sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Canção desesperada

__ Você tem esse costume bobo de fazer sempre as mesmas perguntas...já te disse o quanto isso me irrita.
__ Se eu faço sempre as mesmas perguntas é porque você nunca as responde. É tão simples, Nina. Basta dizer sim ou não.
__ Por que você faz essas coisas comigo, Breno? Você não confia mesmo em mim. Não posso ficar com alguém assim.
__ Nina, seja razoável, não temos mais treze anos. Pelo contrário, estamos juntos há treze anos. Responda, apenas responda.
__ O que você quer ouvir? É só me dizer que eu respondo. Quer um sim? Um não? Pedidos de desculpas? Faça-me o favor, Breno! Sabe o que falta? Falta você chegar com um formulário esperando que eu o preencha com a boa-vontade suprema que carrego. Seja você razoável. Não sou uma menina.
__ Então façamos o seguinte: eu saio, ordeno meus pensamentos, estabeleço minhas prioridades. Enquanto isso você fica aqui pensando no que realmente vale a pena pra você. Quando eu voltar sentaremos naquele sofá e juntos, eu espero, solucionaremos esse impasse.
__ Aumenta o volume do som quando estiver saindo, se possível.
__ Algo mais?
__ Não seja idiota o tempo todo, Breno. Isso vai acabar conosco.
__ Tentarei arduamente. Mas não prometo.

******

Existem canções tristes como teus olhos outonais, e de tempos em tempos me lembro do cheiro do teu cabelo molhado. Existem canções melancólicas como todos os rompimentos do mundo, canções silenciosas como o silêncio imponderável do escuro. E por mais que eu saiba que existem canções alegres como o latir do cão cujo dono chega a casa, por algum desses inexplicáveis motivos não consigo me lembrar delas. Assim como não me lembro do teu sorriso meigo e fácil, das tuas mãos brancas de pianista, do relevo sedutor do teu seio. Quem é você que vejo diante de mim? Não te conheço, chego a crer que nunca te conheci, porque só me lembro dos gritos incompreensíveis, das palavras proferidas com tanta maldade por tua boca, boca essa que beijei mas já não lembro o gosto. Em que parte do mundo você está que não alcanço mais? Quem desfez o desenho do seu rosto não teve piedade para comigo. Da estação escura e fira que você partiu só me resta uma lembrança, mórbida e dolorosa, que volta em relances sombrios diante do meu rosto. Eu sei, é só o que sei. Existem canções.

******

__ O que você espera de mim, sinceramente?
__ Nada mais, Nina. Sinceramente.
__ Então qual o porquê dessa carta?
__ É apenas isso. Uma carta. Letras que, estando juntas, formam palavras. Que, por sua vez, estando juntas, formam frases e, consequentemente...
__ Eu entendi! Por que você insiste nisso, Breno? Por que tenta arbitrariamente resolver as coisas do seu jeito, me machucando sempre?
__ Como você pode estar machucada, Nina? É apenas uma carta. São pensamentos meus, coisas que me vêm, que apenas escrevi por se tratar de um exercício. Sequer achei que você fosse lê-la.
__ Então ia guardar tudo, como um cão covarde?
__ Não vou discutir com você.
__ Típico. Você vem, desestabiliza tudo e tão simplesmente foge! Por que ainda me impressiono com você, Breno? O ser mais lugar-comum que eu conheço.
__ Vou ao cinema. Desculpe dizer, mas talvez eu não volte.
__ Por quê?
__ Você discutiria um filme iraniano comigo?
__ Está claro que não.
__ Isso responde a questão. Venho amanhã à tarde buscar o que me restou dos livros e CD’s que não te interessaram e deixo as chaves com o porteiro.
__ Breno, não faz isso...
__ Olhando pra sua estante, vejo que pouco de mim interessou a você. Nem mesmo meus Aurelianos. Bem, o que se há de fazer, não é? Enfim, existem canções.
__ Você consegue ser patético às vezes, amável quase nunca, apaixonante quase sempre e idiota a maior parte do tempo. Acho que já te disse isso, não?
__ Disse. Todos os dias.
__ Eu gosto muito de você, Breno.
__ Preciso realmente ir. Tenho pressa.
__ Por quê?
__ Apesar do calor, acho que vai chover. Eu te amo.

