segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Pequena epifania

"Aliás, se o presente só surge para virar passado, não daria para dizer que o tempo é uma caminhada rumo à não-existência?"
Santo Agostinho

Estava a pensar nisso, confusa e desesperançosa. E se isso é realmente inevitável? Porém, via de regra, desviei meus pensamentos. Minha cabeça pensa o que quer, coisa mais incômoda, estou sempre a pensar em outras coisas. A velha questão nova: quanto perco? De que vale essa caminhada se tudo se acaba num não-existir infinito? Sendo assim, não há mais o que se conquistar, perder ou temer, pois tudo vira "pó, cinza e nada". E me escondendo atrás de falsas premissas vou negando meus desejos, silenciando minhas vontades e negligenciando vivências a mim mesma. Pronto. Acabo de criar o conceito de auto-embargo.
Lógico, existe uma motivação para essa cadeia melancólica de conclusões apressadas. Se não existe pena, o pecado não tem valia. Se o pecado nada vale, nada vale te querer, pois ainda que me seja concedido o gratificante direito de te provar, cedo ou tarde isso há de ser relegado ao esquecimento, e nada mais saboroso que o usufruto da memória. De outra feita, me satisfaço com o eterno benefício da dúvida. Se hei de prová-lo, mais dia menos dia? Não sei...E como sou covarde, prefiro não saber, por não saber quem és nem o que esperar de ti. Prefiro permanecer neutra, vendo teus exércitos invadirem meu país, sem querer lutar pela posse de mim mesma. A velha pretensão falha de sair na chuva sem me molhar. Quero dizer, de que adianta te querer, te ter, se hei de ter perder, invariavelmente?
Então vou me guardando nessa redoma pouco nítida, onde meu mundo tem dias de 50 horas que não passam, e até o Sol faz seu percurso num ritmo mais lento que o de costume. Uma sensação? Frio. Um sabor? Amargo. Uma cor? Preta. Um desejo? A inércia completa. Uma saudade? Você.
Aliás, por onde andas enquanto te procuro?






Escrito em março de 2006.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Idealização

Angustiado. Assim me sinto agora. Consegui em pouco tempo estragar tudo, como sempre, mas não é culpa minha, pelo menos não diretamente. Sou dessas criaturas sensíveis que se deixam levar pelo arrebatamento de uma paixão repentina e põem-se a fantasiar o futuro e as diversas possibilidades que existem entre o agora e o porvir. Dentro desses devaneios sou capaz de criar as mais diversas probabilidades de um relacionamento feliz, porque assim sou: dedicado de corpo e alma ao bem-estar de ambas as partes dentro de uma relação. Em minha imaginação, eu vejo o teu sorriso e os teus olhos olhando dentro dos meus, como se não fosse capaz de conter sozinha toda a paixão que sente e precisasse de alguma maneira comunicar-me que eu faço parte de tudo isso, como se toda a tua felicidade estivesse contida apenas na minha existência. Imagino-te ao meu lado fazendo todas essas coisas que ninguém mais faz porque estão todos tão ocupados vivendo suas vidas corridas e sem emoção, que acabam se esquecendo que a companhia de quem amamos é a melhor em qualquer momento, até mesmo nos mais simples: vejo estrelas, vejo a lua em todas as suas fases, vejo o sol poente, vejo o sol nascente, vejo o céu limpo e nós dois caminhando lado a lado em um gramado, assim como vejo o céu nublado e nós dois deitados juntinhos assistindo um filme. Sinto tua cabeça deitada em meu peito, e sinto teu cheiro, o cheiro de teus cabelos, a textura de tua tez, o gosto de teus lábios e me perco nessa imensidão toda do teu ser. Um ser que idealizei, e que agora trago aqui comigo corroendo meu peito, por não saber se existirá sequer uma parte ínfima de tudo aquilo que eu criei. Eis a razão da minha angústia. Por quem estou apaixonado? Por você ou pela pessoa que a minha paixão criou?

