quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Baixo Rio

__ Mas olhar pra você é muito mais fácil que olhar pra mim. Porque o máximo que sei de mim é o que o nível de normalidade permite. E esse nível tem estado bem baixo. Por isso eu digo, é mais fácil olhar pra você e te conhecer inteirinho, saber que gesto você faz quando sente que vai chover, saber que sorriso você dá quando vê alguma notícia ruim envolvendo os Estados Unidos na TV. Conhecer seus segredos de frente e de reverso, porque eu vejo você. Mas não vejo a mim. E ver a mim é difícil, é quase impossível. Não porque eu seja um mistério a ser decifrado. É porque só tenho ao espelho, e espelhos sempre mentem.
__ Então essa é a sua desculpa?
__ Não é desculpa. Mas que caralho. Tou sendo honesta contigo. Eu acho.
__ E como você sabe que isso é ser honesta se você não conhece seus conceitos? Se, como você mesma diz, não pode olhar pra si?
__ Não faz isso. Sabe, é feio. Pegar minhas palavras e transformá-las numa navalha, e apontar essa navalha afiada pra mim.
__ Mas você não disse isso, Clara, minha querida? Não disse que não consegue olhar pra si, que tem facilidade de conhecer qualquer defeito meu mas não consegue assumir as merdas que você faz?
__ Paulo, eu não sei! Me diz se você consegue se definir com clareza, então. Me diz se você consegue falar mais de mim ou de você. Bora. Quero ver você tentar. Vai ser prazeroso.
__ Não seja idiota.
__ Não estou sendo. Tou fazendo o que você faz. Pegando suas palavras e afiando e apontando pra você pra ver você se cortar e sangrar. Até morrer.
__ Você é uma escrota.

Ele saiu. Foi pegar fumo, algo nesse sentido. Fiquei sentada na frente do computador tentando dar seguimento ao trabalho, não consegui. Outono no Rio e eu trancada em casa depois de discutir com meu namorado, que saiu pra pegar maconha, a maconha que eu nem vou fumar porque tou me entupindo de remédios pra ver se sinto menos as coisas. E meu terapeuta cerebral (haha!) foi pra uma conferência na Europa e não deve voltar antes do meu suicídio.

O sol se pôs e ele não voltou. Fiz uma dúzia de telefonemas, todos em vão, e desci pra Lapa. Liguei pro meu editor e pedi pra dar uma esticada no meu prazo, ele reclamou horrores, mas aceitou, eu sabia que ele me amava. Encontrei com o pessoal de sempre no Arco Íris e rodamos os bares, eles bêbados e eu sóbria, contemplando tudo aquilo, tão imersa em mim mesma que nem me incomodei por não estar bebendo. Só a latinha vermelha na mão, o líquido negro gelado queimando a garganta e o estômago. E perguntei pra Júlia, aquele ser humano sem noção, se ela concordava com os termos da conversa que tive com o Paulo. Ela sorriu, ébria, e disse que dela sabia muito pouco, mas que sabia mais de qualquer um outro. Porque, como eu havia dito, sentar a bunda e olhar pra qualquer um é muito mais fácil que parar na frente do espelho e aceitar o que aquele filadaputa desqualificado costumava dizer pra gente de vez em quando, aquelas coisas que vinham feito ponta de lança e causavam estragos irreparáveis em corações como os nossos, o meu e o dela, sentimentais ao extremo. Sorri, ciente da vitória, mesmo sabendo que o Paulo jamais aceitaria o discurso da Júlia como válido. O importante era saber que alguém pensava o que eu pensava, e em voz alta, e nada havia de invalidar aquele depoimento. Ele ligou, a voz tão áspera que cortou meus tímpanos.

