segunda-feira, 8 de dezembro de 2008
Limites ultrapassados
Acredito que, nunca na minha vida, viverei algo tão intenso quanto o fim desse relacionamento. Agora que acredito que ele realmente tenha chegado ao ponto sem retorno, vejo que amadureci demais. Vivenciei sentimentos que jurava ser incapaz de sentir. Odiei, perdoei, odiei ainda mais e alcancei novamente o ápice do perdão. Quis vinganças, busquei serenidades e cheguei até a admitir que a situação estava fora do meu controle, coisa que, para mim, é praticamente impossível.
Depois de eventos descabidos, como eu me trancando no banheiro para não levar uma facada, ou ela correndo escada abaixo de camisola para não levar uma surra, finalmente cheguei à conclusão de que havíamos ultrapassado até mesmo o limite do irracional. Obviamente não foi uma decisão comum. Xingamos-nos, brigamos, nos agredimos fisicamente e no auge da briga começamos a nos beijar. Um beijo intenso, vívido e quente. Desses que imaginamos ser coisa de novela até nos acontecer.
Fizemos sexo. Um sexo sem limites, sem perversão e sem sentimento. Sexo puro e simples. Depois de terminado o coito eu limpei o canto da minha boca, que sangrava por causa de uns socos que ela havia me dado após desferir-lhe um tapa na cara. Olhei o sangue em minha mão e vi meu rosto marcado nas dezenas de reflexos no espelho quebrado, que milagrosamente manteve-se na moldura do guarda-roupas.
Ali eu entendi o grau de insanidade a que havíamos chegado. Sem falar nada eu retirei as malas de cima do guarda-roupa e comecei a jogar minhas roupas dentro. Ao ver a cena ela começou a pedir que eu não fosse embora, que eu era tudo que ela queria na vida. Vendo que não me abalei ante seus apelos ela se pôs a chorar e começou a me xingar. Xingou-me de uma maneira tão impiedosa que, por um milésimo de segundo ponderei recomeçar a briga que havíamos acabado de encerrar como dois animais no cio.
Quando fechei a mala e comecei a vestir a roupa que eu estava usando antes ela começou a me bater. Desvairada. Chorava, gritava, xingava e me batia. Eu estava tão decidido que parecia que não estava vivendo aquela cena. Eu apenas continuei me vestindo calado enquanto ela me batia e ficava cada vez mais fraca.
Perdeu as forças e sentou-se nua no chão, sem importar-se com os cacos de vidro espalhados, os restos de um porta-retratos com uma linda foto nossa. Botou a cabeça entre os joelhos e chorou todas as lágrimas do mundo. Um choro convulsivo e desesperador que sequer me tocou. Havíamos ultrapassado o limite há muito tempo, muito embora só ali eu tenha me dado conta.
Peguei a mala e sai porta afora. Quando cheguei ao térreo do prédio o celular tocou. Era ela. Eu apenas atirei o aparelho no espelho d'água na entrada do prédio, sem atendê-lo. Dirigi-me até o carro, acendi um cigarro e olhei pela última vez para a janela do apartamento onde morávamos. Joguei a mala dentro do carro e sai guiando sem direção até parar em um desses botecos de esquina, tão imundos na entrada que chega a dar medo de pensar em como é o banheiro.
Pedi uma garrafa de uísque e adormeci na mesa do bar, embriagado com aquele uísque falsificado.
quinta-feira, 2 de outubro de 2008
Amor doentio
- Vai embora, Luís. Sai daqui, não quero te ver nunca mais!
- Giovana, me perdoa. Eu perdi a cabeça... me perdoa, pelo amor de Deus.
Cacos de vidro e sangue fresco estavam espalhados pelo chão da casa, enquanto uma ponta de cigarro manchado de batom queimava um pedaço do sofá na sala, enquanto isso Luís sentava no chão do corredor, apoiando as costas na porta do banheiro. Com o rosto entre as mãos, e os braços apoiados nas pernas chorava compulsivamente, um choro desesperador e amedrontador.
Dentro do banheiro Giovana chorava encostada no azulejo frio, manchado de sangue. Um choro silencioso, como se estivesse tentando não denunciar sua presença a algum monstro que rondasse pela casa à espreita de qualquer movimento seu. Enquanto chorava, absorta em seus pensamentos não ouvia através da porta do banheiro o choro convulsivo do homem que amou durante tantos anos. Apenas chorava silenciosamente e pensava em dar Um basta à sua vida.
Luís desfazia-se em prantos e soluçava de maneira quase convulsiva enquanto pegava um caco do porta-retratos que arremessara na parede e cortava os próprios pulsos. "Se não for pra viver com ela, que tudo mais vá pro inferno", pensava enquanto cortava os próprios pulsos, sem imaginar que dentro do banheiro Giovana tomava todos os comprimidos que encontrara no armário.
Agora calado, aguardava a morte de braços estendidos, sangrando pelos cortes de precisão cirúrgica que havia feito em seus próprios pulsos, a despeito do instrumento rudimentar do qual dispunha, e se olhava na foto que estava ali perto dentro dos restos do porta-retratos, uma foto onde sorridente, carregava a então noiva em seus braços, num momento de amor primaveril e radiante. Foi então que se pôs a chorar novamente até perder a consciência. Chorava novamente aquele choro bestial e nem percebia a fumaça que preenchia o ar do corredor.
Morrera naquela mesma posição, vigiando a porta do banheiro onde estava a mulher que adorava mais que tudo nesse mundo, enquanto o fruto de seu esforço, o apartamento que dividiam, era consumido pelo fogo que se alastrava pelos tapetes, carpetes e cortinas.
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
O cheiro que precede a chuva
Acontece que nem sempre foi assim. Antes havia alegria e vigor. Antes havia vida. O fato é que meu mundo tornou-se cinzento desde que meu amor morreu. Engraçado falar isso assim de maneira tão displicente: "meu amor morreu". Nunca percebi o quanto isso soa ridiculamente emotivo e pensando bem, agora que isso soa demasiadamente emotivo percebo que acabei me tornando malditamente frio: o tipo de pessoa que eu desprezava.
Caminhando até o carro sinto aquele cheiro de terra molhada que precede as chuvas após o período da seca nesta savana maldita que é o cerrado do Planalto Central. Esse cheiro me traz tantas lembranças. Encontros, desencontros, brigas, tréguas, realizações e frustrações. Dizem que isso acontece porque raramente os sentimos por estas bandas, já que a chuva é escassa por aqui, mas eu prefiro acreditar que é porque eu sou ridiculamente emotivo. Preciso resgatar alguma coisa boa do passado.
Ao entrar no carro tiro a gravata e desabotôo o colarinho em busca de ar, especialmente aquele ar com o cheiro que precede a chuva. Então fico lá sentado divagando experimentando o meu passado distante e o meu passado recente. Lembro-me de Júlia por alguns instantes e procuro afastar esses pensamentos. Ligo o carro e o dirijo até minha casa.
