eu consigo.


Nina, era de Nina que eu falava. Era uma aula de Ética III, uma das matérias mais insuportavelmente enfadonhas de todos os tempos. Metade da sala dormia e a outra metade se concentrava em qualquer coisa que não fosse aquele senhor já idoso lendo o seu plano de aula. Saí da sala sem ser notado – não que fosse uma tarefa assim difícil – e acendi um cigarro no corredor. Sorvi a fumaça como se finalmente voltasse a respirar, tomei um gole do uísque e me sentei no chão pra reler meus apontamentos. Já disse que era uma noite subterrânea, não disse? Sim, a sala era no subsolo da faculdade, e aqueles corredores silenciosos e sombrios estavam sempre à espera de uma anunciação. E ela veio.


“O coração, se pudesse pensar, pararia”


Bernardo Soares. Meu coração parou, assim, mas sem pensar. Alguém ali ou além recitava Bernardo Soares. Me ergui num salto mais ágil do que me sabia capaz e quase caí, olhando ao redor e procurando a voz, ou melhor, a dona dela.
__ Gosta de Pessoa?
Ela estava à minha frente, e parecia que sempre estivera ali, eu é que nunca havia enxergado.
__ Gosto muito de Pessoa. Mas o Bernardo é meu favorito.
__ É, eu reparei – resmunguei sem inteligência.
Era branca de uma brancura absurda, palpável, quase líquida. Meu instinto foi tocá-la, mas não pude, eu já não fazia mais sentido. Mal sabia se ela existia. Contrastando com sua brancura líquida, cabelos lisos de um negrume só, uma escuridão impenetrável.
__ Como é seu nome?
__ Breno.
__ Oi, eu sou a Nina.
Ela sorriu, e eu sorri de volta só porque o sorriso dela me encheu de uma felicidade imbecil. Ela usava um vestido de um amarelo berrante que ofuscava, e quando se aproximou pra me dar um abraço – que só recebi, sem retribuir – causou um choque visual ao se encontrar com a minha blusa preta.
__ Desculpa, mas de onde você saiu?
__ Festinha nas Cênicas. Fui ao banheiro e na volta te vi fumando. Então vim pedir um cigarro.
__ Você faz Cênicas?
__ Não, Desenho Industrial. Você pode me dar um cigarro? O que você estuda?
__ Filosofia.
__ Interessante. Por que não está na festa?
__ Não sou de festas.
Ela esquadrinhou o chão à procura do isqueiro e encontrou meu livro.
__ Um intelectual, é? Sabe, eles também frequentavam festas. Os intelectuais. Bebiam absinto e usavam drogas, essas coisas.
Dei de ombros. Ela riu, superior. Sacudiu o livro com pouquíssimo zelo, quis matá-la. Mas não pude.
__ Gosta de García Márquez, pelo visto.
__ É meu preferido. Esse é o livro da minha vida.
__ Sei. Você carrega consigo a maior solidão do mundo. Eu até gosto dele, sabe? Mas prefiro poesia.
__ Você é passional.
Sorriu novamente, com gosto.
__ É? E de onde você tirou isso?
__ De lugar nenhum. É só uma teoria.
Estava nervoso, incomodado, intimidado e crescentemente envergonhado. Ela tinha um ar insolente que me desnorteava, eu não sabia o que fazer das minhas mãos. Por fim tomei o livro e o isqueiro dela e dei as costas.
__ Onde você vai, Bruno?
__ É Breno. Meu nome é Breno. Vou voltar pra aula.
Ela me puxou pelo braço, sempre sorrindo.
__ Esquece a aula. Vem, vamos nos espalhar por aí.


Passei três dias seguidos na casa dela, vivendo de sexo e brisa, ou seja, um amor desesperado e latente. Eu me apaixonei pela sua loucura. A casa era o exemplo da desordem, o som era alto dia e noite, pessoas iam e vinham a qualquer hora e ela se alimentava de maconha. E mesmo bebendo feito uma lontra selvagem e fumando maconha como quem respira ela quase nunca dormia. Tinha o maior número de amigos que pude imaginar e pintava o tempo todo, andando pela casa em trajes sumários como se estivesse sozinha. Por vezes ela me deixava à deriva e se perdia nas coisas dela que eram só dela e continuariam sendo pelos próximos quinze anos.
Dentro do que conseguimos aceitar como sensato construímos nossa vidinha. Ou melhor, ela construiu sua vida com o resto do mundo, eu construí um castelo inacessível e nos tranquei na torre mais alta. Minha vida era ela. Meu sangue era o dela, meu respirar era o dela. Trabalhava por trabalhar, estudava por estudar, eu vivi Nina em desespero.