******

__ Pensei muito sobre ontem, Breno. Sabe, os Aurelianos. Tentei ler Cem Anos de Solidão, mas não sabia quem era filho de quem, nem conseguia entender aquelas mulheres...e o calor insano que emana do livro?
__ ?
__ Fala alguma coisa, faça valer o custo dessa ligação! Não posso amar todas as coisas que você ama, porque tenho minhas coisas para amar.
__ ?
__ Espere, eu sei o que você vai dizer, vai dizer que sempre há aquilo que nos é comum e nos cabe amar e alimentar. Mas...
__ Jamais diria isso, Nina. Diria apenas que é lamentável você não ter percebido que não era necessário amar aquilo que é meu. Bastava amar a mim. Simples assim. A mim, ao menos, é o que bastaria. Não se engane julgando que eu te esqueci, não me seria possível e talvez eu não o queira. Porém, tempo esgotado. Descobri que existe vida fora do mundo mágico que a Nina criou com suas mãos brancas de pianista, e eu quero viver agora.
__ Você me deixou, Breno.
__ Existe uma canção que fala sobre isso, mas não me lembro a letra...só me vem a melodia na cabeça. Sabe aquele vento frio que corta e deixa o rosto vermelho? É isso que essa canção faz.
__ Que história é essa de “existem canções”? Quando você vai voltar pra casa?
__ Eu não vou voltar.

*******

__ Quer saber o que eu acho? Acho que você está em casa e não quer me atender. Pois bem, converso com essa maldita secretária eletrônica! Posso ouvir o eco dos seus passos, aposto quanto você quiser que seu apartamento está vazio, você sequer comprou um sofá. Deixe-me ver...no seu quarto tem um colchão bagunçado, CD’s espalhados, o aparelho de som ligado e fora de sintonia...o telefone, que você não atende há coisa de um mês. Ia me esquecendo do maço de cigarros amassado perto do isqueiro prata que eu te dei, e você acendia na perna. Parei de fumar Marlboro, eu te contei? Estou parando aos poucos, semana que vem devo estar no Free Ultra Lights, você logo vai entender. Atende, Breno! Ai, isso é tão angustiante! Sua cozinha deve estar uma zona, você sobrevivendo de lasanha congelada e miojo. Aposto que anda se entupindo de Coca, o maldito líquido negro. Breno...é sério, é realmente importante. Você vai ficar feliz, eu sei. Não precisa voltar pra mim, basta ficar feliz. Talvez até você me perdoe, nunca se sabe. Olha, não vou continuar a conversar com essa secretária. Vou dizer logo de uma vez, aí você me procura e a gente conversa, tá? Breno? Breno! Droga...tá bem, vou dizer: eu menti. Não fiz aborto nenhum. Continuo grávida do nosso Aureliano. Você ouviu? Continuo grávida. Eu amo você. Amo nosso filho. Ah, li Cem Anos de Solidão nesses últimos dois meses. Acho que agora entendo algumas coisas, e até sinto o calor de Macondo invadir meu quarto. Nosso quarto. Breno?