__ Onde diabos você está?
__ Na Lapa, com o povo.
__ Clara, pelo amor de Deus, temos que terminar um livro. Temos que terminar um livro, você tem noção disso? Estamos sem dinheiro, se não entregarmos a porra do livro vamos ficar sem ter o que comer.
__ O editor esticou o prazo.
__ Foda-se o prazo, tou falando de dinheiro. Precisamos entregar o livro, precisamos receber. Eu preciso de dinheiro.
__ Não tá dando pra escrever. Não tá saindo.
__ Você é escritora ou não é?
__ Ser escritora não é ser bancária, seu boçal. Você é escritor e devia saber disso.
__ E também sou responsável, tenho contas a pagar, se não der pra escrever eu me viro.
__ Tudo bem. Tou indo pra casa. Mas se sair uma merda, nem adianta reclamar comigo.

Peguei um taxi e pedi pra ir pela Atlântica. Parei perto do Drummond, fiz minha prece e de lá fui caminhando. Cheguei em Ipanema consideravelmente rápido, comprei um café no Garota e fui pra casa. Paulo estava na frente do computador dele, absurdamente concentrado em algo, pornografia, só pode ser.

__ A noite tá linda. O trânsito tá tranquilo, deu até pra vir andando do Drummond pra cá.
__ Senta aí. Tou com umas idéias, queria te falar um pouco.

Estávamos no fim do romance. Paulo andava trabalhando bem mais que eu esses últimos dias, o que não me fazia me sentir mal, em absoluto, mas parecia injusto pra ele. Beberiquei meu café e acendi um Marlboro, ouvindo as idéias dele sobre o fim trágico que queríamos dar praquilo tudo. E de repente veio a pequena epifania, e finalmente pude olhar pra mim, e não gostei do que vi. Rapidamente desviei minha atenção de volta pra ele, mas já tinha um gosto de mofo na garganta, o café não descia mais. Traguei o cigarro com força, quase como se estivesse soprando vida, eu vivia de metáforas bizarras.

__ Paulo, eu acho que entendi.
__ Entendeu o quê?
__ O que conversávamos mais cedo. Aquilo de eu não conseguir olhar pra mim.

Ele parou o que estava fazendo e olhou pra mim. Nunca senti tanta intensidade da parte dele.

__ E a que conclusão você chegou?
__ Eu não queria olhar pra mim. Conseguir até consigo. Só nunca quis. E sempre achei poético esconder de mim quem eu sou. Porque aí eu fingia que não sabia o que andava fazendo, e se alguém viesse questionar, eu podia mentir. Porque se eu tivesse observado antes, e com um pouco mais de atenção, jamais teria achado isso poético.

Ele deu um meio sorriso, que pra mim sempre significou perdão.

__ Clara, você é a mulher mais poética que eu conheço. Agora será que dá pra gente trabalhar?

Também sorri, e as idéias voltaram a fluir, e varamos a madrugada escrevendo. Choveu durante a madrugada, de manhãzinha descemos até a padaria e compramos café e suco de laranja, caminhamos até a praia, acendemos Marlboros e fumamos na areia até parar de chover.

Naquele dia, à tarde, ele ficou de pegar fumo e deixar o livro na editora depois. Fui até o consultório pra pegar meu receituário e pedi pra secretária cancelar minha consulta, não queria mais saber de terapeuta cerebral (haha!). Comprei uma garrafa de vinho caríssima com o dinheiro que nos restava e voltei pra casa feliz, pensando em embriaguez e sexo pra comemorar nossa mais recente obra.

__ A editora odiou o livro.
__ Ahn?
__ A editora odiou o livro. Disse pra gente aproveitar a extensão de prazo pra reescrever tudo.
__ Cê tá brincando?
__ Não, Clara.
__ E agora?
__ Sei lá. Falei com um pessoal de outra editora, em Sampa City. Daí que a gente podia dar um pulo lá hoje à noite. E falar com esse pessoal.
__ Com que dinheiro, amor?
__ Ainda tinha um dinheirinho na conta.

Empunhei a garrafa de vinho francês da safra de 59, que ele adoraria em ocasião outra.