Dois anos depois de sua morte eu tive meu segundo colapso mental e larguei o emprego, prestes a me aposentar integralmente por invalidez. Meu pai ficou felicíssimo, claro. Pediu minha interdição e me trancou num hospital em São Paulo para tratamento. Terapia, quimioterapia, eu só queria morrer, mas não podia. Nina morta em mim doía, toda a dor do mundo, toda a solidão do mundo. Após um ano tive o terceiro colapso, me dei alta daquele hospital infernal e me mudei para o Rio de Janeiro. Fumava dois maços de cigarro por dia pra ver se apressava a hora de ir embora e bebia ininterruptamente. Escrevia, virei escritor, fui publicado e lido aqui e ali, foi no terceiro mês de Rio que o espelho apareceu. Só comprei pra me livrar do vendedor, larguei aquela monstruosidade barroca no meu quarto e não lhe dei atenção por uns quatro dias, até me ver refletido nele.
Tive o quarto colapso mental, então. Parei de fumar, reduzi drasticamente a bebida àquele cálice de vinho famigerado dos cardiologistas e tentei fazer uns amigos. Cheguei a viver um pseudo-amor com uma moça branca e bela que hoje me odeia violentamente. Adiei a morte enquanto me foi possível, mas por um motivo qualquer que ainda agora ignoro completamente, pois não havia vontade, não havia apego nenhum à vida. Continuei a amar Nina de um jeito tão doentio e agalopado que me parecia errado não estar com ela.


Hoje, hoje tive meu quinto e último colapso mental, eu acho. Cheguei em casa mais embriagado que uma marmota mutante e vi Nina branca, incrivelmente branca, no espelho. Sem pensar uma vez sequer eu o destruí, juntando seus destroços sobre a cama, e me deitei ao seu lado, todas as pílulas nas mãos ensanguentadas.


“O coração, se pudesse pensar, pararia”. Acho que pára dessa vez.





*

A história de Breno, meu personagem mais longevo, está fragmentada em textos desse blog, e ainda resta uma lacuna, referente ao período que ele viveu com Clara no Rio de Janeiro. Se for do seu interesse, acompanhe sua história, lendo os seguintes textos, nessa ordem: Canção Desesperada, Amores possíveis I e Baixo Rio. Só não se incomode com sua morte. Era uma morte anunciada, como o título de um livro do seu literato preferido.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Cretino conquistador

Ela sempre foi muito bonita, isso eu não tenho como negar, foi assim que a conheci: tentando conquistá-la. Ela estava em um vestido preto que mostrava o corpo esguio e aquele busto fenomenal. Estava conversando com uma senhora de uns quarenta anos excessivamente bem vestida para a ocasião e com uma maquiagem que parecia inspirada em bailes de carnaval. Aproximei-me com um copo de uísque na mão.

– A festa está bem animada, não acham?

Ambas me olharam com desdém e voltaram a conversar como se eu não estivesse ali. Eu fingi que aquilo não me abalou.

– É... nem todo mundo está animado. Frigidez é um problema sério. Tchau, minhas queridas.

A senhora fingiu que não era com ela, mas Mariane não resistiu. Ofendeu-se. Eu já estava virando de costas e saindo quando ela falou:

– Tchau, palhaço.

Voltei, abri o sorriso mais cretino que uma pessoa consegue simular e olhando nos olhos dela disse:

– Pelo menos você viu alguma graça em mim, já eu não posso retribuir a afirmação.

Sai sem esperar resposta e ela ficou sem reação. Ela sabia que era linda e ouvir de um homem que ela não o atraía era como uma bomba que seu orgulho não seria capaz de suportar.

Continuei: bebi, dancei e flertei com várias mulheres. A festa estava realmente bastante animada e cheia de mulheres bonitas. Dancei um xote com uma das mulheres mais bonitas da festa – minhas aulas de forró estavam realmente surtindo efeito. Ao fim da música eu pedi licença, fui ao banheiro e de lá ao bar, pra pegar uma água tônica. No caminho, Mariane me puxou pelo braço.