*******

__ O que eu faço agora, Nina?
__ Você engordou. Eu sempre acerto.
__ Apenas responda. Há dois meses, quando eu saí do seu apartamento, você me garantiu ter feito o aborto. Lembra-se? Se me recordo bem, foi exatamente isso que me fez sair do seu apartamento, sair da sua vida. Eu achei que você tivesse mentido para mim quando daquela situação, mas agora não sei se você vem mentindo todo o tempo. Como hei de saber que você não mente agora?
__ Eu tenho todos os exames lá em casa. Volta pra casa comigo, Breno. Não suporto os espaços vazios que você deixou.
__ Por que tudo isso, Nina? Tive certeza que você fez o aborto, julguei inclusive que você o tivesse feito pra se afastar de mim. Como você vem agora dizer que continua grávida e, como se não bastasse, me pede que volte pra casa? Quem é você, Nina? Não é mais a mulher que amei.
__ Eu não queria estar grávida. Você foi contra o aborto desde o começo, Breno.
__ Isso é mais uma mentira, Nina. Sempre deixei claro que estava disposto a discutir isso, ter ou não ter filhos. Lembro-me que conversamos, meses atrás, e decidimos ter um filho. Espero que você não tenha esquecido isso também. Você engravidou, conversamos, decidimos ter o filho, duas semanas depois você me diz que abortou, para dois meses depois dizer que não, não abortou. Só falta eu esperar que dois anos se passem pra que você me diga que esse filho não é meu. Perdão, Nina, mas não preciso passar por isso.
__ Breno, procure entender. Quando eu engravidei passamos por aquela crise, eu quis terminar. Eu deixei de te amar. Você me obrigou a mentir, a ferir, porque eu sabia que se eu dissesse tudo aquilo você se machucaria e daí caberia a você pôr fim em tudo. Talvez eu tenha errado nisso, porque bastou você bater a porta pra que eu soubesse que nunca tinha deixado de te amar. Então, nesse sentido, só me coube dizer a verdade. E agora que você já sabe que menti, agora que te pedi perdão, não custa você considerar tudo isso e levar em conta o quanto eu te amo, o quanto ainda nos amamos. Sim, porque você ainda me ama, mesmo que diga para o resto da vida que não. Nos amamos, Breno, isso não basta? Você me disse, meses atrás, que amar você bastaria. Era mentira também?
__ Não seja ridícula, Nina, nem aja comigo como se me tivesse em tuas mãos. As coisas mudam, talvez eu não te ame mais, talvez você nunca mais tenha certezas como as que eu te ofereci um dia. E, por mais que pareça, não se trata de vingança, eu não sou assim. Caso queria saber minha opinião, faça o que quiser da gravidez. Se decidir mantê-la, me avise. Vou tentar deixar de ser um idiota a maior parte do tempo e ser um bom pai. Caso contrário, boa sorte nos teus caminhos. Eu vou descansar.
__ Você foge.
__ Você me conhece, Nina, sabe que não é isso o que acontece. Sinto muito, mas eu me cansei. Não esperava por isso, não desejava isso, mas não consigo olhar para você sem ver teu rosto borrado, teus olhos frios, tua boca crispada. Não sei mais quem você é, Nina, e isso me dilacera, porque eu te amei sem medidas. Porém isso parece pertencer a um passado tão distante que não justifica reavivá-lo. Continuo a ter uma única lembrança, como disse naquela carta, e o correr dos dias faz com ela se torne cada vez menos nítida. Talvez por isso eu consiga agora me lembrar da canção que tocava baixo quando nos perdemos.
__ Olha pra mim, Breno.
__ Nos teus olhos não vejo nada, Nina! Por mais que você chore não consigo enxergar a verdade. Você chora por você, chora por temer ficar sozinha. E, sinto dizer, nada posso fazer com relação a isso.
__ O que você vai fazer agora?
__ Vou pra casa, antes que chova. Vou tomar um bom capuccino, fumar um cigarro e ouvir alguma canção que seja melancólica sem ser triste, nostálgica sem ser saudosista. Depois vou escrever. Já te disse que estou escrevendo um livro?
__ Sobre o quê?
__ Sobre alguém dentro de um espelho.
__ Essa história já foi escrita por alguém.
__ Minha história está sendo escrita por mim, Nina. Lembre-se disso.

******

__ Até quando você vai me ignorar, Breno? Estou precisando de você. O aborto foi complicado, eu sangrei horrores. Será que você não vê? Nem tudo aconteceu da forma que esperávamos, mas não podemos simplesmente negligenciar o que existiu. E existiu tanta coisa, você deixou tanta coisa...há determinadas canções que não posso ouvir sem lembrar de ti. Tenho Cem Anos de Solidão decorado, porque bebo das palavras que você amou um dia. Descobri que o Paul McCartney não é o grande monstro mercenário dos Beatles, porque não sei contar o número de vezes que você disse que ele era apenas um workaholic, louco por trabalho. Esse, aliás, excelente. Tenho verdadeira adoração pelo cinema iraniano, porque desde que ter perdi resolvi amar tuas paixões, como forma de recuperar você. Ah, Breno, só agora consigo vislumbrar o quanto eu te amo, o quanto você é belo. Só agora sei o que teus olhos verdes causam em mim, mesmo que sejam os olhos que vejo em um retrato. Não pode ser assim pra sempre, pode? Não faz sentido estarmos longe um do outro, porque somos o encaixe perfeito um do outro. Lembra daquela senhora parada na rua que disse que eu tinha encontrado minha outra parte no mundo? As coisas andam tão fora do lugar que voltei a fumar uns baseados, pra sarar a dor, e me imaginei conversando com você. Eu choro pouco, você sabe, mas tenho chorado em excesso, porque o Chico Buarque chora em “Trocando em miúdos”. E isso foi você quem me ensinou.

