quinta-feira, 28 de junho de 2007

Aprendendo o amor

Ele estava deitado de lado no tapete, o corpo todo curvado em posição fetal e comprimia contra o peito uma almofada onde despejava suas lágrimas, sua saliva, o muco que saia de seu nariz e principalmente onde abafava o som agudo do seu choro. Aquele choro desesperador, ininterrupto que parecia vir do fundo de uma alma atormentada, cicatrizada pelas agruras da vida.

No auge de seus dezesseis anos ele experimentava pela primeira vez a dor que movimentava o mundo, a dor de amar. O amor que o inspirara a escrever dezenas de poesias, que o fazia andar pelas nuvens, que lhe apertava o coração sempre que a via sua bela amada, o amor que o encorajou a superar sua timidez e declarar-se era agora o mesmo amor que apertava seu peito, enrugava sua face e deixava-a molhada de lágrimas. As lágrimas da inesperada e indesejada rejeição.

Se ao menos ele tivesse a oportunidade de vislumbrar o seu futuro em alguns anos... ah, se ele tivesse esta oportunidade e fosse capaz de sentir tudo o que se teria passado e adquirir toda a experiência desse tempo de vida vindouro. Com certeza ele aprenderia que o amor destrói mundos, mas que no outro dia está tudo bem.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Poética cotidiana

Eles eram assim, no fim. Meio tortos, meio turvos. Nunca estavam verdadeiramente felizes e sempre achavam que a vida podia ser um pouco pior do que era. Mas também sabiam que pertenciam um ao outro de alguma forma, uma forma completamente inexplicável e talvez até sem sentido algum. Porque ora se amavam, ora se odiavam. Porque machucavam um ao outro deliberadamente, mas nada substituía o gosto bom que um deixava na boca do outro. Ficavam juntos poucas vezes, mas sempre de maneira completa e intensa, como havia de ser, porque cada minuto que estavam juntos havia de compensar os meses e até anos que sequer se falavam.

Chegaram a considerar a possibilidade remota de ficarem juntos em definitivo, mas foi logo descartada porque eles eram absurdamente diferentes. Ele queria se casar e morrer ao lado da mulher da sua vida - ela. Ela queria ser livre e se permitir a tudo, mesmo amando a um único homem - ele. Ele queria filhos e cachorro e dívidas, o pacote completo do casamento. Ela queria "barulho, bebedeira e todo o mal"*. Eram assim, diametralmente opostos, mas ainda assim se sabiam parte um do outro. Eram doentes e só um entendia o outro, só um sentia a dor do outro, mas dificilmente se ajudavam porque estavam sempre a trocar farpas relacionadas à própria situação em que viviam.

Certa feita ela disse a ele que a única possibilidade de continuarem na vida um do outro era essa: não estar de fato. Não ser um casal, não tentar negar o que era assim tão óbvio, porque eles não funcionavam enquanto estavam juntos. Ele concordou e decidiram seguir suas vidas, do jeito que tivesse de ser, sem maiores preocupações por saberem que cedo ou tarde voltariam um para o outro.

E assim foi, durante muito tempo. Foram realmente felizes assim. Até o dia em que ele, no auge de seus cinquenta e sete anos de idade, a pediu em casamento. E ela, no auge dos seus cinquenta e quatro, negou. Achou digno. E foi daí que ele a matou.

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*Loucura - Anais Nin

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Precipitação

O telefone toca no meio da madrugada, insistente e inconveniente. Enquanto desperta de seus pesadelos carregados de demônios do passado, o som se torna cada vez mais alto. No começo parece aquela coisa distante... constante e insistente. Até que o sonho se mistura à realidade e ele percebe que acordou, que o telefone está tocando, que o tempo está passando, que o telefone está tocando, que ele está de volta à realidade e o telefone está tocando.

Aquele sentimento que parece uma mistura de alegria e ao mesmo tempo tristeza invade-lhe o peito. Seus pesadelos o atormentam constantemente com as pessoas mortas de seu passado, mas a realidade é por demais dolorosa. É preferível sonhar com a morte de cada um de seus amigos a conviver com a certeza de que eles estão mortos. Em seus sonhos estão todos tão vivos, com rostos corados e cheios de carne, ao passo que agora, desperto ele sabe que lhes sobram apenas os restos mortais. Cadáveres carcomidos, roídos pelos vermes e pelo tempo.
Ele se levanta e caminha em direção à sala trombando nas paredes, os olhos desacostumados à falta de luz. O telefone para de tocar. Ele acende a luz, olha para o relógio de parede: 03:40h da madrugada. Desperto, sabe que não voltará a dormir. Abre a janela, acende um cigarro e se serve de uma dose de vodka. O telefone começa a tocar novamente.

Ele puxa um trago do cigarro, toma outra dose de vodka e fica se perguntando se deve atender ou não a ligação. E fica lá parado com a fumaça ainda dentro do peito, encarando o telefone fixamente e pensando o que mais poderá ter acontecido. A esta hora com certeza é alguma emergência.