Lá chegando eu entro, abro todas as janelas, desligo todas as luzes e abro uma garrafa de Cabernet argentino. Fico no escuro sentindo aquele cheiro especial que me trazia de volta o passado até mesmo mais do que minha própria memória e a lembrança de Júlia inevitavelmente ressurge. Fico lembrando nossa última conversa, de quando ela me contou o quanto achava miserável por sentir pena de mim mesmo. Ela achava que eu tinha potencial, mas que eu mesmo me sabotava. Por fim disse que já não sentia mais a mesma coisa por mim, que estava gostando de outro e que estava indo embora de minha vida. Saiu sem me dar oportunidade de falar nada, não que eu quisesse, mas acho que merecia essa oportunidade. Simplesmente virou as costas e saiu. Eu fiquei na janela acompanhando a sua partida e sentindo esse mesmo cheiro que sinto agora. Foi esse o dia que meu amor morreu.
terça-feira, 19 de agosto de 2008
Felicidade
Costumava acordar de bom humor e via em todos um leve vislumbre do que seria uma parte da felicidade. Estava convencido de que quando a encontrasse não seria aos pedaços, mas sim completa e intacta. Ele acreditava em felicidade parcial, aquilo que comumente conhecemos como momentos felizes, para ele eram apenas uma parte da felicidade que nos seria possível alcançar, mas que rapidamente se desfazia porque a felicidade quando não é completa tende a se dissipar nas agruras da vida.
Essa forma de pensamento levou Stanley a viver em sua vida uma procura incessante e incansável pela felicidade. Durante os trinta primeiros anos de sua vida fora guiado por um positivismo inigualável e alcançou sucesso em quase tudo que fez. Um ótimo salário em um trabalho invejável, o amor de uma bela mulher com a qual casou-se ainda jovem e a conquista de todos os sonhos de consumo que uma remuneração alta poderia proporcionar. Stanley tinha em mente que só seria feliz se o fosse por completo e em todas as esferas da sua vida.
No ano em que completou trinta e um anos de idade Stanley começou a se perguntar porque ainda não conseguira ser feliz. Tinha uma bela casa, uma bela esposa que o amava, estava sempre com o carro do ano e sua carreira estava em plena ascenção. O problema é que nunca, em nenhum momento, todas áreas da sua vida estiveram plenamente bem ao mesmo tempo. Quando o trabalho estava bem, acontecia alguma briga com a esposa e vice-versa.
Houve um único dia em que estava num excelente momento com sua esposa, chegando no trabalho fechou um negócio espetacular que rendeu-lhe uma promoção. Decidido a ir comemorar com a esposa pediu para sair mais cedo da empresa e, chegando ao estacionamento, seu carro não estava mais lá: havia sido roubado. Adicionalmente enquanto estava na delegacia fazendo o boletim de ocorrência sua mãe liga informando que o irmão havia sofrido um acidente de moto. Sua felicidade completa durara apenas alguns minutos.
Desde então Stanley passou a se perguntar o que era a felicidade e por que ele não conseguia ser feliz. Mergulhou em uma depressão profunda. Triste, seu trabalho já não rendia mais e começou a cometer deslizes que o levaram a uma demissão. Desempregado e à procura da resposta para o motivo de sua falta de felicidade perdeu a esposa e a vontade de viver.
Se patrimônio foi aos poucos dilapidado pelos credores e Stanley terminou seus dias deitado em um beco fétido, brigando com outros mendigos por um pedaço de carne podre. Em uma dessas brigas acabou sendo esfaqueado mortalmente. Enquanto agonizava, o sangue jorrando pela boca, Stanley vislumbrou seu passado. Então sorriu e, sentindo-se realizado, pensou: "eu era feliz e não sabia".
quarta-feira, 23 de abril de 2008
Timidez Subserviente
Seu péssimo desempenho com as palavras quando enfrentando a situação do galanteio rendeu-lhe a fama de sangue de barata. Fernandinho engolia seco e nada dizia, porque no fundo sabia que merecia a indesejada alcunha. Incomodava-o o apelido quase tanto quanto o embaraço no trato com as mulheres.
Certo dia, em casa, resolveu tomar uma atitude e por-se a galantear todas que aparecessem em sua frente, até sentir que tinha naturalidade suficiente durante uma conversa banal sobre um assunto qualquer, tendo como meta a conquista. Treinava o cortejo, gestos e ensaiava diálogos dos mais desbaratados. Quando sentiu-se seguro seguiu para a rua e tentou colocar em prática o que havia treinado.
Desengonçado e acanhado, Fernandinho abordava as transeuntes. As faces ruborizadas ardiam num fogo de pudor e cautela inimagináveis em qualquer outra pessoa. Essa atitude defensiva e subserviente servia de pedestal para as mulheres que prontamente o ignoravam, isso quando não o destratavam. Essa onda avassaladora de negativas e humilhações fez com que no peito de Fernandinho crescesse uma revolta hedionda para com a vida.
Triste, ultrajado e macambúzio, Fernandinho retirou-se para a proteção de seu lar, sem imaginar que levaria consigo as ofensas recebidas na rua. Essas manifestações indignas do poder feminino ante um homem de atitude condescendente acumularam-se e cresceram a tal ponto que dominavam agora os pensamentos do pobre rapaz. Desesperado ante a rejeição geral e desejoso de um dia conseguir ter um relacionamento qualquer que fosse com uma garota, perdeu o controle de suas faculdades mentais e mergulhou em um estado de morbidez obtuso.
Passou horas largado sobre o sofá, olhando para um ponto fixo. Quase uma estátua. Subitamente num estalo recobrou a consciência, levantou-se afoitamente e dirigiu-se ao quarto. Lá dentro, abriu o criado-mudo de onde tirou o revólver. Encostou-o em sua fronte e puxou o gatilho.
Um disparo seco, seguido de um baque. A queda de um corpo inerte. Fernandinho, 21 anos, morrera virgem.
domingo, 13 de janeiro de 2008
Redenção
Liguei o som ontem e o deixei fora de sintonia, como se comigo conversasse, como se algo não faltasse, como se o vazio não fosse palpável, como se o silêncio não fosse audível. Desliguei o som porque não fazia sentido. Concorda? Faz sentido não. Senti falta dele, doeu no corpo, doeu sim. Tentei ligar mas perdi um compasso, ele não iria atender, nem adiantaria. Olhei mais uma vez a janela, chovia a cântaros, eu me encontrava ilhada e imersa em mim mesma.
Peguei papel e caneta e me desafiei. Ia escrever pra ele. Só pra dizer que o amava sobre todas as coisas, e pra sempre, e se ele não voltasse eu haveria de enlouquecer, que já estava prestes a isso, mais um pouco eu raspava a cabeça. Escrever pra dizer que fiz tudo que é tipo de terapia e aquele vazio continuava em mim, aquele torpor não saía, aquela dor não sarava nunca. Escrever pra pedir perdão pelo egoísmo, mas que ele voltasse ligeiro ou eu não sei o que seria de mim.
Escrevi até não poder mais de dor nas mãos, os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar. Envelopei com carinho e cuidado, sem me dar conta no momento que eu não tinha o endereço dele. Mas ainda assim o fiz. Guardei o envelope como quem guarda tesouro na gaveta do criado-mudo, fechei as cortinas e me deitei.
Escrever liberta. Amar perdoa. Perdoar redime.
segunda-feira, 10 de dezembro de 2007
História suja
Cheguei ao bar do Rubens debaixo de chuva torrencial e logo percebi que Ana não estava em sua cadeira cativa. Senti falta da Coca sobre a mesa e do caderninho vermelho em que ela escrevia seus apontamentos. Acendi um cigarro e caminhei até o balcão. Rubens parecia um doido com uma espátula de cozinha na mão, tentando matar uma mosca. Estava realmente concentrado, a língua entre os lábios, suando.Tanto que não me percebeu. Finalmente matou o inseto incômodo e voltou para a chapa para terminar o frango a passarinho.
