quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Ele vinha, passava um tempo que eu considerava a eternidade ao avesso e depois sumia, demorava uma eternidade de verdade pra voltar. E eu sei lá o que ele fazia quando ia. Sei que ele ia e eu me afogava em Lou Reed e cigarros e, pasmem, adquiri o hábito bacana de beber uísques todos os dias, umas duas ou três doses duplas de qualquer uísque que aparecesse. E ele devia andar a fazer trilhas ou qualquer coisa pseudo-inteligente, dentro das diversas decisões pseudo-inteligentes que ele havia tomado quando éramos um casal feliz - é assustador pensar que já fomos um casal feliz e hoje temos uma relação assim-assim. Porque, assim, quando éramos um casal feliz as coisas iam em conjunto e tínhamos os mesmos gostos e vontades, e de repente não mais que de repente ele resolveu que a vida andava parada demais e tinha tanta coisa pra se ver, não acha? Não, não achava, queria só ficar por aqui, mas ele achava que tinha tanta coisa pra se ver e se foi, oh, se foi mesmo, de verdade verdadeira, e me deixou a comer unhas e enlouquecer um pouco a cada dia. Passava uns três meses em destino incerto e não-sabido e voltava com uns presentinhos fajutos, arte de hippie, e eu me desmilinguia toda porque, no fim das contas, ele havia pensado em mim por um minuto que tivesse sido. Aí passava uns dias comigo, dias loucos e cheios de vida e sexo e amor, muito amor meu, depois partia pra um outro lugar que ele tinha a certeza que precisava conhecer. E aí eu me afundava de novo em cigarros e Lou Reed, e antes eu me afogava em vodka porque era a nossa bebida, nossa amada puta russa, mas depois fui acumulando umas raivas dele e abandonei a puta russa também, quando eu me embriagava muito eu sentia o cheiro dele nela ou por causa dela ou qualquer coisa nesse sentido e me enchia de ciúme e mágoa. E quando ele me ligava eu chorava e pedia peloamordedeus que ele voltasse logo porque senão eu ia pintar meu cabelo de laranja e a parede do quarto de preto, ia fazer um corte moicano no nosso cachorro (o Zé, criaturinha agradável) e ter um filho com um desconhecido. Ele ria e perguntava se eu queria ir pra onde ele estava, pedia pra ele dizer mas ele não dizia, falava que não ia e ele suspirava e desligava o telefone. Numa dessas ele me ligou de Portugal. Não acredito, não acredito, não acredito que você foi parar em Portugal sem mim, eu berrei no telefone, abraçada com carinho à garrafa de Jackson Daniel, meu atual melhor amigo. Ele suspirou fundo fundo bem fundo e falou que o tempo todo ele quis me levar mas eu nunca quis ir, estava com os pés fincados a este apartamento de quarto-e-sala que a terra um dia há de comer junto com meus olhos porque vou pedir pra ser enterrada dentro dele ou junto com ele e ai da funerária se não houve um caixão que caiba, volto pra infernizar a vida de todo mundo. Não, não é bem assim, você quis fazer isso sozinho, eu repliquei. Ele suspirou ainda mais fundo e disse que andava cansado, sabe? Tava pensando em parar um pouco em algum lugar pra ver o que acontecia. Eu te amo, eu disse. Para por aqui e você descansa e a gente descansa junto pra sempre. Isso soou meio mórbido, descansar junto pra sempre. Você quer me matar?, ele perguntou num misto de susto e riso e eu me dei por tranquila, sorri para o Jackson Daniel e ele sorriu pra mim, porque eu sabia que mesmo em Portugal meu amor pensava em mim. Pelo menos eu achava, né, porque ele nunca voltou, já tem um ano ou mais isso, nunca voltou, nunca mais ligou, mas eu sei que anda vivo porque a mãe dele me disse da última das trezentas vezes que liguei na casa dele. A mãe dele me disse que ele ainda estava em Portugal e deve andar se entupindo de pastéis de Belém ao lado de uma portuguesa bigoduda com certeza. Enquanto isso eu continuo aqui, com meu Lou Reed e meu Jackson Daniel e meus cigarros, na decisão pseudo-inteligente de não utilizar a passagem que comprei pra ir atrás dele. Porque, você sabe, se entupir de pastéis de Belém não é uma coisa saudável de se fazer. Meus poucos amigos me dizem que devo aceitar que acabou e pronto, mas eu acho só que ele esqueceu, ou perdeu alguma coisa no meio do caminho. Prefiro acreditar nisso a aceitar o fato de que meu amor partiu. O Jackson Daniel concorda comigo. E um cutelo na cabeça da portuguesa bigoduda até que ia bem.

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