– Você é sempre assim?
– Assim como?
– Sem educação.
– Só quando a ocasião pede.
– Olha... foi mal, me desculpe mas eu estava já estava nervosa com o papo chato daquela senhora.
– Tudo bem, agora com licença.
– Ei, você vai aonde? Estamos conversando.
– Ah, estamos? Eu pensei que o assunto havia encerrado.
– Prazer meu nome é Mariane.
– Klaus.
– Nome diferente.
– Meu pai sempre achou bonito. Não gosto muito dele, mas como não tenho outra opção, acabo aceitando.
– E então, Klaus. De onde você conhece o Henrique.
– Estudamos juntos na faculdade. Ele comprava os trabalhos dele de mim, sabe.
– Que horror.
– O quê?
– Você colaborar com isso: vender trabalhos universitários.
– Só isso? Eu vendo até hoje. É um dinheiro fácil que eu não dispenso de forma alguma.
– Um absurdo isso.
– Deixa pra lá. E você de onde conhece o Henrique?
– A Juliana é minha prima.
– Ah, a Juliana é sua prima?
– É sim.
– Que interessante.
– Por quê?
– Porque a Juliana é praticamente minha vizinha. Somos muito amigos e ela freqüenta bastante a minha casa. Aliás, fui eu quem fez as apresentações dos dois. Engraçado eu nunca ter te visto por lá.
– Bem, não somos extremamente amigas. Somos primas e só. Ela me chamou pra vir à festa hoje porque minha mãe passou na casa dela e eu fui junto. Como não nos víamos há muito tempo me chamou pra festa.
– Ela e o Henrique são perfeitos, não? É o casal mais bacana que eu conheço.
– Nossa que termo.
– O quê?
– Bacana...
– O que tem?
– Tão... chulo.
– É meu jeito, se não te agrada...
– Você é sempre assim?
– Assim como?
– Sem educação.
– Só quando a ocasião pede.

Achei que a conversa deveria terminar ali mesmo e fui saindo, ela segurou meu braço novamente e me puxou de volta.

– Você é tão bonito, por que age desse jeito?
– Por que não agir desse jeito?

E fiz novamente o sorriso cretino. Aliás, esse sorriso cretino é minha marca registrada. Um sorriso de canto de boca com os olhos meio apertados: um charme só. Ela aparentemente ficou horrorizada com a resposta que porque soltou meu braço e ficou com aquele olhar vago, fixando o vazio. Acho que ficaria assim por um minuto inteiro se eu não tivesse intervido.

Aproximei dela, segurei seu rosto com uma mão enquanto colocava a outra na sua cintura. Ela pareceu despertar com um choque e assustar-se, mas não reagiu. Apenas me olhou. Eu olhei seus olhos, sua boca, aproximei meu rosto, puxei o corpo dela contra o meu e parei. Nossos lábios estavam bem próximos.

– E agindo assim, eu agrado?

Foi então que nos beijamos. Um beijo demorado e lento. Um beijo apaixonado. Enquanto a beijava eu acariciava seus cabelos e passava a mão por suas costas. Que pele macia, que cabelos maravilhosos. Acho que nunca vou esquecer a sensação que foi nosso primeiro beijo. Uma sensação deliciosa que sinceramente, nunca mais experimentei desde então.

Terminado o beijo permanecemos abraçados, nos olhando em silêncio. Estávamos nos admirando por alguns momentos. Ela era realmente linda e tinha um jeito muito carinhoso.

– Então...
– Então o quê?
– Isso é porque você não viu graça nenhuma em mim?
– Você viu em mim, isso me basta.
– Você é muito cheio de si.
– Eu transbordo egocentrismo.
– Percebi.
– E aproveitou também.
– Jesus amado, você não consegue deixar de ser assim nem um instante? – disse sorrindo.
– Assim como, sem educação?
– Não. Convencido.
– Ah, eu achei que eu era sem educação. Você muda de idéia muito rápido.

Ela sorriu. Pediu licença, disse que voltava e saiu em direção ao banheiro. Eu olhei o relógio, fui até a saída e pedi ao manobrista que trouxesse meu carro. Voltei à festa para me despedir do Henrique e da Juliana. Retornei à saída onde meu carro já estava esperando, dei uma gorjeta ao manobrista e fui embora.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Amores possíveis II - Lígia e Bárbara

Então o plano.