******

__ Por que você não ouve os recados da secretária? Eu disse a você que estaria do teu lado quando do aborto, não posso ser tão vil. Perdão por te deixar passar por isso sozinha, sincero pedido de perdão. De resto, agradeço por perguntar se estou bem, espero que você assim esteja. Tenho feito muitas coisas, escrito como nunca, acho que vou publicar um livro. Projetos, Nina, tenho projetos. Comprei um aparelho DVD mas ainda não o desvendei por completo. As coisas estão mais simples agora que quatro meses sem você já correram, e consigo me lembrar do que dizem as canções que existem. Tenho, inclusive, ouvido canções alegres, sinto o pulsar delas na minha própria vivência. Estou em paz comigo e com tua lembrança. Talvez eu ainda te ame, mas já faz tanto tempo...me sinto à vontade na minha cama enorme e posso receber meus amigos nas poltronas verdes da minha sala. Existe uma canção que fala sobre isso, sobre a ausência que liberta. É assim que me sinto, e enquanto escrevo a história do homem no espelho posso ouvir minha voz capricorniana ascendente controlar meus impulsos escorpianos regentes. Não faço sexo há meses, isso é definitivamente engraçado, porque mesmo tendo me acostumado com seu corpo já não sinto falta dele. Sinto falta daquilo que não vivi por estar com você, por julgar que minha existência deveria estar na sua órbita. Não me maltrato por errar, não faço mais essas coisas. Continuo fumando Carlton, e é nos dias de chuva que sinto prazer em ler Budapeste. Ah, Nina, tão branca quanto Kriska...vou jogar o macarrão na tua parede, para que me expulses de tua vida. Existe uma canção que me é sempre recorrente, e me faz lembrar daquela tarde de outono que nos perdemos. Ouça Revolver, Nina, faça seu próprio sonho. Leia Chico Buarque e se martirize – como eu – porque aquele maldito consegue sempre escrever coisas bonitas. Vá a um festival de cinema mexicano, viva outros amores, busque novas paixões. Você é uma pessoa tão linda...sei que existe uma vida pulsante de libriana em teu peito, exploda tudo isso. Escreva um livro, OUÇA AS CANÇÕES. Seja feliz, Nina...
Acho que vou fazer um café.

******

__ Recebi sua carta. É triste.
__ Pelo contrário. Escrevi-a de uma só vez e a encaro como irreparavelmente esperançosa. Julguei que fosse perceber isso.
__ É uma esperança morta, não vê? Você deixa claro que é o fim. Breno, eu sei que errei, mas não aceito que sua mágoa possa ter apagado o que vivemos.
__ Não é mágoa, Nina, é desprendimento. Nos machucamos muito, não tinha razão continuar. Aliás, existe uma canção...
__ Chega! Não posso mais com isso de canções, o tempo todo, pra lá, pra cá, sem fim! Você me fez enlouquecer, Breno. Queimei o maldito livro, porque ouvia o choro do nosso filho morto, quebrei os CD’s porque sentia sua dor, emanando como sangue das suas canções. Não tenho projetos e uma carteira de Marlboro não me é suficiente para uma manhã. Existe outra pessoa em mim, que chora e se flagela, mesmo sabendo que não tem culpa. Você me fez matar nosso Aureliano, e pelas minhas contas ultrapassa o número de 20 deles que morreram. Não comprei um aparelho DVD porque não consigo assistir à televisão sem odiar tudo, não consigo acordar sem ter a certeza de que deveria continuar dormindo. Enfim, qual o porquê disso?
__ Nina, não chora. Por mais que você grite e fume desesperadamente e bata com as mãos na mesa, quando te vejo chorar a quebra da imagem é tão brusca que me assusto e me perco.
__ Por que você não me abraça mais? Por que não ignoramos quase cinco meses de distância execrável? Podemos nos amar loucamente, como antes, podemos ouvir Chico e ter nosso filho. Me deixa pegar na tua mão, coloca tua cabeça perto da minha...
__ Nina, não...
__ Vamos nos lembrar do gosto das nossas bocas, maliciosas línguas...a noite nos encobrirá, e quando você se der conta já será tarde demais, e você será meu para sempre, conforme o prometido.
__ Você tem noção das coisas que fala e faz? Você se machuca sem perceber, e depois, levianamente, atribui a culpa a mim. Conheço teus joguinhos, Nina, porque já caí em todos eles.
__ Eu odeio você. Odeio o que você faz.
__ É justo. Me empresta o isqueiro?