__ Meu Deus, eu juro que te mato, Clara.
__ Eu não sabia. Onde eu ia imaginar que o editor ia odiar o livro? Se na minha cabeça ele estava perfeito?
__ Bom. Agora é reescrever.
__ Não, vou pedir uma grana pro meu pai e a gente vai pra Sampa. Vai de ônibus mesmo, economiza combustível e tudo. Vou ver se consigo falar com alguém de lá, pra ver se a gente consegue hospedagem, acho que a Sílvia ainda tem aquele apartamentinho na Augusta. E então?
__ Tá, pode ser.
__ Certo. Agora, será que dá pra gente beber esse vinho?

No dia seguinte liguei cedinho pro meu pai e consegui a grana. Comprei as passagens e parei no Leblon pra almoçar, e acabei dando de cara com o Breno. Passava do meio-dia e ele já estava completamente embriagado.

__ Ei, escritor. Já?
__ Ei, escritora. Como estás?
__ Vou bem. Mais tarde tou indo pra Sampa, tentar publicar um livro.
__ Junto com o Paulo, seu muso e co-autor?
__ É.
__ Todas as mulheres que amo acabam me deixando. Isso é terrível.
__ Nina não te deixou porque quis. Nina morreu.
__ Nina se matou.
__ E eu não te deixei. Você que nunca quis me ter.
__ Isso é uma mentira, Clara.
__ Não, não é. Eu tentei, Breno. Mas o fantasma dela naquela tua casa sombria era triste demais.
__ Aí você veio para o ensolarado Rio de Janeiro e conseguiu ser feliz para sempre.
__ Você costumava ser menos ácido.
__ E você costumava dormir comigo, não com aquele boçal que você chama de namorado.
__ O Paulo me ama.
__ Sei. E o tratamento?
__ Me dei alta.
__ Você é uma piada, Clara.
__ E você é uma mortalha, Breno.

Me senti horrível por deixá-lo daquele jeito, mas era ele ou eu. Meu instinto de sobrevivência gritava toda vez que o Breno cruzava meu caminho. Caminhei até chegar na Atlântica, depois peguei um ônibus pro centro, pensando o tempo todo no Breno. Ele era um dos melhores escritores de que tinha conhecimento, e ainda estava vivo, e durante um tempo foi meu namorado. O primeiro livro que publiquei foi em co-autoria com ele, e foi graças a isso que consegui ser publicada outras três vezes, dessas junto com o Paulo. Breno tinha câncer, apesar de muito jovem, mas tinha morrido de verdade quando a Nina morreu. E depois disso, nunca mais amou ninguém, nem a mim. A mim, que ainda o amava.

Voltei pra casa debaixo de chuva. O Paulo tinha saído pra comprar fumo, meu namorado é um viciado. Liguei pro Breno, caiu na secretária, pedi desculpas pelo que havia dito mais cedo, me senti um pouco melhor, não o suficiente. Paulo voltou e fumamos um juntos, depois acendi um Marlboro e fiquei na varanda, vendo o sol engolir o Rio junto com o mar.

__ Hein, Clara. O que você tem?
__ Nada. Só pensando algumas cousas.
__ Detesto quando você fala cousas. É coisas.
__ Eu sei. Breno falava...
__ Breno falava cousas. Eu também sei.
__ Eu o vi hoje, lá no Leblon. Tava acabadíssimo.
__ E quando foi que ele esteve bem?
__ É. Faz um tempo.

Ele parou do meu lado na varanda. Roubou meu cigarro e tragou profundamente. Ele também tragava como se quisesse se sentir vivo.

__ Sabe, Clara. Eu te amo.
__ Eu também te amo.
__ E não importa se você ama o Breno mais do que a mim. Eu sei lidar com isso.
__ Paulo, olha...
__ Não, Clara, eu sei. Eu sempre soube que você ainda o amava, mas isso nunca me doeu. A única coisa que tento fazer é que não doa pra você também. Entende? Você me faz feliz.
__ Você me faz feliz, Paulo. Se não fosse você ter me tirado daquele fosso escuro onde o Breno tinha me enfiado, não sei o que teria sido de mim.