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Carta de Carlos para Carolina (parte I)

Belo Horizonte, 25 de maio de 2007

Carolina,

Escrevo para nos aproximarmos um pouco mais um do outro. As coisas têm sido difíceis entre nós dois devido a essa maldita distância que, ao mesmo tempo em que enleva e potencializa meu amor por você, tem me deixado cada vez mais doente de saudade. Não sei nem ao certo como começar, tendo em vista que esta é a primeira carta que eu escrevo de punho próprio. Acho melhor começar explicando porque estou escrevendo uma carta ao invés de enviar um e-mail. Aliás, vou falar de como anda a minha vida. E logo você vai entender o porquê da carta.

Essa semana parece que todas as forças que regem o mundo resolveram conspirar contra minha pessoa. Segunda-feira eu acordei passando muito mal. No domingo eu estava com muita preguiça de cozinhar e resolvi jantar fora de casa, mas acho que eu ainda não me acostumei a essa cozinha mineira tão cheia de temperos. O resultado foi que eu só consegui chegar no trabalho no meio da tarde.

Na terça, por causa do trabalho acumulado, em função da segunda mal trabalhada, eu tive que levar trabalho pra casa. Recebi um e-mail de um colega do trabalho que estava com vírus e meu computador foi pro espaço. Então, resolvi me acalmar dando uma volta. Lembra que na terça você ficou de me ligar? Então, durante a volta caiu uma chuva torrencial e eu estava sem guarda-chuva no meio de um descampado. Cheguei vivo em casa, mas meu celular vai precisar de uma missa de sétimo dia, porque ele não quer mais ligar. O coitado ficou todo encharcado!

Quarta-feira eu cheguei atrasado no trabalho porque eu usava o maldito celular como despertador pra acordar. O chefe me passou um pito daqueles por ter chegado atrasado duas vezes na semana, e o pior de tudo, por estar com o trabalho atrasado. Ele me falou coisas horríveis e eu, já muito puto com a minha semana de azar, acabei respondendo a altura. Não fui demitido, mas acabei recebendo uma advertência... se eu receber mais uma volto pra Brasília antes do esperado. Ah, isso seria realmente ótimo. Só que se eu voltar é sem emprego e com alguma dificuldade de ser contratado em qualquer lugar que seja, porque o homem é cheio de contatos.

Na quinta-feira as coisas começaram a andar melhor, porque eu recebi como pagamento de uma dívida uma garrafa de uísque bem carinha. O cara me devia R$ 50,00 e a garrafa valia R$ 89,00 (eu fui ver o preço pra saber se eu não tinha sido enganado, né). Eu achei que a sorte estava começando a mudar, então chamei o Klaus pra consertar meu computador. Aquele bêbado só veio porque prometi dar o uísque a ele. Eis que chegando aqui, terminando de arrumar o micro, ele abre a garrafa e dá um gole: o uísque era falsificado. Ele ficou puto e me obrigou a comprar outra garrafa pra ele "porque ele tinha saído de casa só pra isso". Acho que ele não deixou a internet funcionando por vingança.

Hoje é sexta-feira e graças a Deus não é dia 13. No trabalho tudo correu bem, apesar do chefe ter passado o dia me olhando meio atravessado. Ainda assim eu consegui colocar o trabalho em dia. Saí de lá e passei na Vó Dita, aquela benzedeira que mora na esquina aqui da rua. Amanhã eu compro outro celular e poderemos pelo menos nos comunicar através de mensagens. O Klaus me deixou sem internet, e enquanto eu não arranjar outro uísque, sei que ele não vai dar a mínima.

Queria muito que você estivesse comigo. Apesar de saber que problemas assim vão surgir, penso que estar com você facilitaria o processo, porque tua presença me acalma. Mal posso esperar pela hora de te ver, te abraçar, mal posso esperar pela hora de esquecer esses dias só por estar perto de você.