*******

__ Eu sou uma farsa, Nina. Acho que você conseguiu destruir tudo com teu discurso de que a culpa era minha. Não consigo fazer as coisas direito, não consigo estruturar meus pensamentos. Precisava falar com você. Eu sei que um ano é tempo considerável, mas eu precisava falar com você. Estou morto, Nina, porque senti tanto medo e tanta dor que escolhi me proteger de tudo que era externo a mim, ou seja, o mundo que não é meu. Julguei que assim, protegido, as coisas tristes e melancólicas que ouço nas canções não me aconteceriam, eu poderia simplesmente seguir. Mas como seguir, se a tua lembrança corrosiva me assustava todos os dias, e eu esperava que o mundo fosse fazer o mesmo comigo? Então eu criei um universo paralelo para mim, do qual somente eu fazia parte, e tuas mãos brancas de pianista tocavam uma canção fúnebre por todo o tempo. Sou amargo, estou vazio, frio e ainda temeroso. Meus projetos se perderam de maneira irrecuperável e a chuva molhou meus melhores sapatos. Não sei se é o certo a dizer, mas preciso fazê-lo, preciso expurgar tais elementos de meu peito: eu te amo, Nina, e talvez precise que você me salve. Preciso que você me cure com tuas mãos brancas de pianista, como se eu saísse em uma noite de inverno europeu vestido apenas de cueca samba-canção verde com ursos polares. Preciso de ti, Nina, para trazer de volta o sentido que havia no meu existir. Volta pra mim. Eu te perdôo.

******

__ Em noites alternadas eu acordo ouvindo uma criança chorar, e tenho e ligeira sensação de que esse choro vem do meu útero. Nas noites em que não ouço o choro, sonho com crianças monstruosas que me enchem de medo e impossibilitam o sono. Você me obrigou a odiar meu corpo, porque não fiz uma escolha, e de tempos em tempos vejo uma assassina no espelho. Você me privou de liberdade quando condenou minha existência à essa culpa mesquinha e talvez mais corrosiva que tua lembrança dolorosa. Queimei todos os livros em frente ao teu apartamento, quebrei todos os CD’s e agora só ouço o silêncio pausado e angustiante que só a ausência insubstituível é capaz de forjar. Desde que nos perdemos eu sigo por seguir, porque você soube como ninguém obscurecer meu caminho, e eu vejo nuvens sombrias de chuva mesmo nas tardes mais quentes de meus dias, tardes quentes como só as tardes quentes de Brasília. Por isso me assustei quando o correio mostrou tua carta, tão evidente em minha frente que parecia querer ser lida. Não posso voltar pra você, Breno, porque teu fantasma me persegue por todos os lugares, e você carrega nosso Aureliano morto nos braços. Já não te amo mais, porque consegui destruir esse sentimento infeliz que me trazia a esperança morta de um dia te ter de volta. E quando eu percebi que todas as pessoas tinham teu rosto frio e irritantemente ponderado, desisti de todas elas. Sigo sozinha, depois de ter jurado mentiras imperdoáveis a mim e ao mundo. As coisas estão fora do lugar e eu não consigo vislumbrar a forma de corrigi-las. Estou cansada de você, das lembranças, de mim mesma. Me sinto fraca por não ter podido me reestruturar e pensar em você como um garotinho mal-educado que merecia um bom castigo. Não há mais nada aqui, e o teu lado da cama continua bagunçado, como da última vez que você esteve nela. Não tenho ódio, sequer paixões, tenho o silêncio, o escuro, o vazio que oprime, o frio que condena. De toda sorte, sinto que você esteja mal e tenha, em algum momento, se julgado culpado pelo que aconteceu. Ainda que meu discurso tenha sido nessa direção, a interpretação é tão somente sua, porque é reflexo de quem você verdadeiramente é. Perdão, mas não posso voltar pra você, nem considerar digna tua proposta. Posso ter cometido erros, mas um ano de solidão me mostrou que os mesmos não mereciam tamanha condenação, e se isso não é justo não deve ser continuado. Parei de fumar, mas em compensação tomo café de dez em dez minutos, e meu estômago dói a noite inteira. A cortina do meu quarto quebrou e uma luz pisca incessantemente, me mantendo acordada a observar as formas difusas que se espalham pelo meu teto. Tive de jogar meus brincos fora, porque machucavam muito a minha orelha, fazendo com que o sangue acumulado dentro de mim escorresse por dois pequenos furos de meu corpo. Vejo borboletas verdes nos jardins que raramente visito, e me lembro dos teus olhos congelados no único retrato que não destruí. Tal souvenir foi tudo que me restou, e o Breno do retrato está sempre triste quando o vejo. Eu o vejo todo o tempo. Antes eu me perguntava se seria sempre assim, mas agora já não tenho força para questionamentos. Não busco nada, dia desses saí sem pagar a conta do supermercado, quase fui presa por coisa de R$7,90. E por mais que você diga que eu devo te salvar, você está condenado à mesma dor que eu, e não cabe a um salvar o outro. Existem canções que falam sobre isso, e já que você gosta tanto delas busque nelas tuas soluções.
É tarde, preciso dormir. Acho que vou deixar a luz acesa, para que as crianças entendam que gostaria muito de brincar com elas.