__ Rubens...
__ Oi.
__ Cadê a Ana?
__ Sei não.
__ Ela já esteve por aqui hoje?
__ Sei lá. Tava ocupado, não reparei.
__ Matando moscas?
__ Não é você que está desse lado do balcão.
__ Fala sério. São apenas moscas.
__ Não enche, Miguel.
__ Ok. Cadê os jovens em puberdade?
__ Quer perder no pôquer de novo?
__ Eles me embriagaram. E com um uísque vagabundo.
__ Sempre um ardil, Miguel. Sempre um ardil.
__ Não enche, Rubens.
__ Perdeu quanto da última vez?
__ Por que o interesse?
__ Apenas curiosidade.
__ Sabe que às vezes eu acho que eles agem a mando seu?
__ Bebe, Miguel. Bebe.
Ele apanhou um copo embaixo do balcão e me ofereceu uma dose de cachaça vagabunda, fabricação do próprio, que tinha a coragem de dizer que era material de qualidade. Nunca recusei um copo e ainda estou vivo. Conheci abstêmios que morreram aos 30. Pobres coitados.
Foi então que a Ana entrou no bar, de súbito, esbaforida e ligeiramente pálida. Ela sempre foi um tanto quanto elétrica, mas a forma como ela dizia frases sem nexo me deixou assustado.
__ Ei. Aconteceu alguma coisa? Está tudo bem?
__ Acabei de arranjar briga com um cara.
__ Que cara? Por quê? Diz!
__ Porra, eu tava entrando no bar e o cara me chamou de princesa. Você sabe que eu detesto isso.
__ Hum. E aí?
__ Aí eu respondi que princesa de cu é rola. E arremessei minha latinha na cabeça dele.
__ Ana, pelo amor de Deus. E aí?
__ E aí eu saí correndo, ué!
__ E ele?
__ Tá entrando. Atrás de você.
Ana deu a volta e se escondeu sob o balcão. Rubens pressentiu o perigo, alarmado, e segurou a espátula nas mãos. Mas não ia adiantar muito. O cara era um dos maiores homens que eu já havia visto, e tinha uma cara de psicótico que me fez rever toda a minha vida em câmera lenta.
__ Cadê aquela vaca?
Ele estava encharcado de cerveja, e apesar de me ver em meus últimos momentos, não pude evitar me lamentar pelo desperdício. Sei, sei. Mas é melhor morrer de uma forma espirituosa.
__ Ei. Não fale assim – eu disse para o trasgo, num ato inédito de coragem idiota.
__ E o que você tem a ver com isso?
__ Não te interessa. Só não permito que você se refira a ela e a mais ninguém nesse recinto dessa maneira.
Os acontecimentos se seguiram de maneira muito rápida. Ele sacou uma garrafa vazia da mesa ao lado, eu corri feito um idiota e o Rubens levantou a espátula de um jeito pateticamente ameaçador. Eu caí, e antes de cair ainda pude sentir o sangue quente na minha nuca. E então eu apaguei.
*
Ouvi uma voz distante.
__ Miguel? Miguel?
A vista foi esclarecendo aos poucos...
__ Miguel?
Quando consegui recobrar a consciência, me deparei com uma enfermeira debruçada sobre mim no que seria, certamente, uma cama de hospital.
__ Puta que pariu, de novo?
__ Ahn?
__ Nada...esquece. Quem me trouxe aqui?
__ Foi um tal de Rubens. Ele está no quarto ao lado.
__ Cara, o que aconteceu com ele?
__ Bem...vocês chegaram aqui há uns dois dias. Você estava desmaiado e ele tinha um buraco enorme na barriga, aqui assim, do lado.
__ Meu Deus!!! Ele está bem?
__ Sim, sim...ele estacionou uma Belina aqui na frente do hospital, buzinou e desmaiou. Fizemos a sutura, mas ele já tinha perdido muito sangue. Mas já está bem agora.
__ Posso falar com ele?
__ Está dormindo. E você não deve sair da cama, não por enquanto, levou uma pancada muito forte na cabeça.
__ E a Ana?
__ Que Ana?
__ A Ana. Estava conosco no bar do Rubens, entrou aquele ogro querendo bater nela e...
__ Miguel, ainda não sabemos o que aconteceu. O tal do Rubens acordou perguntando por uma espátula e desde então não diz coisa com coisa.
Me levantei apressado, mas a enfermeira me deu um mata-leão e eu voltei a deitar, resignado e dolorido, olhando o teto estrelado e me perguntando se a morte estaria próxima novamente.
__ Miguel, você não deve se levantar.
__ Mas eu preciso saber da Ana.
__ Mas não tem nenhuma Ana aqui, eu já disse! Quer me contar o que houve?
__ Não, obrigado.
Fiz cara de emburrado, mas dei a entender que não me levantaria de novo. Ela pareceu aceitar, pois me deixou sozinho no quarto, fechando a porta atrás de si. Esperei cinco minutos pra me levantar. Meio tonto, tirei aquele pijama verde ridículo e vesti minhas roupas ensangüentadas. Já estava com a mão na maçaneta quando esta girou e Rubens entrou, ainda de pijama e com uma expressão conspiratória no rosto.
__ Miguel, eles roubaram minha espátula.
__ Rubens, eu...eles o quê?
__ Roubaram minha espátula, a minha espátula! Meu Deus, onde você conseguiu tanto sangue?
__ Rubens, tá tudo bem?
__ E o que você acha? Você tá todo ensangüentado, eu não tenho mais a minha espátula e não estamos no meu bar! Quer me dizer o que aconteceu?
__ Não temos tempo. Vamos. Temos de sair daqui, e agora.
__ Não vou a lugar algum sem minha espátula.
__ Ah, Rubens, não fode. Anda logo.
Puxei o Rubens pelo braço, impaciente. Ele ofereceu resistência, então fui arrastando aquele imbecil pelos corredores. Conseguimos passar despercebidos pela maioria dos funcionários, e foi aí que constatei, com desgosto, que estávamos em um hospital público. Não consegui disfarçar meu nojo e terror, e julguei que por isso uma mão me puxou para trás com violência. Dei o combate, me embolei com ele no chão e o Rubens saiu gritando pela espátula. Só depois de socar meu oponente repetidamente me dei conta de que era o Fernando.
__ Seu imbecil! O que você pretendia?
__ Eu tava te gritando! Você nem me olhou!
__ Mas eu não ouvi meu nome nenhuma vez!
__ Mas eu tava te gritando! Gritei “pai” feito um condenado.
__ Ah, claro. Às vezes esqueço que tenho um filho. Tá de carro?
__ A Belina do Rubens tá aí no estacionamento.
__ Vem. Vamos sair daqui.
Fernando vestiu Rubens com sua jaqueta, disfarçando o pijama verde horrendo. Saímos os três naquela atitude furtiva, como se tivéssemos roubado algo além da nossa própria liberdade, tão toscamente usurpada naquele açougue mantido pelo Estado. Fernando ia caminhando à frente pelos corredores, nos avisando sobre funcionários e, quando necessário, os distraindo. Eu seguia logo atrás, tapando a boca do Rubens enquanto ele tentava, em vão, reclamar a maldita espátula.
Alcançamos a entrada. Atendentes mal humorados protelavam o serviço, enquanto cidadãos contribuintes e, de um modo geral, bem trouxas, imploravam pelo atendimento que necessitavam. Mas não havia como garantir que não prestariam atenção na gente, até porque o Rubens continuava agindo feito doente.