Não, não havia plano. Era só estímulo, manifestação, sopro, indo em todas as direções, num caminhar descontínuo e sem limite. E havia a esperança, todas as esperanças unidas no desejo latente de matar a sede. A fome. Tudo que consome e cega. E consumida e cega eu ia, faminta dos gostos dela, desconhecidos e cravados na minha pele, minha língua, meu suor que banhava a cama noite após noite. E noite após noite meus dedos a transformavam em vítima e cúmplice desse crime ensopado, e a cada amanhecer de cada dia eu era ela, ainda que ignorando por completo seu nome. E andava nos seus passos por não encontrar meus sapatos ou o que tivesse valia, eu ia.

Então a forma.

E havia um dia de luz, uma luz clara de fechar olhos. E de olhos fechados eu ia até cruzar com ela, num único respirar do universo. Todos os meus poros se abriram como que para absorver o perfume que ela exalava impunemente, e naquele momento de luz e dor eu fui dela, e continuei sendo dela, todos os dias em que eu refazia aquele caminho pra cruzar com o olhar dela, esperando que de olhos abertos ela caminhasse e pudesse me ver, mendiga dos carinhos dela. E a segui, e os dias em que ela não caminhava pela nossa estrada de tijolos eram longos e vazios, daquela espera silenciosa e voraz pelo dia seguinte. Eu ia.

Então o espelho.

O espelho me julgava e me mentia todos os dias, porque eu contrariava a natureza por desejar aquela criatura e por saber que o sexo dela era o mesmo do meu. E não só o espelho como o dia, a noite, a chuva e todos os olhares me julgavam por esse desejo errado porém latente e de uma verdade tão absoluta quanto absoluta era a equidade entre o sexo meu e o sexo dela. Mas contrariando qualquer julgamento eu continuava a esperar, e cada vez mais sedenta do sexo dela igual ao meu junto ao meu eu ia.

E de ir acabei cegando pro que devia ter visto, e devo ter cruzado com ela em vários outros caminhos, mas a esperava sempre no lugar que julgava nosso, por tê-la visto lá a primeira vez. E não vi caminhos outros e não vi mais a ela e a mais nada. Apenas ceguei.

Então a visão.

Ela veio caminhando por um caminho novo, num dia sem luz de fechar olhos, num dia de se caminhar seguramente por um caminho que se vê, se conhece e se deseja. Ela veio. Eu não pude ir até ela porque não sabia se ainda podia andar, eu apenas esperei. Ela veio.

E começou a falar.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Prato frio

Eu até poderia fingir que nunca doeu. Que nunca feriu. Eu podia fingir todas as coisas pra você, de fato poderia, e até quis por muito tempo. Aliás, penso que consegui por muito tempo, pois ainda ferido você tornava a me ferir. E não havia em meus atos ou palavras sinal nenhum de que tuas malignidades arrancavam lentamente, de uma lentidão suave e cruel, todos os amores que senti por ti e parti em milhares de pedaços, esperando em vão que de mim nunca saíssem. Mas estava em meu olhar o tempo todo, aquele desespero silencioso de quem vê a chaga mas não pode curá-la. Ou talvez não queira, na esperança de que outro, no caso a mulher amada, o faça. E é incrível olhar para trás agora, abrindo violentamente a cortina do tempo, e ver as chagas de anteontem ainda abertas. E somente te vendo agora, nua e sem vida, é que volto a me sentir vivo, como se milagrosamente eu voltasse a respirar, após um período longo e obscuro com a cabeça dentro d'água. E todas as palavras que eu quis um dia te dizer me vêm com facilidade tamanha, como se eu tirasse a mordaça que me censurou por todos esses anos. Posso até ver com clareza os seus erros, e consigo facilmente elencá-los em grau de maldade e violência. Eu estive cego durante anos, anos a fio em que você esteve a me trair, a mentir, a enganar, a sugar. Eu estive mudo durante todo esse casamento que você conseguiu, com sua fleuma de negociante, transformar em um arranjo, num jogo de interesses tão mesquinho quanto você mesma. Porém me veio a anunciação, minha cara, aquilo que chamamos precariamente e sem fé de Divina Providência. E nesta noite argentina não vou te deitar à minha cama, hei de te deixar banhada em sangue. E sairei, e rodarei, e viverei. E quanto eu voltar tu ainda estarás à minha espera, ainda nua e banhada em sangue, e como nunca silenciosa e devota.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Tempos apaixonados, tempos apaixonantes

Ontem eu me peguei pensando nela novamente. Dizer isso soa muito engraçado porque não existe ELA especificamente, compreende? Acho que estou vivendo novamente um daqueles momentos mutantes da vida, onde nos pegamos nostálgicos. Relembramos tudo de bom que nos aconteceu e começamos a pensar e pensar e pensar. Assim pensando, pensando e pensando acabamos sentindo saudades.