Ele me abraçou e acarinhou daquele jeito meio esquisito que ele costumava fazer, me chacoalhando toda. A noite já tinha caído, ventava daquele jeito que só ventava no Rio. Nosso ônibus saía em duas horas, corremos para ajeitar as malas, liguei pra Sílvia pra confirmar o horário de chegada e pegamos a estrada. Fui escrevendo no caminho, Paulo dormia e Breno ainda estava grudado na minha memória.

Chegamos em Sampa City e fomos direto pro apê da Sílvia. Tomamos um banho, comemos pizzas frias e depois nos encontramos com os caras da editora que o Paulo conhecia. Leram um texto meu, rapidamente, depois um do Paulo, com mais calma, e por fim um trecho do romance que a gente tinha escrito.

__ Clara, você não costumava escrever com o Breno?
__ Ah, vocês conhecem o Breno?
__ Claro. O Breno vende que nem água. A gente tem entrado em contato com ele, mas parece que ele não tá muito a fim de escrever por agora.
__ Hum.
__ Será que a gente pode fazer uma proposta?

Paulo se retraiu todo na cadeira. Eu já sabia o que vinha, ele também.

__ Ia ser ótimo ver um livro seu com o Breno de novo. Nada contra a tua literatura, Paulo, pelo contrário, é maravilhosa. Mas a gente nunca publicou algo parecido com o que a Clara e o Breno escreveram.
__ Não rola.
__ Rola sim. Ela vai escrever. A gente volta a falar com vocês.

Paulo saiu me arrastando pelas ruas até chegar num ponto de taxi.

__ Eu não quero escrever com o Breno!
__ Você vai!
__ Qual é a sua, Paulo?
__ Clara, você é escritora. Uma das melhores que conheço. Eu aprendi contigo. Mas não sou escritor, não como você é. E o Breno...tá, ele é um puta escritor, escreve pra caralho, o livro de vocês foi uma das coisas mais absurdas que já li, e ainda tá vendendo, e tem quantos anos que ele foi publicado? Pensa nisso, amor.

Eu soltei meu braço com violência.

__ Você tá me vendendo pro Breno, Paulo. É isso que você tá fazendo.
__ Não seja idiota, Clara, em nome dos deuses. Você é a mulher da minha vida. Mas se você tiver que caminhar longe de mim por um tempo, caminhe. Preciso do teu crescimento. Porque se você ficar estanque, nunca vou me perdoar por ter te fechado as portas.
__ Nunca ouvi tanta baboseira na minha vida. Será que dá pra gente voltar pra casa e reescrever nosso livro?
__ A gente vai voltar pro Rio e você vai procurar o Breno.
__ Vai se fuder, Paulo. Você é um escroto.

Peguei um taxi direto pra rodoviária, comprei umas cervejas, fumei uns marlboros e entrei no ônibus desejando a morte próxima. Capotamento. Sequestro. Qualquer coisa que me tirasse daquele pesadelo. Quando cheguei no Rio, ainda viva, quis morrer de novo. Breno estava na rodoviária me esperando. Seu aspecto ainda era lamentável, mas parecia sóbrio.

__ O pessoal de São Paulo me ligou. Perdão fazer você passar por isso. Eles vão te ligar de volta retirando a proposta.
__ Não precisa se desculpar. Você não fez nada.
__ De fato.
__ E eu pensei muito nisso, também. Da gente. Da gente voltar. A escrever, eu digo.
__ Não é boa idéia, Clara, mulher amada.
__ Tem tempo que não ouço isso.
__ E tem tempo que eu sinto. Estranho. Quer carona pra casa? A gente pega um taxi até o Drummond.
__ Do Drummond fica longe pro Leblon.
__ Pensei em parar em Ipanema. Assm, como quem não quer nada. Pensei em parar em Ipanema e te dar um beijo no portão. E depois te deixar ir.
__ Ou subir.
__ E ficar. E quem sabe até escrever. E ficar, Clara minha, mulher amada.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Klaus vai ao psicólogo