Me dê notícias suas, amor meu. Como se não bastasse a distância, o silêncio só aumenta a ausência. E me diz o que achou da letra. Se for o caso, te escrevo uma carta por semana.

Não se esqueça que te amo, e sempre que puder, me deseje boas vibrações. Essa semana foi um completo pesadelo. Chego a ter medo do que está por vir.

Beijos,

Carlos Cavalcante Neto








O primeiro de uma série de posts em dupla.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Amar é para os loucos

Sábado à noite, eu estou tentando terminar de me arrumar e fico aguardando um telefonema que eu sei que não vou receber de uma pessoa por quem estou apaixonado mas que só sabe da minha existência por mero acaso do destino. Onde diabos eu estava com a cabeça quando dei meu telefone a ela assim, sem mais nem menos?! Ela deve ter aceitado por pena. Não que eu seja uma criatura feia horrendamente grotesca e digna de pena por possuir uma aparência miserável, muito pelo contrário, sou até bem-apessoado, ás vezes até acusado de ser bonito, mas o fato é que entregar assim, de maneira tão subserviente, o meu telefone com aquele maldito olhar-de-cachorro-sem-dono, que eu luto para não fazer, mas minha personalidade patética e humilde insiste em manter, é uma coisa de realmente dar pena em qualquer ser humano que tenha um bom coração, imagine então em pessoas como Madalena, que possui a fama de ser a mulher mais cruel com quem um homem pode cruzar em sua patética vida.

Madalena... Madalena... ruiva de olhos azuis, corpo esguio, busto farto e um quadril de deixar louco o mais sério dos homens. Foi criada com a melhor embalagem e o pior conteúdo. E enquanto eu termino de me arrumar para sair e ver se me encontro com essa mulher que é a minha doença, a minha paixão e o meu desespero, não deixo de pensar no quanto eu sou ridículo, talvez até mais ridículo que meus predecessores porque eles foram humilhados sem nem saber com quem lidavam, ao passo que eu já conheço toda a história de Madalena. Sou uma ovelha procurando pelo lobo.

O telefone toca, eu corro feito um louco para atender. Retiro o telefone do gancho, tento me recompor, afinal de contas correr 3 metros com obstáculos é uma tarefa que tira o fôlego de qualquer fumante. Regulo a respiração, coisa que infelizmente não consigo fazer com meu coração que bate de maneira louca e desordenada ante a expectativa de ouvir a voz dessa mulher que para mim é ao mesmo tempo maravilhosa e obscura.

- Alô?
- Oi, quem fala?
- É o Jorge.
- Jorge é Madalena, tudo bem?
- Tudo.
- Então, meu bem, eu estava pensando em passar no Hell'o'rama hoje, aquela boate nova que abriu na Independência.
- Tudo bem pode ser.
- Compra uma carteira de cigarros pra mim, eu estou sem dinheiro.
- Claro, meu anjo. O que você quiser.
- Te pego que horas?
- Me encontra lá eu vou de carona com o Zé Luiz, meu ex-namorado.
- Tudo... tudo bem.
- Algum problema?
- Não de forma alguma, até logo.
- Até mais.

Desligo o telefone, em meio ao deslumbramento do telefonema, que foi tão esperado quanto inesperado, e à decepção de saber que ela não será somente minha nunca. Ela praticamente me avisou que eu não sou único na sua vida. Essa história de amizade com ex-namorado recente é conversa fiada. Ninguém mantém amizade com um parceiro de um relacionamento recém terminado a não ser que ainda haja sexo e cumplicidade. Agora estou indeciso entre a realização de um desejo voraz que me consome e me atormenta e a manutenção da minha dignidade, do meu amor-próprio. Ah, Madalena, não sei o que faria com você, mas tenho muito medo das coisas que eu faria sem você após tê-la possuído por um dia só que fosse.