Ontem eu estava com saudade dela. Daquele friozinho na barriga, daquela euforia desmedida e aparentemente sem sentido de todas as manhãs. Esperança, euforia, decepção, frustração, mais esperança, alegrias, encantos e desencantos. Olhares, sorrisos, lágrimas, mais sorrisos, mais lágrimas, espinhos, pétalas, flores, cores, odores e temores.

Quanta coisa se viveu. Tanta coisa boa, tanta coisa ruim. No final ficam as lembranças, o aprendizado e a maldita saudade. Nós nos esquecemos de tudo, mas um dia a saudade bate e traz à tona tudo que se viveu e a vontade de viver tudo de novo, e nessas horas, no anseio de se reviver, as lembranças se misturam às fantasias, aos desejos e acabamos sentindo saudade até mesmo daquilo que não vivemos, porque também sentimos saudades dos sonhos que aparentemente morreram.

Sonhos são lindos, são maravilhosos e traiçoeiros. Nunca acredite que um sonho morreu. Ele se transforma, metamorfa, se maquia e é maquiavélico. Quando menos esperamos eles voltam pra nos assombrar, de sonhos se transformam em fantasmas. Frustração mal trabalhada, sabe? Faz parte da vida acontece comigo e com certeza acontece, aconteceu ou acontecerá com você. Paciência, não se morre dessas coisas e se formos espertos o bastante ainda conseguimos transmutar esses fantasmas de volta em sonhos. Isso é viver.

Sinto saudades da paixão. Sinto saudades de estar apaixonado. Sinto saudades dos meus sonhos. Sinto medo dos meus fantasmas... e eles sentem medo de mim.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Wishlist