******

__ Breno? Breno, abre logo essa porta! Eu não vou bater a tarde inteira, está me ouvindo? Céus, o que estou fazendo aqui? Vamos, Breno, seja razoável, faz um ano que não nos falamos, eu vim aqui disposta a conversar. Eu sei que você está em casa, o porteiro me disse que você não sai há semanas, até o seu cigarro é ele quem vai comprar. Por favor, Breno, abre essa porta. Se você não abrir em dez minutos eu vou embora e...Espera...A porta está aberta? Ah, Breno, por que não me avisou? Breno? Que estranho...a porta aberta, Breno não responde...Que casa escura, você nunca abre essas janelas, Breno? Abafado, nossa, parece a casa de um morto...E essa cozinha? Que revolução passou por aqui? Você costumava ser mais organizado quando...bem, antes de tudo acontecer, não é? Quantas garrafas de uísque, você virou um alcoólatra...Bem, pelo menos o banheiro é limpo, disso você sempre fez questão...Breno?
__ Aqui no quarto, Nina. É só seguir a música.
__ Ótimo, agora estamos brincando de pique - esconde. E então? Estou esquentando?
__ Não seja infantil. É a última porta à direita.
__ Obrigada pela dica, você não perde a chance de ajudar ao próximo e...Céus, Breno! O que está acontecendo aqui?
__ Oi, Nina...que bom que você voltou.
__ Eu não voltei, Breno. Vamos conversar, eu vou voltar pra minha casa e vamos seguir com nossas vidas. Você está bem?
__ Mais ou menos. Alguma dificuldade pra respirar, alguma dor no peito. Eu sinto sua falta, Nina.
__ Por favor, Breno, não faz assim. Posso abrir as janelas? As cortinas? Não me admira que você não consiga respirar, esse quarto é tabaco puro.
__ Você parou de fumar, não é? Que engraçado. Por favor, deixe as janelas e cortinas fechadas. Luzes e sons me incomodam sobremaneira.
__ O porteiro me disse que você está trancafiado nesse apartamento há coisa de uma semana...O que está havendo?
__ Nada. Só não tenho vontade de sair, aonde ir, com quem conversar...Nina!
__ Que foi?
__ Você está usando amarelo!!! Exatamente como na noite em que nos conhecemos! Eu sempre detestei amarelo...mas em você...não sei...não me incomodo tanto quando é você quem usa amarelo. Nada do que você faz me incomoda, Nina...Você lembra da noite em que nos conhecemos, na faculdade...Estávamos naquela reunião idiota quando você entrou e recitou Pessoa...tenho que confessar que não gostava muito de Pessoa até você entrar na minha vida...eu não gostava da minha vida até você entrar nela, porque...
__ Breno? Nossa, que tosse horrível! Breno, você está doente, e só você não percebeu isso. O que é isso aqui, no travesseiro? Sangue? Meu Deus! Breno, você está tossindo sangue! Eu vou chamar alguém!
__ Não, Nina, não é necessário, daqui a pouco isso passa...não vá embora de novo, Nina. Fique pra sempre! Exato, fique pra sempre! A gente pode ficar aqui o resto de nossas vidas, você toca piano pra mim e eu escrevo e a gente volta a ser feliz!
__ Breno, você está tossindo muito sangue, eu preciso chamar alguém! Quer fazer o favor de me soltar?
__ Nina! Por que você nunca tocou piano pra mim? Você tem mãos lindas de pianista, mas nunca tocou piano pra mim...
__ Eu nunca fui pianista, Breno. Com licença, vou pedir ajuda.
__ Não vá, Nina...fique e toque piano pra mim...eu fico em silêncio...