__ Fernando!
__ Oi, pai.
__ Para com essa porra de “pai”, eu já disse. É o seguinte. Você vai ter que inventar alguma distração pra eu poder sair daqui com o Rubens.
__ E eu faço o quê?
__ Se vira. Você não nasceu quadrado.
__ Tá, né! Não tem outro jeito.
Ele saiu correndo e passou direto pela porta de entrada. Ninguém prestou atenção nele. “Filho da puta”, eu pensei...
E de repente ele voltou correndo, alarmando a todos para o fato de um segurança estar batendo no Dr. Almerindo. Todo mundo correu para fora, inclusive Rubens e eu. Fernando apontava para a parede lateral do hospital, gritando a plenos pulmões:
__ Já estamos indo, Dr. Almerindo!!! Já estamos chegando, já consegui o socorro!!!
Correu, e todos o seguiram. Aproveitei o ensejo para correr desabalado até a Belina cor de goiaba do Rubens, tentando convencê-lo de que haveria uma espátula lá dentro. Nunca achei que um carro pudesse estar tão distante, e enquanto corria agradecia a Deus por ter dado um tantinho de cérebro ao Fernando, e não aquela noz ressecada que a mãe dele tinha na caixa craniana e nunca usava.
Mas...ouvi um tropel de passos em nossa direção e olhei instintivamente para trás. Fernando fugia desesperado dos funcionários do hospital, que gritavam “não tem nenhum Dr. Almerindo nesse hospital, filho da puta!!!”. Fiquei parado, sem reação. Rubens despiu a jaqueta e correu de volta ao hospital, o pijama balançando de maneira tão patética que quase me fez rir. Mas não tinha como ser espirituoso num momento como aquele. Eu só consegui ficar parado, pensando tristemente: “puta merda...”.
__ Quem de vocês roubou minha espátula?
__ Ele! Foi ele que fugiu! Cadê o outro que tava com ele?
__ Eu quero a minha espátula, seus usurpadores! Ela é minha, eu paguei por ela!
Três seguranças arremessaram o Rubens no chão, que ainda bradava pela espátula infeliz. Registrei nota mental de, em uma próxima oportunidade, amaldiçoar Rubens e todas suas gerações vindouras por ele estar agindo de maneira tão estúpida. Olhei para a Belina goiaba, desejoso, e para o Rubens, furioso. Me debati num duelo interior sangrento, e a amizade de Rubens falou mais alto. Maldito.
Corri em direção a eles, tentando apaziguar a situação. Algum funcionário descerebrado do hospital achou que eu ainda sangrava e deu o alarme, ao que dois ogros enfatiotados em ternos mal cortados tentaram me agarrar. Fernando pulou nas costas de um deles e foi arremessado ao chão, tal qual um saco de batatas. Por um momento a chama da paternidade queimou em meu peito, mas eu fiz questão de mandá-la às favas e tratar de me proteger. Não sei quando, nem como, mas antes de apagar pela 2ª vez consegui ver Ana e cinco policiais fortemente armados correndo em nossa direção. Olhei para o telhado do hospital e vi dois franco-atiradores. Uma luzinha vermelha piscou nos meus olhos. Achei que fosse o laser dos snipers, mas era só sangue. Em um último esforço contra a escuridão que descia, ainda pude ouvir Rubens urrar de dor, e vi Fernando socar um dos funcionários.
*
Acordei sem companhia dessa vez. Estava em um cômodo ligeiramente escuro, quente, deitado e amarrado em um catre duro. Uma mistura de sons invadia minha cabeça e não me deixava pensar direito. Tentei me acalmar, esperar o zunido constante passar. Um tempo depois, consegui distinguir os sons. Eram dois caras conversando.
__ Aquela galega do plantão noturno?
__ Não, a outra. A que entra depois dela, de manhã.
__ A Márcia?!
__ Essa mesma. Fode bem pra caralho.
A esta altura, e considerando todos os fatos bizarros acontecidos, ouvir falar de sexo finalmente me trouxe um pouco de razão: eu ainda estava vivo e o mundo ainda era o mesmo.
__ ÔÔÔÔÔÔUUU!
Silêncio.
__ Eu sei que vocês tão aí fora, caralho!
__ O Miguel acordou...
__ Vai lá.
__ Por que eu?
__ Anda logo.
Um rapaz franzino, de uns vinte e poucos anos, meteu a cara na porta.
__ Boa tarde, Miguel.
__ Boa tarde...boa tarde é o caralho! Diz aí, que porra é essa? Tou amarrado por quê?
__ Olha, a culpa foi sua – ele foi entrando, cauteloso e inseguro – porque quando o enfermeiro foi aplicar o analgésico, você deu um soco nele e quebrou a agulha dentro da veia. Deu um trabalho absurdo pra tirar.
__ Ah...não me lembro disso...
__ Normal. Me admira que ainda esteja vivo, com esse galo na cabeça!
__ Mas...onde você disse que eu estou mesmo? Cadê a Ana, o Fernando e o Rubens?
__ Cadê quem?
__ O Rubens. O cara da espátula.
__ Ah. Não sabemos. Foi o único resgatado pela doida que chegou com os federais.
__ A Ana.
__ Deve ser essa aí. Ela é gostosona?
__ Quem?
__ A Ana. Porque a que veio com os federais era gostosona.
__ Sorte sua eu estar amarrado.
__ Ai, valentão.
__ Me diz onde eu estou.
__ Na ala psiquiátrica do hospital.
__ Mentira.
__ Juro por Deus.
__ E como foi que eu vim parar aqui?
__ É uma longa história. Escuta...você esteve desacordado os últimos dois dias, e não deu trabalho nenhum pra gente. O esquema é o seguinte: conseguimos contrabandear umas cervejas pra dentro do hospital, mas eu preciso de garantias de que você não vai nos dedurar. Pra isso, vamos deixar você beber. Mas sem tentativa de fuga, ouviu bem?
__ E como é que eu vou beber, ficar bêbado e fugir se eu tou amarrado, filho da puta?
__ A gente vai te desamarrar. Isso não é óbvio? Quer dizer, não desamarrar de verdade, só um braço, o suficiente pra você segurar a lata. Pode ser?
__ Porra, claro. Nem sei quanto tempo tem que eu não bebo.
__ Então tá certo. Agüenta aí.
__ Ei. Espera. E o Fernando?
__ Quem, o chato? Ele é seu filho, né?
__ Nem adianta me olhar assim, a culpa não é minha, foi criado pela mãe.
__ Tá. Enfim. Tudo que sei é que ele não conseguiu fugir. Tinha uns quatro seguranças em cima dele.
__ Hum.
Um assomo de remorso invadiu meu peito. Meu filho tentou me ajudar e eu não fiz porra nenhuma por ele. Mas o remorso não demorou a dar lugar a uma excitação juvenil quando o outro enfermeiro, gordo e de bigode, entrou com uma caixa de isopor no quarto.
__ Deus seja louvado. Nunca quis tanto uma cerveja na minha vida.
__ Espera, filhote. Vou desamarrar o braço direito. Se comporta.
__ Ei, alguém tem cigarro?
__ Isso aqui é um hospital, porra.
Olhei incrédulo para o enfermeiro. Depois parei pra pensar na situação e tentei me lembrar com clareza de todas as coisas esdrúxulas que me aconteceram desde que a Ana entrou no bar, dias atrás, nem sei mais quantos. Puta merda. Sempre sobra pra mim, sempre. O enfermeiro gorducho que apelidei carinhosamente de El Bigodón desamarrou meu braço e me deu uma cerveja. Aquele gole gelado me pareceu irreal. Bebi a latinha em pouquíssimo tempo, e fique tonto de uma maneira tão absurda que me recusei a acreditar. Nem quando eu tinha 15 anos e tava começando a beber eu ficava bêbado tão rápido.