E daí que casar não está nos meus planos, não mesmo. Ter um filho até, quem sabe, um Lorenzo. É, sou brega, não há remédio pra isso, já procurei na farmácia. Mas isso de ter um filho é sazonal e depende do estado dos meus nervos, então eu mudo de idéia toda vez que muda a Lua, e ainda bem que tomo pílula e todo o resto, senão o que eu ia fazer com o Lorenzo na época de não querê-lo? Oh, drogas. Também não pretendo passar o resto da vida num emprego só, mas isso não é o que todo mundo diz, o papo de promoção e progressão funcional ou trabalhar com qualquer coisa até o dia glorioso em que vou trabalhar com o que quero (tipos ser lanterneiro até conseguir chegar à Procuradoria Federal). Não. Mesmo se eu trabalhasse com o que amo desesperadamente - que no momento é aquele ser humano que toca bateria e trança o cabelo do jeito mais charmoso ever - eu ia querer trabalhar com outra coisa alguma hora da vida. E nem é por ser versátil, porque não o sou, ou por ser multifacetada, porque não gosto dessas frescuras. A questão é que me desapaixono por tudo de uma maneira tão rápida e indolor que às vezes dói, como diria o CaioF, 'lateja louca nos dias de chuva'. E a sensação de vazio me enche de tanta angústia que me perco nas coisas que nunca foram minhas, então preciso ter tudo, ora, isso não faz sentido. E também quero viajar muito e para muitos lugares, mas os locais mais não-convencionais possíveis, tipos todo mundo quer ir pra Nova Iorque só pra comprar aquela blusa idiota do I S2 NY, tudo bem soar clichê, todo mundo é clichê, mas tem o clichê charmoso, tipos eu quero a Europa, super clichê a Europa, mas não Paris e Londres e essas baboseiras que todo mundo faz. Quero a Espanha, o leste europeu, a parte mais dourada e menos cinzenta do Viejo Mondo, quero a vodca da Polônia e não da Rússia. E da Ásia prefiro a Indonésia à China, todo mundo vai pra China, todo mundo quer a China, é muita bicicleta amontoada, chega perco o ar. Nova Zelândia tá na moda, mas eu até queria, nem tanto pelos cangurus, ai, canguru é na Austrália, na Nova Zelândia é aquele pato-peixe, não é isso? Sei não. E além de viajar e não-casar e ter vários empregos vida afora, também quero ter muitos cachorros, nada de gatos, odeio gatos, mas quero ter muitos cachorros. Juro que não vou carregá-los em fakes da LuíVitón pra cima e pra baixo nem vou levá-los a DogSpas, vou deixar os bichinhos serem cachorros felizes, podem se sujar de lama e enterrar ossinhos (embora eu não acredite verdadeiramente nessa história de enterrar ossos). Enfim, eles poderão agir feito cachorros e estará tudo lindo, tudo na mais perfeita (des)ordem. E seus nomes serão coisas do tipo Zeca, Chico, Madalena, nada de Max ou Fox ou Scott ou Beethoven (se bem que um podia se chamar Wagner, de preferência o labrador de pelo negro, Wagner fica lindo). Enfim. E depois de ter vários cachorros e depois de viajar e depois de trabalhar com tudo que eu puder e depois de tudo mesmo eu queria aprender a operar um trator. Ou pilotar, ou dirigir, ou o que seja que alguém faz pra colocar o trator em movimento. Eu queria colocar um trator em movimento, com aqueles fones horrivelmente grandes no ouvido. Mas queria colocar um trator em movimento em uma avenida movimentada, tipos a Paulista às seis da tarde. Mas aí ele não ficaria em movimento, então esquece a Paulista. Não sei aonde, sei que tudo que ando querendo por agora é operar um trator. E não, pseudo-psicanalista-de-merda, isso não é um desejo reprimido, é o que é, vontade de operar um trator e pronto. Quem sabe até carregar uns tijolos pra lá e pra cá e depois tomar um café requentado. Mas é isso, por ora. Operar um trator e depois beber com os meus amigos e contar pra eles como é operar um trator, eles nunca fizeram nada parecido e vão ter inveja master. E quem sabe depois da vontade de operar trator venham vontades outras, também não-convencionais, tipos morar num iglu só pra ver se faz frio mesmo, e ver até onde suporto neve, porque eu acho neve o máximo, mas será que eu suportaria ver neve todos os dias por toda a minha vida? Não, eu não suportaria, cancela o iglu, cancela a neve. Quem sabe uma sociedade alternativa, cogu e visu da natu na cachu. Por uns três meses. Hahahahaha.

Pensando bem, pensando bem mesmo, ainda bem que essa vontade de ter Lorenzo vem e passa rápido, não sei se eu teria coragem de operar um trator sendo mãe. É isso, cancela o filho, fico com o trator.

sábado, 10 de maio de 2008

Simplicidade envolvente

Estávamos abraçados. Era noite e estávamos abraçados olhando pela janela, as luzes apagadas, e eu sentia o cheiro dela enquanto o aparelho de som preenchia o ambiente com aquele trip hop relaxante.

Eu fechava os olhos e sentia a textura da pele dela. Lisa, macia, tentadora. Até então a noite havia sido perfeita. Um bom jantar, um bom vinho, sorrisos, abraços, beijos e sexo apaixonado. Não importa quantas vezes você fez sexo na sua vida, quando se faz com sentimento sempre parece ser a primeira vez.

Mordi levemente a orelha dela. Ela passou a mão pelo braço que a apertava contra meu corpo.

- O que faremos agora?
- Não sei. Sei que está sendo muito bom.
- Não me imagino mais sem você.
- Nem eu me imagino sem você. Sem esse abraço, sem esse sorriso...
- Mas você tem que ir embora e eu não posso ir junto.
- Ah, não, amor. Vamos aproveitar o nosso tempo...

Dito isso, virou-se, colocou seus braços em volta do meu pescoço e me beijou.

- Para de pensar nisso, a gente vai dar um jeito.

Simples. Fácil. Tudo para ela parecia ser assim. Ela parecia não se importar com os meandros dos caminhos da vida, com os obstáculos impostos pelo destino. Fascinante essa visão da vida. Uma linha reta: simples e sem interferências. Uma visão tão fascinante quanto perigosa. Não posso negar que fui seduzido por tudo nela, desde sua beleza até sua forma simplista de ver a vida.