Termino de me arrumar escovo os dentes e volto a me olhar no espelho me achando ainda mais patético que antes, talvez com um ar de homem humilhado, ultrajado por alguém que nem mesmo tem esse direito de ultrajar-me. Acho que estou ficando louco, dizem que amar é coisa de louco e eu concordo plenamente que as coisas se passam na minha cabeça em um turbilhão de sentimentos, lembranças, desejos e saudades de coisas que eu ainda não vivi de verdade, mas que minha mente, fantasiosa e infantil, criou e que no íntimo do meu ser eu acredito que foram cenas reais, que me renderam sensações carnais reais e das quais possuo até mesmo as cicatrizes que ninguém além de mim consegue ver.

Saio de casa, sigo direto para a Independência, lá chegando eu lembro que me esqueci de abastecer o carro e procuro o posto de gasolina mais próximo. Paro o carro e instruo o frentista:

- Completa, por favor.

Desço e vou á loja de conveniência comprar a carteira de cigarros e imaginem a minha surpresa ao encontrar Madalena aos amassos com o ex-namorado. E eu juro, por tudo que há de mais sagrado, não há sentimento mais humilhante para um homem do que ver outro concretizando o desejo mais íntimo que possui. Antes de ir ao balcão comprar o maldito cigarro eu caminho até o casal de pombinhos que está quase se comendo em público dentro da loja e mal nota a minha chegada, acendo o isqueiro e ponho fogo nos cabelos de Madalena. Ela demora a notar, mas quando dá por si já é tarde demais para salvar um fio de cabelo que seja. Então ela se põe a gritar e não sabe se chora se tenta me socar ou joga alguma coisa na própria cabeça para diminuir a dor das queimaduras no couro cabeludo. O pateta do ex-namorado ficou lá atônito sem saber o que fazer, olhava para Madalena, depois olhava para mim e permanecia imóvel com aquele olhar vidrado de quem não sabe o que está acontecendo ou às vezes até sabe o que se passa, mas não sabe como reagir à situação.

Eu avanço em sua direção, empurro Madalena em cima de uma estante de salgadinhos Elma Chips, o outro me olha com aquela expressão de medo. Ah... como eu adoro esse olhar de medo, ele nos torna mais fortes, mais destemidos, mais obstinados. Seguro o canalha pela gola da camisa e começo a socá-lo repetidamente. O primeiro soco pega logo abaixo da boca, ele tentou desviar. Eu bato a sua cabeça na parede com força, ele parece atordoado. O segundo soco é preciso: quebrei-lhe o nariz. Eu continuo a socá-lo e ele parece estar perdendo a consciência. Madalena se levanta e tenta me agredir. Eu a chuto, jogo o pateta do ex em cima dela e saio da loja de conveniência sob o olhar amedrontado de todos os presentes. Ninguém se atreveu a tentar me parar.

Volto para o carro pago o frentista e deixo uma gorjeta generosa. Ligo o carro e volto para casa, onde uma caixa de havanas e um Jack Daniels me aguardam. Amar é para os loucos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Catálogo de erros

Café.
Parei pra pensar nos eventos recentes e nunca me senti tão cansada. Porque nunca penso no que quero exatamente, e minha mente caprichosa e treinada me boicota, procurando sempre pelos lances futuros. Nunca nada acaba pra mim.
Cigarro.
Dia desses até considerei a possibilidade de voltar para a casa da minha mãe. Pude me ver tirando meus livros das caixas e tentando reconquistar meu espaço, com aquela sensação tardia de que a casa da sua mãe, por pior que seja, é melhor que a casa de seu marido. Certo, não é bem isso que penso verdadeiramente. Tampouco quero senti-lo. Prefiro acreditar que a casa do meu marido vai ser boa um dia. Afinal de contas ela também é minha.
Água.
São quase três. Dentro em breve ele vai se levantar para o duo água-banheiro, vai me ver no sofá, me olhar com pena e perguntar “ainda acordada, amor?”. Vou olhá-lo com resignação e dar um meio-sorriso, cheio de significação, que vai passar despercebido ao coração simples dele.
Simples, não simplório.
Simplória sou eu. Vou reclamar de enxaqueca todos os dias, e ainda assim vou tomar café de madrugada.