__ Seus desgraçados. Me entupiram de remédio e depois me oferecem álcool. Isso é perverso. Doentio.
__ E você tá reclamando? Aquela puta te deixa apanhando, duas vezes pelo que tou sabendo, a gente te dá uma cerveja geladinha e você ainda reclama?
__ E quem é a puta mesmo?
__ A tal da Ana. Ou alguma outra puta te deixou apanhando esses dias?
Joguei a latinha de lado e dei um soco gostoso naquele bigodudo desgraçado. O enfermeiro magricela me olhou assustado.
__ Eu avisei, seu filho da puta. Agora me tira daqui.
Os enfermeiros se olharam, avaliando a situação. Resolvi partir para a linguagem universal, o esperanto do funcionalismo público: apelei para o suborno.
__ O negócio é o seguinte: o Rubens, da espátula, é meu melhor amigo. E tem um bar. Tenho acesso livre, a hora que eu quiser. Vocês me liberam, em segurança, e eu arrumo uma ou duas garrafas de Red Label pra vocês. Johnnie Walker, original.
O argumento final, preciso e certeiro. Eles me desamarraram e me deram outra cerveja. Mas o bigodudo parou de chofre, me olhando desconfiado.
__ E como sabemos que você não mente? Como sabemos que você é confiável?
__ Amigo, você bebe. Eu bebo. Não confie em alguém que NÃO bebe.
__ Você é cheio de argumentos, hein.
__ Tá, só me tira daqui.
__ Só um minuto. Vou pegar suas roupas no armário.
El Bigodón trouxe meus trapos. Nunca fiquei tão feliz em vestir uma roupa tão imunda. Exceto, é claro, naquele dia bizarro em que concebi o Fernando. Outra história.
Vestido, tomei mais uma latinha e saí andando pelos corredores, tonto feito helicóptero com hélice quebrada, escoltado pelos dois enfermeiros. Parei na porta do hospital e rabisquei meu endereço atrás de uma receita de remédio que teoricamente era pra mim. Disse a eles que contassem uns dois dias pra aparecer, e que levassem uma espátula. Eu precisava ressarcir o Rubens.
Saí andando pelas ruas, me perguntando aonde eu deveria ir primeiro: à minha casa, à casa da Ana, ao bar do Rubens ou ao primeiro boteco que aparecesse. Tendo em vista minha condição ligeiramente bêbada e a ausência de dinheiro, optei por ir até a casa da Ana. Uma caminhada de aproximadamente uma hora e meia.
Caminhar me fez melhorar. Tudo bem que vi um cachorro de três patas passeando com sua dona, mas tomei como resultado da mistura bebida + remédio, que bombeava meu cérebro, e não dei muita importância.
Cheguei à praça em frente à casa da Ana e um mal estar percorreu meu corpo. Onde estavam os mendigos de sempre? Estranho. O Alegria não estava lá. Alegria, o flanelinha que sempre estava lá, não estava lá. E ele não saía daquela praça nunca.
Decidi refazer meu plano, aquela situação era muito incomum. Não ia entrar de uma vez na praça. A lembrança dos snipers e daquele bando de agentes armados ainda estava vívida em minha cabeça. Dei a volta por trás de um bloco comercial e parei numa esquina, perto da padaria.
De longe eu reconheci um dos agentes que acompanharam Ana ao hospital, aquela cicatriz tosca que ia da boca até a orelha era inconfundível. Ele estava à paisana, mas parecia em estado de alerta. E todo agente à paisana fica de óculos escuros e aquela pose de tira do FBI.
Revirei o lixo da padaria e encontrei um pedaço de pau, grande até, acho que armação de cama. “Quem não tem cão, caça com Deus”, dizia meu avô, abençoado seja. Segurei o pedaço de pau nas costas, gargalhando internamente com a excelente piada que isso daria no balcão do bar do Rubens, me enchi de coragem e atravessei a praça. Já estava quase no centro quando o agente me abordou.
__ Ei, você.
__ Fala, Tripa Seca.
__ Como é que é?
__ Nada. Nada não. Posso ajudar?
__ Tá indo aonde?
Fingi indignação, e ele percebeu que a abordagem não tinha sido das melhores. Acho que isso explicava a cicatriz na cara dele.
__ Me sentar num banquinho! Pensar na vida! Refletir!
__ Ah, não me diga.
__ É sério. Quer conversar?
O agente titubeou, mas aceitou o convite. Eu enchi o saco dele, coitado, e não sabia como me livrar. Falei do meu pai e como ele queria que eu fosse regente de orquestra, como ele. Falei da minha mãe e de como ela ainda me abrigava em casa, mesmo eu tendo mais de 40 anos. Falei de meu filho nascido aos meus quinze anos e de como a mãe dele, aquela riponga doida, levou o moleque pra uma sociedade alternativa e só me voltou agora, 18 anos depois, pra deixar um completo estranho sob meus precários cuidados. Falei de como eu não o suportava, de como eu odiava a mãe dele, de como eu odiava meu pai e de como minha mãe não me suportava. Falei do meu melhor amigo, que ele podia ter sido bem sucedido se não fosse tão conivente com os bebuns folgados que penduravam a conta há anos, eu inclusive, que nunca paguei um único copo de cerveja que bebi no Rubens. Falei da mulher que eu amava, de como ela tinha uns 20 anos a menos e não me amava, nem queria saber de mim. Falei, falei, falei. Falei tanto que o agente foi atrás de umas cervejas pra gente, e sentou e bebeu e falou. Falou, falou, falou. Ele era fraco pra bebida, logo vi, pendurou a cabeça no meu ombro e reclamou horrores do superintendente.
__ Mas o pior de tudo é aquela filha dele. Meu Deus, eu não suporto aquela mulher.
__ Por quê?
__ Porra! Ela pensa que é a Polícia Federal! Dia desses ela destacou um aparato completo da PF, com snipers e tudo, só porque um amigo dela tava virtualmente preso num hospital público. E agora eu tenho que ficar aqui, zumbizando a casa dela.
__ Sério?
__ Tou falando! Parece que o cara é o amor da vida dela, mas é só um velho desocupado. Isso foi o que o pessoal comentou depois.
__ Ah, não. Eu tenho certeza que ele tem um bom coração.
__ Pode até ser. Ou não. O cara é dono de boteco, pelo amor de Deus! E passou os últimos dias perturbando Deus e o mundo por causa de uma espátula.
__ Como é que é, amigão?
Meu estômago revirou, deu voltas. Ana e Rubens? Seria possível? Não, o Rubens jamais faria isso comigo, sabia que eu a amava, sempre soube.
Foi aí que vi Rubens sair da casa dela, acompanhado dela. Caminharam felizes e quase saltitantes, as mãos dadas, até a padaria. Me levantei num impulso absurdo, como se o banco estivesse em brasa, e corri até eles, brandindo o pedaço de pau tal qual espada. Rubens me olhou estupefato, sacou a espátula do bolso do jeans, mas não ofereceu resistência alguma.