Beijei-a de volta, abraçando-a firmemente. Parei e, olhando dentro daqueles olhos encantadores, não pude pensar em outra coisa, além da felicidade de se viver o agora.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Amores Possíveis I - Breno e Clara

* Do processo de conhecimento

Início de tarde, final de outono, Leblon, Rio de Janeiro. Clara rodava à toa pelo shopping com umas amigas, perdida de uma perdição muito menos mundana e cheia de humanidade, quando se deparou com o cartaz na livraria que anunciava o lançamento da mais recente publicação de Breno Cavalcante, "Ao piano". Divisou o literato sentado - sozinho/solitário/abandonado - através da vitrine e encheu-se de uma histeria adolescente.

__ É verdade que o Breno Cavalcante tá lançando o livro dele aquihojeagora?
__ Sim, senhora.
__ E ele está autografando?
__ Exatamente, senhora.
__ Me vê um exemplar. Agora.

Com seu exemplar em mãos, Clara caminhou insegura até a mesa onde o escritor estava - entediado/desligado/desamado.

__ Boa tarde.
__ Oi.

Ele sorriu com um esforço sobre-humano, ainda assim lhe faltando humanidade.

__ O sr. é meu escritor preferido.
__ Que tragédia. Sinto muito por isso. Mas, por favor, não me chame de senhor.
__ Ah, perdão. Será que você pode autografar meu exemplar?
__ Claro. Já leu?
__ Ainda não, acabei de comprar.
__ Se acaso eu autografá-lo, vai valer menos ainda quando você tentar se livrar dele.

Clara sorriu, em êxtase.

__ Isso não vai acontecer, sabe? Leio "O homem no espelho" pelo menos uma vez por mês. Amo o seu trabalho, de verdade. Dos escritores da nova geração, é com quem mais me identifico.
__ Não sou um escritor da nova geração. Conta comigo: tenho a alma envelhecida, me falta espírito aventureiro e nunca usei drogas. Eu não me encaixo.
__ Não faz diferença. Continua sendo o meu preferido.
__ Nem me preocupo. Você é jovem, há tempo pra mudar. O livro?
__ Aqui está.
__ Seu nome?
__ Clara. Clara Monteiro. Eu também escrevo.
__ Mesmo? Alguma publicação?
__ Ainda não. Encaminhei uns originais para algumas editoras mas ainda não obtive resposta.
__ Essas cousas tomam tempo. Pronto, aqui está seu livro devidamente autografado. Caso não consiga vendê-lo, dá um excelente peso de papel.

Ele sorriu novamente, agora com um pouco mais de humanidade. Um desavisado poderia até jurar ter sentido um certo tipo de calor, tímido porém vivo.
Clara tomou seu exemplar com carinho e delicadeza tão extremos que chegavam a ser palpáveis. Retribuiu o sorriso de Breno com um calor incandescente que lhe subia a nuca e quase cegava.

__ Posso te convidar pra um café?
__ Clara, Clara, não se arrisque. Sou uma companhia desagradabilíssima.
__ Me deixe ao menos tentar. Assumo o risco.

Ele não sorriu, apenas aquiesceu com a cabeça, usando de uma gravidade que derramava charme impunemente. Clara mal conseguia esconder sua excitação ensopada quando dispensou as amigas sem maiores explicações, usando apenas um "vamos tomar um café!!!!" desesperado.
Ela voltou à livraria e se sentou a um canto para ler seu exemplar autografado, mas não pôde se concentrar na leitura por não conseguir tirar os olhos dele. E assim foi durante toda a tarde movimentada. Já passava das seis quando ele se levantou - cansado/desimportado/desempolgado - e se dirigiu até ela.

__ Vamos. Hora da tortura atípica.


* Da leitura - Café, cigarro e sal.


__ Preliminarmente: sou um cara verdadeiramente enfadonho, portanto durma ou fuja se lhe der vontade. Justamente por ser miseravelmente enfadonho é que quase nunca me ofendo. E muito embora seja lisonjeiro me ter em seu rol da fama, não me agrada falar dos meus livros, soa deveras presunçoso. Podemos conversar amenidades, caso as minhas a interessem, sou ameno da forma menos empolgante possível.
__ Não custa deixar acontecer, vejamos até onde vai. Podemos começar com o óbvio?
__ Tentemos.
__ Ainda mora em Brasília?
__ Não. Passei dois anos em São Paulo, tratamento, sabe como é. Me dei alta e mudei para o Rio, porque odeio o sol mas amo a praia, então escolhi morrer junto ao mar. E vim parar no Leblon porque sou tão clichê que chega a doer. E você?
__ Sou nascida no interior do Rio, Resende. Vim pra capital aos dezoito, ou seja, há seis anos. Moro em Ipanema, morei um tempo na Lapa mas estava me tornando alcoólatra. Em Ipanema não é assim tão diferente, mas quando fico bêbada pelas calçadas os garçons do Garota dão aquela força.
__ E você tem sido feliz aqui?
__ Quase o tempo todo. Não dá pra ser infeliz no Rio, não de verdade, especialmente nessa época do ano. O outono aqui é mais bonito que em outros lugares.