- Ontem eu estava bem, sabe...
- Hum...
- Só que aí eu comecei a lembrar de como as coisas foram acontecendo.
- Que coisas?
- Ah, tudo... você sabe. A promoção no trabalho, a nova namorada, o carro novo... tudo...
- Klaus, de todos que eu conheço, você é o único que reclama de ser bem sucedido na vida.
- É difícil explicar. Você nunca se perguntou se é merecedor de tudo o que tem? Nunca se perguntou se esse consultório é realmente seu por mérito?
- Eu batalhei muito para consegui-lo.
- E passou por cima de muita gente também.
- Isso não vem ao caso.
- Aí é que está a questão: todo mundo passa por cima de todo mundo. Mas ninguém sente peso na consciência.
- É a vida: ame-a ou deixe-a.
- Gustavo, que raio de psicólogo é você?!?
- Eu sou realista. Além do mais você vem aqui me aporrinhar uma vez por semana e não me paga um centavo que seja por isso. Quer que eu fique passando a mão na sua cabeça?
- Eu pensei que você fosse meu amigo.
- E eu sou. Por ser seu amigo eu não vou ficar te alisando.
- Eu não quero que você me alise eu tenho minha namorada pra isso.
- O que você quer então?
- Eu quero entender a vida.
- Bem, nesse caso, em pouco tempo eu te mando pro manicômio.
- Deixa de ser cretino!
- Isso não é cretinice, é a realidade. Viva e deixe morrer, rapaz.
- Bah, nem sei porque ainda venho aqui.
- Porque eu sou seu único amigo, Klaus.
- É... tem sentido.
- E então, você estava lembrando das coisas e...
- E resolvi que não mereço nada do que tenho. Quer um carro novo?
- Obrigado, já tenho dívidas demais.
- O carro está quitado.
- Vindo de você, com certeza é alguma sacanagem.
- Tá ficando esperto o garoto...
- Não falei!
- Desta vez é sério.
- Tchau, Klaus, tenho cliente agora.
- Sinuca hoje á noite?
- No mesmo copo sujo de sempre.
- Beleza. Chegando lá eu te entrego o carro. Tchau...
- Some da minha frente, Klaus. Hoje você está pior que de costume.
- Viva e deixe morrer, rapaz...
- Tchau, Klaus...
- Tchau...



Esse eu escrevi em outubro de 2007 e achei perdido por aqui.
Não postei antes por ter achado meio ruinzinho... mas relendo agora até que me pareceu tão interessante quanto banal.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Elegia