Dias depois, acordei num lugar que parecia uma cela, suja e mal cheirosa. “Vazia, Deus é bom, Deus é justo”, eu pensei. Me levantei com alguma dificuldade e divisei Fernando, ladeado por um carcereiro e com uma marmita nas mãos, do outro lado das grades.
__ Oi, pai.
__ Lá vamos nós de novo. Puta que o pariu.
***
O primeiro post realmente escrito a quatro mãos, enquanto bebíamos idéias e trocávamos cervejas. Escrito dia 09/12/2007, numa das mesas da Adega da Cachaça.
segunda-feira, 15 de outubro de 2007
Carta de Carlos para Carolina (parte I)
Carolina,
Escrevo para nos aproximarmos um pouco mais um do outro. As coisas têm sido difíceis entre nós dois devido a essa maldita distância que, ao mesmo tempo em que enleva e potencializa meu amor por você, tem me deixado cada vez mais doente de saudade. Não sei nem ao certo como começar, tendo em vista que esta é a primeira carta que eu escrevo de punho próprio. Acho melhor começar explicando porque estou escrevendo uma carta ao invés de enviar um e-mail. Aliás, vou falar de como anda a minha vida. E logo você vai entender o porquê da carta.
Essa semana parece que todas as forças que regem o mundo resolveram conspirar contra minha pessoa. Segunda-feira eu acordei passando muito mal. No domingo eu estava com muita preguiça de cozinhar e resolvi jantar fora de casa, mas acho que eu ainda não me acostumei a essa cozinha mineira tão cheia de temperos. O resultado foi que eu só consegui chegar no trabalho no meio da tarde.
Na terça, por causa do trabalho acumulado, em função da segunda mal trabalhada, eu tive que levar trabalho pra casa. Recebi um e-mail de um colega do trabalho que estava com vírus e meu computador foi pro espaço. Então, resolvi me acalmar dando uma volta. Lembra que na terça você ficou de me ligar? Então, durante a volta caiu uma chuva torrencial e eu estava sem guarda-chuva no meio de um descampado. Cheguei vivo em casa, mas meu celular vai precisar de uma missa de sétimo dia, porque ele não quer mais ligar. O coitado ficou todo encharcado!
Quarta-feira eu cheguei atrasado no trabalho porque eu usava o maldito celular como despertador pra acordar. O chefe me passou um pito daqueles por ter chegado atrasado duas vezes na semana, e o pior de tudo, por estar com o trabalho atrasado. Ele me falou coisas horríveis e eu, já muito puto com a minha semana de azar, acabei respondendo a altura. Não fui demitido, mas acabei recebendo uma advertência... se eu receber mais uma volto pra Brasília antes do esperado. Ah, isso seria realmente ótimo. Só que se eu voltar é sem emprego e com alguma dificuldade de ser contratado em qualquer lugar que seja, porque o homem é cheio de contatos.
Na quinta-feira as coisas começaram a andar melhor, porque eu recebi como pagamento de uma dívida uma garrafa de uísque bem carinha. O cara me devia R$ 50,00 e a garrafa valia R$ 89,00 (eu fui ver o preço pra saber se eu não tinha sido enganado, né). Eu achei que a sorte estava começando a mudar, então chamei o Klaus pra consertar meu computador. Aquele bêbado só veio porque prometi dar o uísque a ele. Eis que chegando aqui, terminando de arrumar o micro, ele abre a garrafa e dá um gole: o uísque era falsificado. Ele ficou puto e me obrigou a comprar outra garrafa pra ele "porque ele tinha saído de casa só pra isso". Acho que ele não deixou a internet funcionando por vingança.
Hoje é sexta-feira e graças a Deus não é dia 13. No trabalho tudo correu bem, apesar do chefe ter passado o dia me olhando meio atravessado. Ainda assim eu consegui colocar o trabalho em dia. Saí de lá e passei na Vó Dita, aquela benzedeira que mora na esquina aqui da rua. Amanhã eu compro outro celular e poderemos pelo menos nos comunicar através de mensagens. O Klaus me deixou sem internet, e enquanto eu não arranjar outro uísque, sei que ele não vai dar a mínima.
Queria muito que você estivesse comigo. Apesar de saber que problemas assim vão surgir, penso que estar com você facilitaria o processo, porque tua presença me acalma. Mal posso esperar pela hora de te ver, te abraçar, mal posso esperar pela hora de esquecer esses dias só por estar perto de você.
Me dê notícias suas, amor meu. Como se não bastasse a distância, o silêncio só aumenta a ausência. E me diz o que achou da letra. Se for o caso, te escrevo uma carta por semana.
Não se esqueça que te amo, e sempre que puder, me deseje boas vibrações. Essa semana foi um completo pesadelo. Chego a ter medo do que está por vir.
Beijos,
Carlos Cavalcante Neto
O primeiro de uma série de posts em dupla.
segunda-feira, 8 de outubro de 2007
Amar é para os loucos
Madalena... Madalena... ruiva de olhos azuis, corpo esguio, busto farto e um quadril de deixar louco o mais sério dos homens. Foi criada com a melhor embalagem e o pior conteúdo. E enquanto eu termino de me arrumar para sair e ver se me encontro com essa mulher que é a minha doença, a minha paixão e o meu desespero, não deixo de pensar no quanto eu sou ridículo, talvez até mais ridículo que meus predecessores porque eles foram humilhados sem nem saber com quem lidavam, ao passo que eu já conheço toda a história de Madalena. Sou uma ovelha procurando pelo lobo.
O telefone toca, eu corro feito um louco para atender. Retiro o telefone do gancho, tento me recompor, afinal de contas correr 3 metros com obstáculos é uma tarefa que tira o fôlego de qualquer fumante. Regulo a respiração, coisa que infelizmente não consigo fazer com meu coração que bate de maneira louca e desordenada ante a expectativa de ouvir a voz dessa mulher que para mim é ao mesmo tempo maravilhosa e obscura.
- Alô?
- Oi, quem fala?
- É o Jorge.
- Jorge é Madalena, tudo bem?
- Tudo.
- Então, meu bem, eu estava pensando em passar no Hell'o'rama hoje, aquela boate nova que abriu na Independência.
- Tudo bem pode ser.
- Compra uma carteira de cigarros pra mim, eu estou sem dinheiro.
- Claro, meu anjo. O que você quiser.
- Te pego que horas?
- Me encontra lá eu vou de carona com o Zé Luiz, meu ex-namorado.
- Tudo... tudo bem.
- Algum problema?
- Não de forma alguma, até logo.
- Até mais.
Desligo o telefone, em meio ao deslumbramento do telefonema, que foi tão esperado quanto inesperado, e à decepção de saber que ela não será somente minha nunca. Ela praticamente me avisou que eu não sou único na sua vida. Essa história de amizade com ex-namorado recente é conversa fiada. Ninguém mantém amizade com um parceiro de um relacionamento recém terminado a não ser que ainda haja sexo e cumplicidade. Agora estou indeciso entre a realização de um desejo voraz que me consome e me atormenta e a manutenção da minha dignidade, do meu amor-próprio. Ah, Madalena, não sei o que faria com você, mas tenho muito medo das coisas que eu faria sem você após tê-la possuído por um dia só que fosse.