Breno sorriu com tanta humanidade que até o dia se deu por satisfeito.

__ É bom ouvir isso de outra pessoa. E em voz alta.
__ E você? Tem sido feliz aqui?
__ Ah, não. Sou uma pessoa infelicíssima, sabe? O que não me impede de apreciar a beleza das coisas, em absoluto. Mas de um jeito meio mórbido. Ao invés de ver o tom dourado que todo mundo diz que o Rio tem, especialmente nessa época do ano, costumo observar como as noites são mais negras e menos estreladas. Sou um caso perdido, Clara.

Ela também sorriu, e seu calor já abrasava os passantes, era visível, límpido, brilhante.

__ Podemos comprar nosso café e caminhar até a praia, assim ficamos junto ao mar e ainda podemos fumar, inclusive. Você fuma, não é?
__ Parei há algum tempo. Mas não me incomoda.
__ Então você realmente tem câncer?
__ Realmente tenho câncer.

Clara mordeu o lábio. Cruzamento/entroncamento/encruzilhada.

__ Então Nina realmente existiu. Não é errado pensar assim, é?
__ Não, não é errado.

O calor de Breno se dissipou rapidamente, dando lugar mais uma vez àquela gravidade sombria que, embora ainda charmosa, começava a assustar.

__ Não precisamos falar disso.
__ Não há o que falar. Nina nasceu, cresceu, viveu e morreu em mim. Fim.
__ Ela se matou.
__ Não. Ela só morreu.
__ Me desculpe.
__ Não carece de desculpa. Vamos. Nosso café, seu e pseudo-meu cigarro. Depois se aparam as arestas.


* A possibilidade de amor


__ Sempre amei escrever. Mas era tudo tão pessoal, nunca tinha imaginado a possibilidade de me publicar antes. Não me vejo como escritora profissional porque é tudo tão exorcismo, sabe como? E não me é fácil, por Deus, nunca foi, sempre teve sangue jorrando.
__ Gosto das suas metáforas. Emprego forte e certeiro. Você deve ser uma mulher difícil, Clara. Encantadora, mas de um jeito difícil.
__ Obrigada. Sempre me achei bem simples, na verdade. Muita paixão, muito sentimento, muita verdade, muito suor.
__ E eu aprecio tudo isso. Talvez por nunca ter sido assim.
__ Não consigo acreditar nisso. Se seus personagens são mesmo cópias suas, são cheios de paixão.
__ E medo.
__ Normal. Sinal que há um coração pulsando.

Ele a olhou com uma profundidade quase radiográfica, sentindo no peito a alteração do pulsar das obviedades. Era isso, o que Caio Fernando chamava de possibilidade de amor. Era estar com ela à beira do mar, café numa mão, cigarro na outra - depois de quanto tempo? matando aquilo que o matava suavemente. E aquela coisa de possibilidade de amor, depois de quantos anos? Depois de tanta solidão - mastigada/revolvida/regurgitada -, cá estava ele vislumbrando uma possibilidade rica e serena.

__ Sabe. Deu vontade de escrever agora.
__ Sério? Deve ser de um prazer imenso acompanhar teu processo de criação.
__ Nada tão fantástico. Quer escrever comigo?
__ Não, não poderia. Jamais. Querer eu quero, claro, mas não poderia.
__ Eu quero. Você quer. Vamos escrever juntos. Podemos caminhar até a minha casa.
__ Ou a minha.
__ E tomar mais um café.
__ Ou um vinho.
__ E podemos ouvir um jazz.
__ Ou bossa nova.
__ Suas sugestões vencem as minhas, fácil.
__ E daí podemos, com vinho e bossa nova, escrever.
__ E todas as outras cousas que poderemos. Se quisermos.
__ Eu quero.
__ Então vamos. Hora da tortura atípica, parte II.