Um último cigarro antes da chuva cair, essa chuva que cai todos os dias, no mesmo horário, que me faz rir com desgosto. Ela costumava falar que em Londres chove todos os dias, perto das cinco, e os londrinos combinavam encontros sorridentes dizendo “antes ou depois da chuva?”. Como se tivesse alguma graça nisso, eu ria junto com ela, porque não havia graça em coisa outra que fosse ela, então me ria dela, e junto com ela, sentindo uma eternidade de certeza afável e certa. Mas agora eu ria com desgosto, porque isso aqui não é Londres, é só um canto perdido onde me escondo. E ela não tece mais esses comentários absurdos porque ela não está mais aqui, sabe lá onde se esconde, tão longe de mim. O medo velho-novo perpassou meu peito enquanto eu atravessava os corredores, incerto, e cheguei ao elevador sentindo a velha ardência na garganta, o choro contido, a explosão de tudo que dói. Ainda. Ela já tinha ido há muito tempo, mas eu nunca soube afirmar com certeza quando eu a havia perdido, é claro, eu a havia perdido antes dela partir, não me resta dúvida. E eu nunca soube afirmar como foi que a perdi, logo ela, sempre tão minha, como se eu de fato a tivesse comprado naquela noite potencialmente fria em que perguntei, singelamente, se podia comprá-la somente para aquela noite. Depois a libertaria, embora não o quisesse verdadeiramente. Ela sorriu e disse que não carecia de depósito, de valor algum, pois não se compra o que não se pode pagar, sorrimos juntos e o céu se abriu, e a noite ficou quente e segura como era quente e seguro o hálito dela, que provei pouco antes de beijá-la. E logo depois ela sorriu, era dada a sorrir da vida, era feliz. Ela sorria e assolava meu peito pretensamente infeliz, a coisa pseudo-depressiva que eu afirmava sem ter porquê, afinal de contas quem haveria de ser infeliz tendo a ela como guia? Talvez por isso ela me tenha deixado, eu vivia a chorar enquanto ela conseguia se rir e rir de mim e rir de tudo que lhe competia. E o que ela não conhecia fazia questão de deixar às margens, para bebericar quando desse sede, e se desse sede, mas sem se afogar jamais. Porque ela sempre soube a medida do próprio coração, enquanto eu julguei ser o meu maior do que era, e o dei a ela sem saber que dele ela não precisaria. Saí do elevador desejando a morte próxima e, senão indolor, menos dolorosa que aquela sobrevida que eu tinha agora, agora que ela não estaria em casa a me esperar, com um café preto e Billie Holiday. E sabendo que eu não a beijaria ao chegar e não sentiria teu perfume, aquele perfume que estava sempre nela, e mesmo sabendo que era perfume eu teimava em dizer que era o cheiro dela, porque aquele cheiro nunca saía. Caminhei num caminhar incerto e vacilante até a minha mesa, onde ainda jazia uma fotografia dela, de tempos melhores e felizes, onde o sol fazia o seu percurso num ritmo mais lento para que os nossos dias não findassem depressa sem nos dar a oportunidade de viver um pouco mais. E pude ouvir o riso dela quando me ligava só pra dizer que já sentia minha falta, e que estaria a me esperar, e por Deus, como ela me amava. “Quando foi que nos perdemos?”, ela me perguntou num misto de choro e raiva na última ligação, e eu fiquei calado, porque não havia verbalização praquilo que eu tentava não sentir. O telefone tocava mas eu não queria atender, porque eu sabia que não seria a canção dela, a canção da voz dela a me cantar tudo que de mais belo havia. E quando foi que eu a perdi, nunca soube. E o tanto que a amei, jamais pude mensurar, porque não havia medida. Sabia só que não tinha mais vida e nem sangue e nem suor, era só aquilo, aquela coisa morna de requentar, sem brusca poesia. Era só eu e eu só, e nunca me fui a melhor das companhias, especialmente depois dela. E eu tentava homenageá-la em palavras que fugiam sem alcançá-la, eu tentava senti-la sem que ela estivesse. E desde que a perdi eu não sentia mais nada. Mas a fotografia dela na minha mesa sorria, e isso era quase viver.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Feridantiga

__ Camila, o que eu faço com essa caixa?
Olhei de viés para o Guilherme, tentando equilibrar mais de trinta pratos na mão.
__ Que caixa?
__ Essa. Tem seu nome.
Deixei os pratos no balcão da cozinha e abri a caixa. Havia anos, muitos anos que eu não mexia naquelas coisas. Cheirava a passado mal-resolvido, a feridantiga (como diz o Caio Fernando). Estreitei os olhos e senti o pesar atravessar meu peito.
__ Eu me viro com essa. Pode deixar.

Subi as escadas rapidamente, trancando a porta atrás de mim. Guilherme não fazia parte daquela outra vida e não fazia sentido, não tinha porquê eu participar a ele o que me ocorrera há tantos anos, ele não entenderia. A primeira coisa que tirei da caixa foi uma foto. Uma foto já amarelada pelo tempo, dobrada nas pontas, envelhecida e cansada como eu. A única foto da trupe.

Foi há mais de vinte anos. Eu tinha apenas treze e fugi de casa, com um namoradinho da época que me prometera uma vida bonita e livre. Fomos parar no interior paulista, onde nos encontramos com alguns de seus amigos, e seguimos com um grupo de teatro e circo que atuava nas ruas das cidades interioranas, passando a mensagem de liberdade e beleza verdadeiras. Era muito poético no início. Mas eu tinha mais medo que qualquer outra coisa à época, e um dia decidi voltar pra casa e encarar a tirania dos meus pais no conforto do meu quarto aquecido e das três refeições diárias e regulares. Passei anos evitando me lembrar daquele tempo pra não me sentir muito covarde, e tinha conseguido, até aquela caixa renascer das cinzas. Eu devia tê-la jogado fora, eu me dizia agora, tardiamente.