Termino de me arrumar escovo os dentes e volto a me olhar no espelho me achando ainda mais patético que antes, talvez com um ar de homem humilhado, ultrajado por alguém que nem mesmo tem esse direito de ultrajar-me. Acho que estou ficando louco, dizem que amar é coisa de louco e eu concordo plenamente que as coisas se passam na minha cabeça em um turbilhão de sentimentos, lembranças, desejos e saudades de coisas que eu ainda não vivi de verdade, mas que minha mente, fantasiosa e infantil, criou e que no íntimo do meu ser eu acredito que foram cenas reais, que me renderam sensações carnais reais e das quais possuo até mesmo as cicatrizes que ninguém além de mim consegue ver.
Saio de casa, sigo direto para a Independência, lá chegando eu lembro que me esqueci de abastecer o carro e procuro o posto de gasolina mais próximo. Paro o carro e instruo o frentista:
- Completa, por favor.
Desço e vou á loja de conveniência comprar a carteira de cigarros e imaginem a minha surpresa ao encontrar Madalena aos amassos com o ex-namorado. E eu juro, por tudo que há de mais sagrado, não há sentimento mais humilhante para um homem do que ver outro concretizando o desejo mais íntimo que possui. Antes de ir ao balcão comprar o maldito cigarro eu caminho até o casal de pombinhos que está quase se comendo em público dentro da loja e mal nota a minha chegada, acendo o isqueiro e ponho fogo nos cabelos de Madalena. Ela demora a notar, mas quando dá por si já é tarde demais para salvar um fio de cabelo que seja. Então ela se põe a gritar e não sabe se chora se tenta me socar ou joga alguma coisa na própria cabeça para diminuir a dor das queimaduras no couro cabeludo. O pateta do ex-namorado ficou lá atônito sem saber o que fazer, olhava para Madalena, depois olhava para mim e permanecia imóvel com aquele olhar vidrado de quem não sabe o que está acontecendo ou às vezes até sabe o que se passa, mas não sabe como reagir à situação.
Eu avanço em sua direção, empurro Madalena em cima de uma estante de salgadinhos Elma Chips, o outro me olha com aquela expressão de medo. Ah... como eu adoro esse olhar de medo, ele nos torna mais fortes, mais destemidos, mais obstinados. Seguro o canalha pela gola da camisa e começo a socá-lo repetidamente. O primeiro soco pega logo abaixo da boca, ele tentou desviar. Eu bato a sua cabeça na parede com força, ele parece atordoado. O segundo soco é preciso: quebrei-lhe o nariz. Eu continuo a socá-lo e ele parece estar perdendo a consciência. Madalena se levanta e tenta me agredir. Eu a chuto, jogo o pateta do ex em cima dela e saio da loja de conveniência sob o olhar amedrontado de todos os presentes. Ninguém se atreveu a tentar me parar.
Volto para o carro pago o frentista e deixo uma gorjeta generosa. Ligo o carro e volto para casa, onde uma caixa de havanas e um Jack Daniels me aguardam. Amar é para os loucos.
sexta-feira, 28 de setembro de 2007
Carta de agradecimento
Por você eu abandonei todos os meus vícios e manias, adqüiridos ao longo de vinte anos de solidão e isolamento. Você foi a única pessoa que pôs fim à minha misantropia. Depois que você entrou em minha vida tudo mudou. Graças a você aprendi a tratar decentemente as pessoas, independentemente de quem elas sejam ou do que elas tenham feito no passado, porque a vida começa sempre agora e sua única direção é o futuro. Sua alegria de viver mudou meu humor e os planos que você tinha para o futuro eram deslumbrantes e contagiantes.
Lisa, você realmente foi a pessoa que apareceu na minha vida para me tirar do lamaçal fétido em que eu vivia, sempre sufocado pelos meus rancores, pelos meus desgostos e preso pela minha falta de fé e de esperança em um futuro decente para mim, ou para qualquer ser vivo da espécie humana. Hoje vivo meus dias com grandes planos e procuro sempre concretizá-los, como aquela viagem à Inglaterra que eu sempre te falei. Os pubs londrinos são indescritíveis.
Hoje faz um ano que nos separamos, e eu só achei que eu devia isso a você. Eu aprendi tanto com você a respeito da vida e a respeito do que é viver que seria, no mínimo, falta de respeito se eu voltasse a ser o homem de outrora. Eu queria dizer também que eu ainda te amo, e muito. E que você não faz idéia da falta que me faz o seu sorriso, o seu cheiro, os cafunés que você me fazia de manhã, as suas ligações ao cair da tarde sempre me pedindo para levar alguma coisa diferente para o jantar. A sua ausência, a princípio, quase me levou à loucura, tanto que eu quase voltei a ser aquela criatura sorumbática de antes, mas me apeguei firmemente a tudo que aprendi com você, às nossas lembranças e à alegria de viver que você me ensinou. Não valia a pena voltar ao buraco negro onde eu me escondia.
Prometo te escrever sempre, e te amar ainda mais com o passar dos anos, até o dia em que ela vier me buscar também. Aí então poderemos viver juntos novamente.
quinta-feira, 27 de setembro de 2007
Medo do inferno
quarta-feira, 25 de julho de 2007
A morte de William
Perdido, confuso e completamente agitado por ter escapado de uma tentativa de assalto, ele agora corre para o local mais próximo e mais movimentado. O sangue a escorrer de seu braço não é nada mais do que um corte profundo sem nenhuma conseqüência, desde que a ferida seja suturada imediatamente. Ele como auxiliar de enfermagem sabe disso, mas a visão do próprio sangue jorrando aos borbotões é de tirar do sério mesmo o mais calmo dos profissionais de saúde.
Correndo em direção ao shopping começa a sentir seu coração pulsando com mais força, calafrios se espalham pelo seu corpo e a respiração começa a ficar ofegante. William começa a sentir os efeitos do pânico, coisa que há muito não sentia. Desde que começara a trabalhar na área pediátrica do hospital sua doença praticamente havia desaparecido, as crianças haviam devolvido-lhe a alegria de viver.
Subitamente William começa a ficar tonto e seus pensamentos tornam-se cada vez mais confusos e desconexos. Lembranças de sua infância invadiam sua mente e subitamente ele pára para pensar no amanhã que não há de chegar se ele morrer, logo em seguida ele volta para o presente olha para o próprio braço e pergunta a si próprio como será o amanhã se ele de fato morrer, lembra-se da própria mãe, recém-viúva, e imagina o desespero dela ao lado de seu caixão velando o corpo do único filho.
Agora tonto demais para continuar William cai. Ele começa a chorar e soluçar e gritar alto de maneira desesperada, não é seu braço que dói, e sim seu coração. Dói imaginar a morte assombrando novamente a casa de sua mãe, o horror causado pela notícia, as inúmeras pessoas que dependiam dele direta e indiretamente, as crianças que estavam sob sua responsabilidade no hospital. E ele começa a ver todos esses rostos ao seu redor, com os olhos banhados em lágrimas e os rostos deformados pela tristeza e pela angústia, todos se perguntando: "Por que, meu Deus do céu?".
E é então que William se imagina no próprio velório e começa a crer que já está morto, que todos estão ali velando pelo seu corpo já em estado de decomposição. William desiste. Para de se debater e finalmente se deixa levar em direção às trevas que se abatem sobre seus olhos, e é assim então que William morre; de maneira covarde e sem sentido, como todas as pessoas morreram e como todas as outras ainda haverão de morrer.
quinta-feira, 21 de junho de 2007
Precipitação
Aquele sentimento que parece uma mistura de alegria e ao mesmo tempo tristeza invade-lhe o peito. Seus pesadelos o atormentam constantemente com as pessoas mortas de seu passado, mas a realidade é por demais dolorosa. É preferível sonhar com a morte de cada um de seus amigos a conviver com a certeza de que eles estão mortos. Em seus sonhos estão todos tão vivos, com rostos corados e cheios de carne, ao passo que agora, desperto ele sabe que lhes sobram apenas os restos mortais. Cadáveres carcomidos, roídos pelos vermes e pelo tempo.