******

__ Srta. Nina Alencar?
__ Dispenso o srta. Como ele está, doutor?
__ Bem, como todos sabemos, o caso do Breno é muito sério. Ele já devia estar em tratamento há muito tempo. Mas foi irresponsável e negligente, e essa combinação, aliada ao câncer de pulmão, não é nada boa.
__ Câncer de pulmão?
__ Por Deus, você não sabia? Mas ele fala tanto de você, achei que soubesse.
__ Não, eu não sabia de nada. Nós não tínhamos contato há quase um ano...
__ Nina, o Breno tem um câncer diagnosticado nos pulmões há mais de seis meses. Nesse período, em que devíamos estar em tratamento, ele se escondeu do mundo em seu apartamento, e até onde me consta dobrou a quantidade diária de cigarros. Ele está se matando aos poucos. Se ele tivesse seguido o tratamento desde o início, talvez pudéssemos fazer alguma coisa...mas agora não temos mais tempo. O Breno não tem mais tempo...
__ Não, doutor. Eu não aceito isso. Vou conversar com ele, vou demovê-lo dessa idéia estúpida de não fazer o tratamento...ele vai se curar, doutor, eu tenho certeza...
__ Então tente, Nina. Qualquer coisa que você fizer pelo Breno vai dar a ele mais tempo, eu tenho certeza.
__ Eu só preciso de um pouco mais de tempo, doutor...tempo para aprender a tocar piano pra ele...

******

É um dia bonito e ensolarado, apesar disso não sinto calor assim, vestindo preto. Meus olhos vermelhos e cansados não podem ser vistos porque não permito, e os escondo atrás de óculos e sorrisos de agradecimento pelo consolo. Todos eles já partiram, mas hei de ficar aqui, porque meu lugar é do teu lado. E não pense que faço isso por pena, de mim ou de você. Faço isso porque te amo, como fá foi dito somos o encaixe perfeito um do outro. E ainda que você tenha partido, posso te sentir aqui a me abraçar agora, a afagar a dor que tua ausência definitiva há de deixar. Estou doente, irrecuperavelmente doente, mas não tenho com o que me preocupar, porque tendo você partido só me resta fazer o mesmo. Talvez tenha te odiado quando soube que você desistira, mas consigo apreender a beleza e purificação veladas de teu gesto desesperado. Existem canções de morte, mas elas não dizem mais que teus olhos fechados e teu semblante de paz. Ah, Nina, peguei tuas mãos brancas de pianista antes da tua partida, e sinto o cheiro delas, cheiro de flores brancas, nas minhas próprias mãos. Faz um bom dia ensolarado, e a única canção que cabe nesse momento diz que “se um dia fores embora, te amarei bem mais do que esta hora”. Tua morte não te levou, Nina, porque te tenho em mim. Tem sido assim há quinze anos, e há de ser assim pra sempre, porque a chuva sempre vem. Além disso, ainda existem canções.

*******

Escrito em Abril de 2003.

3 comentários:

Dany Lynn disse...

linda
como eu queria ler
nossa como eu queria
espero acordar amanha para poder ler tamanha blz....
mas caso isso naum aconteça...saiba que meu comentario estara gravado em sua mente e em sua alma

te amo sem ao menos te tocar

Anônimo disse...

Meu Deus!
Esse texto me deixou perplexa.
Me emocionei... Parabéns!

Dany Lynn disse...

Pq chorei horrores ao ler palavras de extrema verdade, com colocaçoes de um passado e talves de um futuro?
Chorei e fiquei voltando a Musica 'Mad World' ate acabar todo o conto.
Creio que tive a ultima chance de continuar viva nesse fds, e lembro-me que ontem, ainda no hospital, com o braço doendo de tantos litros de soros ja derramados em minhas veias a velha frase "Só damos valor depois que perdemos".
Lá...eu tive uma visao de mim mesma....
Espero que essa visao concretize meus sonhos, pq não quero ser uma Nina, contada em palavras de uma magnifica artesã das letras.

Dani, obrigada por mesmo longe, estar comigo.
amo-te