*****

O Gabriel vai viajar de novo. Vai passar duas semanas longe, de novo. Posso até ver a nossa cama vazia. E a dele, num hotel luxuoso, certamente preenchida com uma vagabunda desqualificada. De novo.
Por Deus, quando vou pôr um fim nisso? Até quando vou manter essa relação doentia com alguém que não me ama, só porque eu pretensamente o amo? Como eu pude permitir que ele destruísse um casamento perfeito? Aliás, como eu pude destruir um casamento perfeito? Porque certamente ele não encontrou aqui, em mim, aquilo que ele sente falta, e talvez por isso procure por aí. Ou não. Vai saber.
Sim, já pensei em vingança, milhares de vezes, cada viagem é um plano novo. Já pensei no irmão, no melhor amigo, no pior inimigo. Mas são todos fiéis, por incrível que pareça. Ou seriam, não sei verdadeiramente, nunca tive coragem pra tentar, sou um caminhão de barbaridades sim, mas meio covarde. Além do mais, Gabriel já deve tê-los alertado, existe alguma maneira de se proteger de mim, eu sei.

*****

Terapia.
E remédios, e crise, e choros. Minha cama vazia. O ódio do Gabriel assolando meu peito. Minha mãe alcoólatra tentando destruir o pedaço que resta. O melhor amigo a salvo.
Preciso de um exorcista.
[Muito fácil culpar o capeta].

****

Na rua, um dia qualquer, fui abordada por uma criança, que me sorria como se me amasse. Como se eu fosse sua mãe. A Bia disse que é um sinal divino, algo está por vir. Mas deixei de acreditar nessa baboseira espiritualista. Nada acontece. Além do pavor absoluto que tenho por crianças. Nesse dia, nada de remédios. Hard rock e tequila pra dormir.

*****

Voltei agora da casa do Gabriel, aquela que também era minha. Fui pegar uns itens que havia esquecido deliberadamente por lá, pra ter a desculpa de voltar. Gabriel estava sentado na rede da varanda, tomando um chimarrão. Uma mulher me atendeu, me foi solícita, por fim tive de mandá-la ao inferno, ninguém é educado assim de uma maneira não-proposital. Ele veio ter comigo, me levou ao quarto, fizemos sexo selvagem e eu me senti um lixo, pior que qualquer uma das desqualificadas com quem ele me traía costumeiramente.
Da próxima vez que eu voltar, vou pegar tudo de uma vez e parar com essa encenação ridícula.

*****

O melhor amigo me procurou. Queria conversar sobre tempos imemoriáveis, de antes mesmo da faculdade. O resultado final foi dizer que era apaixonado por mim desde sempre, que havia caído em depressão quando me casei com Gabriel, que agora não havia razão para que não ficássemos juntos. Excluindo o fato soberano que eu amava meu ex-marido desesperadamente, sobre todas as coisas, e que estava considerando a possibilidade urgente de perdoar. O melhor amigo pareceu se chatear, insinuou que eu o havia usado, me deu as costas com um profundo pesar que pude até sentir. Vê? Ninguém pode se proteger de mim, no fim das contas.

*****

A Bia ficou feliz de saber que eu estava grávida. Só ela, coitada. Jura que vai ser madrinha. Eu não posso ser mãe. Não tenho condições psicológicas pra parir um ser humano que futuramente, e num futuro breve, há de me trair. Sem contar o detalhe que eu não sei quem é o pai. Vou fazer exames na próxima semana. Porém, como sou sortuda, a contagem há de se iniciar justamente na semana em que meu ex-marido estava viajando.