Reconheci Clarisse de imediato. Minha Clarisse, minha melhor amiga daqueles meses infernais. Passávamos a noite a falar de tudo que nos vinha, de todos os medos, de todas as vivências, de todas as perdas, das pequenas conquistas...ela já estava longe de casa há anos, já tinha se apaixonado, já tinha desapaixonado, feito um aborto, enfim. Ela tinha vida. Eu tinha apenas a imitação da vida que eu queria pra mim, apoiada num discurso frágil de liberdade que no fundo eu não queria. Clarisse foi meu porto seguro, acima de tudo, e bem mais que meu namoradinho. Ela me roubava sorrisos e enxugava lágrimas. E me encorajou a voltar e assumir a condição, quando disse a ela que não mais podia com aquilo.

Ainda trocamos cartas por um tempo, até que elas pararam de chegar, de repente. Nunca soube o que havia sido feito de Clarisse, e julguei que tivesse me esquecido ou coisa que o valha, porque o meu namoradinho me esqueceu, e meus outros amigos me esqueceram. E por fim eu esqueci, e conheci Guilherme, e vivia agora uma vida que nunca quis, mas que me satisfazia porque eu me enganava.

Remexi um pouco mais na caixa e encontrei as cartas que ela me mandava, todas elas. Ouvi Guilherme gritar com Pablo no andar de baixo, ele não era um pai muito paciente, sorri sem querer sorrir. Reli carta por carta e chorei em todas elas. E a dor da feridantiga foi crescendo, a cada letra, a cada lágrima. A última carta era infelicíssima. Clarisse tinha conhecido esse Valter e abandonara o grupo pra ficar com ele, julgando ter encontrado o amor que tanto buscava. É claro que não era nada daquilo, nunca é de verdade, nunca é nada. Sei que ela não estava bem, queria voltar pra casa, pela primeira vez em muitos anos ela considerava a possibilidade de voltar pra casa, mas não sabia como seria. A mãe dela, pelo que contava, era um verdadeiro pesadelo. Tinha o pai, a quem ela amava verdadeiramente, mas não entendia. Tinha o irmão, namorado da melhor amiga dela. E tinha essa melhor amiga, Mariana, que devia ter fugido com ela mas nunca pôde, ou nunca quis. Mariana era a única coisa que estimulava Clarisse a voltar, mas ela não aceitava a volta, não aceitava o erro. Terminou a carta dizendo que me abraçava apertado e daria um jeito de me ver na capital em breve. E sumiu.

Dei algumas voltas pelo quarto, a cabeça trabalhando rápido, o coração fervendo. Tentei imaginar Clarisse mais velha e criando filhos, como eu, mas não dava, a imagem dela jovem e livre estava grudada na minha memória. E a dor de feridantiga atingiu seu ápice. Eu sabia o que devia fazer.

Três dias depois eu estava em frente à casa de Clarisse. Nem podia acreditar que atravessei metade do país praquilo, mas lá estava. Bati à porta e um senhor me atendeu, um homem velho-novo, se é que me entende.
__ Boa tarde. Geraldo?
__ Em que posso ajudá-la, senhora?
__ Sou...quero dizer, fui. Fui amiga de sua filha, a Clarisse.
O olhar dele fugiu, ele não conseguiu me encarar.
__ Minha filha morreu há muitos anos.
__ Eu sei. E sinto muito por isso. Mas eu queria falar com a Mariana. A melhor amiga dela. O sr. sabe onde posso encontrá-la?
__ Deve estar em casa. Atravesse a pista.
Ele apontou para a casa em frente e fechou a porta, sem me dar oportunidade de dizer mais nada. Idéia estúpida, pensei logo. O que diabos eu diria para a Mariana? "Oi, fui amiga da Clarisse, vim só dar um alô?"