Ele se levanta e caminha em direção à sala trombando nas paredes, os olhos desacostumados à falta de luz. O telefone para de tocar. Ele acende a luz, olha para o relógio de parede: 03:40h da madrugada. Desperto, sabe que não voltará a dormir. Abre a janela, acende um cigarro e se serve de uma dose de vodka. O telefone começa a tocar novamente.
Ele puxa um trago do cigarro, toma outra dose de vodka e fica se perguntando se deve atender ou não a ligação. E fica lá parado com a fumaça ainda dentro do peito, encarando o telefone fixamente e pensando o que mais poderá ter acontecido. A esta hora com certeza é alguma emergência.
Essa é uma cena como muitas outras que já viveu. Com certeza outra pessoa querida morreu. Tem sido assim nos últimos anos. O telefone toca de madrugada, ele atende e recebe a notícia da morte de algum amigo, ou de algum parente. Não consegue mais suportar o peso da saudade em seus ombros. Pai, mãe, dois irmãos, diversos amigos: o telefone toca, e a morte se faz presente. Putrefata, nefasta e pérfida a morte estava batendo novamente à sua porta agora.
Ele levanta, caminha em direção ao armário, pega o seu revolver calibre trinta e oito, destrava a arma, abre o tambor, coloca uma única bala, aponta a arma contra a cabeça e aperta o gatilho.
O peso do corpo o puxa livremente para o chão. Queda livre. E o telefone continua a tocar...
sexta-feira, 8 de junho de 2007
Acontecimentos
- Cala a boca, filho da puta!
E continuo a chutar suas costelas. Ele rola e eu finalizo com um chute na barriga. Escuto-o expelindo o ar com um som abafado. Afasto-me dois passos para trás e fico olhando o desgraçado jogado no chão. Ainda se mexia... pouco mas mexia. Por mim tudo bem, desde que nunca mais aparecesse por ali. Começo a procurar a arma que ele deixou cair, a mesma arma que usou pra me assaltar semana passada.
Hoje foi diferente. Hoje eu havia sido demitido por ser solteiro. Corte de pessoal na empresa... meu chefe tinha que demitir um funcionário e ele optou por mim porque todos os outros eram casados ou tinham filhos. Já voltando para casa um amigo me liga e diz que viu minha namorada com outro cara, e ele é do tipo que não mente. Ainda mais puto decido beber no primeiro boteco que encontro pelo caminho, entro no boteco e tomo todas. Na hora de pagar percebo que esqueci a minha carteira no escritório, pelo menos estou rezando para estar lá, só me falta perder a carteira. Deixei meu celular empenhado, depois volto pra pagar.
Saindo do bar, um pouco embriagado e com ódio da vida vem esse infeliz me assaltar. Tudo o que eu precisava era de uma válvula de escape... um bode expiatório. Tem gente que gosta de estar no lugar errado e na hora errada, e ainda por cima tentando fazer a coisa errada. Assim que ele me apareceu fui com tudo pra cima dele, acho que o cara não acreditou.
Agora que eu peguei a arma vi porque não morri: o imbecil assaltava os outros sem munição. Só usava a arma pra ameaçar. Fiquei ainda mais puto porque semana passada ele me roubou todo o dinheiro do aluguel, com essa arma sem balas. Ele está se arrastando, volto e dou outro chute na cara dele. Começa a chover.
A vontade que eu tenho é de bater na cara dele com essa arma até arrancar todos os dentes, mas minha mão ainda está doendo da surra que lhe dei. Decido ir embora e deixá-lo ali sozinho. Agora eu sou um homem furioso e armado. Só falta conseguir munição pra fazer alguma merda da qual provavelmente eu vá me arrepender depois.
Enfio a arma na cintura, cubro com a camisa e vou pra casa, onde chego totalmente encharcado. Foda-se, uma gripe agora era a menor das minhas preocupações. Ligo pra um colega de trabalho perguntando se ele poderia trazer a minha carteira no fim do expediente. Acendo um cigarro, coloco uma dose de vodka num copo sujo de café que peguei na pia atulhada de louça suja e me sento na cama.
Cabisbaixo, olhando pro chão... me pergunto: "O que mais falta acontecer?"
O telefone toca, meu pai capotou o carro e está no hospital. Pelo menos uma boa notícia... uma herança é sempre bem-vinda.
quarta-feira, 30 de maio de 2007
A história das minhas histórias
Comprei livros e livros para aprender a escrever de maneira simples, direta, clara e ao mesmo tempo envolvente. Passei noites em claro escrevendo, a cabeça fervilhando de idéias, o teclado do computador já todo queimado com marcas de cigarros que eu esquecia acesos enquanto digitava, ou tomava uma dose de uísque vagabundo, ou ia ao banheiro vomitar, ou dormia bêbado em cima da mesa do computador.
No outro dia era sempre a mesma coisa. A mesma sensação de que não tinha sido o suficiente. Sem contar a sensação contraditória de que essa paranóia estava prejudicando o meu trabalho diurno, mas de que era um investimento. Investimento no sonho de me tornar célebre e formador de opinião. No mínimo um nome a ser lembrado pelas gerações futuras. E isso me enchia de forças para no dia seguinte praticar o mesmo ritual: escrever, fumar e beber até dormir sobre a mesa do computador. Mais marcas no teclado.
Por fim consegui terminar meu primeiro romance. Coisa grande de gente pequena. Um senhor romance que, sem diagramação, dava umas quatrocentas páginas. Em 5 anos de trabalho eu tinha quilos de contos e toneladas de poesias. Todos sobre os mais diversos temas. E agora tinha o meu primeiro romance.
Fiquei extremamente feliz ao comprar uma resma de papel para imprimir em casa mesmo e levar para algum amigo ler. Precisava de uma opinião. Imprimi tudo e deixei sobre a mesa. À noite eu levaria para um desses meus amigos metidos a sabichões e despeitados. Ele seria o primeiro a ler. Melhor ter uma crítica desse tipo de gente primeiro, assim nos preparamos para o pior. Dormi o sono dos justos e acabei não alcançando este objetivo.
No meio da manhã recebo um telefonema do síndico do prédio. Meu apartamento havia pegado fogo. Junto com ele queimaram-se os contos, as poesias e o maldito romance. Eu havia esquecido o ferro de passar ligado pela terceira vez. Só que dessa última vez eu havia passado roupa no meio da sala enquanto assistia o jornal da manhã. Queria ver as últimas notícias da cotação do dólar.
Ainda agora quando fecho os olhos imagino a cena: da tábua de passar para o tapete, do tapete para o sofá e para o carpete, do sofá para a cortina e do carpete para a casa toda. Que maravilha. Posso até ver o romance se queimando, e eu nem cheguei a dar um nome a ele coitado.
Como ele nem chegou a ser batizado posso até dizer que mais um pagão morreu queimado. Como bônus da minha tragédia tem ainda o fato de que eu não tinha nenhuma cópia de nada. Todo esse tempo e eu nunca mostrei nada a ninguém.
Agora estou aqui, escrevendo sobre a única história que me vêm a cabeça. A história das minhas histórias.