*****

Gabriel não ficou feliz de saber que seria pai. E eu não precisei mentir, tampouco. Só disse a ele: você será pai. Disse pelo telefone, por Deus, eu sou muito esquisita. E agora nem posso tomar remédios, nem tequila, largo o cigarro no mais tardar até o fim da semana. E minha mãe alcoólatra não quer ser avó, julga não ter idade, por Deus, a mulher tem quase sessenta anos. Só a Bia, cara amiga, continua feliz com essa palhaçada. Acho que vou dar a criança pra ela. Não, não o faria! Já disse que sou uma covarde. Mas dá vontade.

*****

Perdi o filho. Caí da escada e perdi o filho. A Bia disse que foi não-proposital sendo o mais proposital possível. Não que eu tenha me jogado da escada, mas despendi tanta energia no processo de não amar essa gestação que a Divina Providência acabou por tomar providências, digamos assim.
Café.
Minha cabeça não pensa mais o que quer porque ela não pensa nada. Entrei num estado de letargia horrivelmente agradável. É como se um oco preenchesse todos os espaços, não sou feliz nem triste, só viva. E isso não é bom nem é ruim, é só vida. E vida, a gente sabe, é uma droga. Mas é vida.
Cigarro.
Voltei para os filtros vermelhos. Sei que estou morrendo aos poucos, mas a idéia de poluir meu pulmão é satisfatoriamente doentia, classificada como de baixo padrão diante das idéias verdadeiramente doentias que tenho. Gabriel se casou de novo, mas me visita toda semana, é sempre a mesma relação psicótica de amor e ódio. O melhor amigo também visita, bom sexo, sempre um bom sexo. Minha mãe foi pro interior, será que eu morro antes dela?
Água.
A Bia mora comigo e é até divertido, vê bem. Sempre tem um adolescente em fúria no quarto dela, vivo reclamando, vou denunciá-la por corrupção de menores, esses jovenzinhos a adoram. Um dia faço sexo a três, quem sabe?
Preciso de um exorcista.
[Ora, a culpa é do capeta mesmo].