Atravessei a pista ainda em dúvida. O quintal da casa estava atulhado de brinquedos e um cachorro latiu quando eu me dirigi até a porta. Toquei a campainha e a porta se abriu quase que instantaneamente.
__ Oi, moça.
__ Oi. Sua mãe está?
__ Está. Vou chamar.
A criança que me atendeu correu até o interior da casa. Logo depois Mariana estava diante de mim. Eu tentava a todo custo não chorar.
__ Desculpe incomodá-la. Fui amiga de Clarisse. Meu nome é Camila.
Ela sorriu de maneira tão sincera que me senti em casa.
__ Por favor, entre. Clarisse falava muito de você nas cartas. Sempre com muito carinho.
__ Era o mesmo com você.
__ Ah. Ela faz falta. Todos os dias. Venha, venha até a cozinha, estou ajudando essa criança a preparar biscoitos.
__ Seu filho é lindo.
__ Obrigada. Mas não se parece nada comigo. É a cara do Caíque.
__ O irmão da Clarisse?
__ Esse mesmo. Está trabalhando, não deve demorar a chegar.

Conversamos amenidades por duas horas, aproximadamente. Filhos, casamento, carreira, as vidas que decidimos seguir. Mas ao contrário de mim, Mariana parecia feliz. E eu a invejei por isso, e disse isso a ela. Quando Caíque chegou, criança e cachorro fizeram festa e eles se ocuparam para me deixar à vontade com Mariana.

__ Sabe...há uns dias, quando revi as cartas e as fotos, senti tanta dor...eu vivo uma mentira. Não sou feliz. E meu marido sabe disso, e meu filho vai ser vítima disso, cedo ou tarde.
Mariana sorriu, condescendente.
__ Eu passei muitos anos invejando a Clarisse. Sério. Me sentia mal por não ter tido coragem de fugir com ela, me sentia mal por namorar o irmão que ela tanto detestava, me sentia mal por ter seguido com minha vidinha enquanto ela estava acelerando o processo natural das coisas. Até aceitar que eu era completamente diferente dela. Nem melhor nem pior. Só diferente. Sinto falta da minha amiga todos os dias, e ainda hoje não há quem a substitua. Mas o fim que ela teve foi tão indigno de quem ela era, que me fez questionar se também era isso que eu queria.
Eu já chorava.
__ Ainda dá vontade de fugir, às vezes. Minha vida não é esse comercial de margarina light que parece. A vida de ninguém é. Mas eu sou feliz. Caíque me faz feliz, meu filho me faz feliz, meu cachorro, meu trabalho, os poucos e valorosos amigos. E quando sinto tudo excessivo, entro no quarto e respiro no saco. É sério! Respiro no saco e fica tudo bem.
__ E o que eu faço? Respiro no saco também?
__ Há ungüento para toda dor, Camila. Encontre o seu.

Conversamos mais um pouco, até a noite. Tive de pedir desculpas, tinha que voltar pra casa, ela me convidou pra pernoitar, disse educadamente que não, precisava me resolver com meu peito. Dirigi a esmo até a cidade seguinte mas não dormi, não conseguia parar, eu estava prestes a enlouquecer. O celular estava desligado desde que saí de casa, três dias atrás, e eu o mantive assim enquanto dirigia, sozinha no carro, Chet Baker me tocando como poucas coisas na vida tocavam.

Mais três dias de estrada e voltei pra casa. Guilherme estava à beira de um infarto, coitado, senti tanta pena dele por ter dedicado os últimos anos pra um casamento de farsa que era o nosso...mas ainda me via sem coragem pra nada. Abracei meu filho como se pudesse transmitir naquele abraço todo o meu amor e, ao mesmo tempo, me desculpar. Abracei meu esposo com a frieza de quem se despede, com a sobriedade de quem tomou a decisão mais importante da vida. E então disse adeus.

Chet Baker ainda tocava no som do carro. Não sabia pra onde ir. Apenas ia. Apenas fui.