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Metatexto

“Ela tinha esse sorriso assim, que tomava qualquer coisa minha. Ela tinha esse cheiro assim, que ficava comigo por todo o dia, trazendo assim a lembrança dela em todos os meus momentos. Ela não parava de falar nunca, e sua voz era como um sopro em meus ouvidos tão necessitados dos sons dela. Ela era toda assim, era toda minha, e sendo toda minha eu era todo dela”.
Não, não é um bom início. Um pouco menos de romance e um pouco mais de drama, talvez? Ah, detesto escrever.
Não, não detesto escrever. O que eu detesto é essa cobrança, esse prazo estúpido, como se eu tivesse um conta-gotas de criatividade que pinga incessantemente, dia após dia. Hoje, por exemplo. Hoje começou ontem pra mim, porque ainda não dormi, feito idiota na frente desse computador, tentando iniciar um romance que eu devia ter terminado há uns dois meses. Já abri minha segunda carteira de cigarros, já ouvi Bob Dylan e nada da inspiração aparecer por aqui. Talvez tenha tirado férias, ou licença médica, talvez tenha enjoado da minha cara. Talvez seja um complô das editoras que me recusaram anteriormente, não é fácil transformar dois livros em best-sellers em apenas três anos.
Ah, não posso dizer também que me orgulho de ser um boom editorial. Não era isso que eu queria. Queria só escrever. Porque isso sempre foi minha salvação, minha terapia particular, minha sessão de exorcismo com meus deuses e demônios. Cada letrinha no papel era um fantasma a menos. Era uma gota de sangue a menos. Agora é só o telefone que não pára e aquela mulher absurdamente insuportável perguntando quantas palavras já tenho escritas. E eu só queria falar do garoto que conhece a garota, se apaixona e casa e morre feliz, mas não pode falar disso, quem quer casar e morrer feliz? O universo é um saco.
Ao mesmo tempo me sinto um hipócrita de primeira grandeza por reclamar tanto. Ora, minha obra está aí, qualquer um tem acesso a ela, baixe da internet se você quiser. Não, não era isso que eu queria. Então por quê? Por que causa, motivo, razão ou circunstância assinei aquele contrato megalomaníaco? Por que me dispus a ir de livraria em livraria desse país, com aquele uísque vagabundo, pra dar autógrafos pra milhares de pessoas que eu sei que não passariam da metade do livro? Eu sou uma farsa, um caso perdido, devia me envergonhar de envergonhar a classe dessa forma. Mas, olhando bem para meus companheiros escritores profissionais, somos todos parte da mesma latrina.
Nossa, isso soou muito Bukowski.
O telefone tocou sete vezes durante a madrugada. Sete. Dá pra acreditar nisso? Rosana, o ser humano maldito que merece tortura selvagem, querendo saber se já passei do 34º capítulo. A vontade que dá é dizer que ainda nem escrevi o epílogo, sequer tenho um título. A vontade que dá é ir até a editora e dizer que rasguem o contrato e façam uma fogueira numa noite fria, eu pago a rescisão, ou fico sem os lucros das próximas vendas, a vontade que dá é de voltar a ser um peso para minha mãe e para o Estado e escrever uma obra por dia, mas pra ficar guardada no porão, onde ninguém terá acesso e ninguém haverá de me cobrar por ela. Onde esteja a salvo inclusive das sanguessugas que tenho chamado de amigos.
Dia desses tive que agüentar uma discussão acalorada no bar porque o Rubens se parecia muito com um dos meus personagens e o Fernando nunca esteve em uma linha dos meus escritos. Fiquei até feliz por isso, cheguei em casa e escrevi um texto enorme sobre aquele recalcado de merda. Mas aí o texto voltou da editora porque eu tinha usado a palavra “merda”, como se ninguém fizesse merda ou lesse merda ou comesse merda, como se o mundo não fosse uma merda. Ai, tão bom escrever merda merda merda. Odeio minha editora.
Minha mãe não pode nem sonhar com isso, pobre mulher. Não me agüenta mais, está louca pra que eu vá embora da casa dela, agora que estou ganhando rios de dinheiro, talvez até mais do que o Paulo Coelho. Será que vou ter de fazer pactos demoníacos e aparecer na tevê também? Se assim for, peço demissão, não quero mais ser escritor profissional traduzido em 5.678 línguas, quero ser só o Miguel que bebe e joga pôquer e escreve umas besteiras aqui e acolá, de vez em quando, pra fingir que sabe fazer alguma coisa.
Ranzinza. Ando muito ranzinza esses dias, a falta de inspiração me corrói. Bebi litros e litros de uísque essa semana e não saiu nada lível. Ah, essa maldita palavra nem existe, vê a que ponto cheguei? Era pra ser legível, mas escrevi lível, que coisa horrível, estou em decadência, sou um grande escritor em decadência, com dois livros publicados e tiragem que ultrapassa cinco milhões de cópias vendidas. Já estou em qual edição? 3ª, 4ª? De nada importa, não faz diferença, sou um escritorzinho de merda. Merda merda merda. E a desgraçada da Rosana volta a ligar, vou escrever um livro sobre uma revisora mal comida. Ah, não posso escrever coisas como essas, a editora não publica, tenho que fingir que sou o Machado de Assis. Com todo respeito a ele, claro, adoro. Mas prefiro ser Nelson Rodrigues, prefiro ser Bukowski, prefiro ser politicamente incorreto. Prefiro, mais uma vez, ser só o Miguel, um bêbado meio poético.
Minha pequena Ana acordou. Vou preparar um café para ela, com margaridas e Roberto Carlos. Por Deus, como posso ser um bom escritor sendo desesperadamente brega assim?
E esse texto, esse texto vou postar num blog. É isso. Vou criar um blog e postar todos os textos que contenham palavras e expressões como merda e mal comida. Os pseudo-intelectuais adoram.

Ponto final

Eu posso até me arrepender de estar te escrevendo, porque certas coisas são tão danosas que o simples fato de dedicarmos-lhes atenção já é uma coisa nociva ao nosso próprio bem-estar.

Aquele dia eu te fiz a pergunta errada com o sentimento certo. A verdade é que eu não consigo racionalizar meus sentimentos com muita facilidade, ainda mais quando a necessidade de fazê-lo se manifesta assim, de maneira tão repentina. Como eu disse, eu não sei “jogar” de outra maneira, sou sincero e espontâneo, mesmo quando isso me prejudica por ter a necessidade de manifestar urgentemente o que eu sinto e esta urgência não me permite formular corretamente uma pergunta ou uma afirmação que defina meus sentimentos com clareza. A pergunta correta a ser feita domingo seria: “Por que pra você estou sempre em segundo plano?”

A resposta eu já tenho (na verdade eu sempre tenho essas respostas, nem sei por qual motivo ainda pergunto). A resposta é: porque eu mesmo deixo. Eu me entrego com facilidade, talvez por viver o passado. Eu revivo a paixão de nove anos atrás e me entrego àquela menina que eu conheci quando ela ainda tinha quinze anos, andava de skate e parecia estar começando a gostar de alguém pela primeira vez na vida, e esse alguém aparentemente era eu.

E quando eu me entrego assim com facilidade, me torno cego para a pessoa que você se transformou nesse tempo, que eu não tenho direito algum de julgar, mas que eu desconheço quase completamente. Só conheço essa capacidade de aparecer de repente e causar estragos na minha cabeça e no meu coração. O mais hilário disso tudo é constatar que sou eu próprio que te outorgo esse direito, porque se você me faz tanto mal assim é pura e simplesmente porque eu mesmo deixo.

Eu poderia lutar contra tudo e contra todos. Poderia propor que fossemos contra todas as adversidades porque é assim que um relacionamento de verdade cresce e se transforma em algo que muda as nossas vidas e nos marca para sempre, mas por que falar isso tudo se eu sei que seria uma batalha em vão? Eu estaria te propondo algo que você poderia aceitar racionalmente, mas que você nunca pensou em fazer de verdade com seu coração. Basta olhar para trás e ver a facilidade com que me largou sempre, sem nem mesmo se dar a oportunidade de experimentar algo que poderia ser diferente e transformador em sua vida, mas que você tem medo de viver. Eu imagino que é desta maneira que as coisas se passam aí dentro de você.

Eu ainda procuro imaginar por qual motivo você às vezes me procura assim do nada, o que se passa na sua cabeça ou no seu coração: quando faz isso e também quando decide alçar vôo e me largar com um punhado de esperanças no coração e um monte de projetos na cabeça.

Sendo sincero, eu, atualmente, achava que estava imune a isso tudo, tendo em vista que há muito tempo esse tipo de coisa não me acontece de jeito nenhum, mesmo porque, como eu disse, não dou esse direito a ninguém, só me resta saber e entender porque ainda permito que especificamente você o faça.

Com base em tudo o que eu já vivi, nos meus sentimentos e no atual contexto da minha vida, só me resta desejar novamente que você consiga achar o seu caminho, se concentrar naquilo que realmente te importa e te deixar um conselho muito importante: não deixe que os outros ditem a forma como você deve viver, ou o que deve fazer para ser feliz. É a terceira vez que você vai embora contra a sua vontade e por causa de outras pessoas (ou então você mente para mim quanto às suas razões).

Eu finalizo a carta pedindo a você que realmente não me procure mais, porque dessa vez o estrago foi grande. Maior até do que você pode imaginar, e como você foi a causa direta, nada mais certo do que te informar.

Seja feliz.


Sem nomes e sem datas. É melhor que seja assim...