Essa é uma cena como muitas outras que já viveu. Com certeza outra pessoa querida morreu. Tem sido assim nos últimos anos. O telefone toca de madrugada, ele atende e recebe a notícia da morte de algum amigo, ou de algum parente. Não consegue mais suportar o peso da saudade em seus ombros. Pai, mãe, dois irmãos, diversos amigos: o telefone toca, e a morte se faz presente. Putrefata, nefasta e pérfida a morte estava batendo novamente à sua porta agora.

Ele levanta, caminha em direção ao armário, pega o seu revolver calibre trinta e oito, destrava a arma, abre o tambor, coloca uma única bala, aponta a arma contra a cabeça e aperta o gatilho.
O peso do corpo o puxa livremente para o chão. Queda livre. E o telefone continua a tocar...

domingo, 17 de junho de 2007

Trilogia do raio-x - parte I

quase como que por instinto, durante o raio x, quase que perguntei: e dá pra ver o que tem lá no meio? bem no meio da gente, onde, às vezes, até a gente tem dúvida?

e imaginei a moça respondendo que não... atravessar os sentimentos o raio ainda não atravessava, mas dava pra tentar morrer mais cedo tendo ele e eles como causa...

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Carlos e Carolina

Sábado, três horas da tarde. Carlos voa pela estrada em seu carro conversível, o vento bagunça seus cabelos, no som do carro John Mayer leva o público ao delírio com mais um de seus sucessos. Carlos adora álbums gravados ao vivo porque se sente um espectador na platéia assistindo aos seus artistas preferidos.

O carro desliza de maneira veloz e calma pela estrada que entrecorta a paisagem semi-árida do cerrado do planalto central, local que sempre foi sua paixão. Enquanto dirige ele pensa na vida, em todas as coisas que já fez, pensa em seus objetivos, refaz o seus planos e também canta John Mayer.

Ele ouvia John Mayer no dia em que conheceu Carolina no posto de gasolina. Conheceram-se na loja de conveniência. Tomaram algumas cervejas juntos, e a química foi tão forte que de lá mesmo foram para o motel mais próximo e fizeram sexo apaixonadamente por toda a tarde. Carolina era um misto de vulcão e brisa, nela se reuniam os traços marcantes da mulher fogosa e a simplicidade dos carinhos de uma criança. Tudo isso aprisionado no corpo de uma mulher de aparência bonita, embora não fosse excepcionalmente linda. Uma beleza comum como a que vemos todos os dias em locais do nosso cotidiano como a estação do metrô.

Carlos teve que ir embora de Brasília no dia seguinte, complicações na empresa que trabalhava, a filial de Belo Horizonte estava dando problemas e ele, apesar de seus vinte e três anos, era um auditor experiente e de eficácia inquestionável.

Agora, três meses depois, o problema estava resolvido e ele voltava para Brasília, onde encontraria Carolina no mesmo posto de gasolina. Ansioso e contente, a saudade a apertar-lhe o peito, Carlos sorri atrás de seus óculos escuros, e o vento continua a bagunçar-lhe os cabelos.

terça-feira, 12 de junho de 2007

Réplica

Não, não apaga a luz não. Eu não vou ficar. Só me sentei porque perdi um compasso, mas não desisti de desistir de você. E agora é tua vez de ouvir. Vou falar pouco, ao contrário de você, depois vou bater a porta na tua cara e não quero ouvir de você nem uma vez mais.
Quer saber o que eu acho? Eu não te respeito mais, sabe. Como você pode me pedir pra ficar, assim, depois de tudo? Depois que dei meu mundo pra você e você me lanhou por vezes seguidas, sem a preocupação de saber se a ferida anterior havia cicatrizado. Você é covarde e mesquinha. E eu não tenho mais medo de viver sem ti, se quer saber. Não tenho mais medo de nada, porque me livrei da tua bolha. Eu respiro agora, sabe o que é isso? Não, não sabe, você não respira, você suga, você se alimenta. E teu perdão de nada me vale agora. Porque foi você quem me disse, certa vez, que a decepção é inerente ao conhecimento absoluto da condição humana de cada um. E eu te vi por inteira. E não tem beleza ou poesia capaz de esconder tua verdade, que o tempo todo foi mentira pra mim, e eu me encantei por um ser que não conhecia.
Se fizer muito frio, fecha a janela e liga o aquecedor. Não se morre dessas coisas.

domingo, 10 de junho de 2007

"Os olhos ela puxou à mãe", minha família me dizia. "Essa cor mel, meio verde quando fica brava ou apaixonada, é bem a mãe dela". "Não esqueçam do cabelo também. Essa escuridão. Antes da mãe dela pintar de vermelho era assim: escuro como breu!", a tia-avó mais velha insistia. "E o narizinho arrebitado!!! Na tua idade, tua mãe foi Miss! Miss! Botava qualquer uma no chinelo, só com aqueles olhos mel, aquele cabelo escuro e ondulado e o narizinho. Todos como os teus". "Olhos cor de lodo", eu corrigia mentalmente. "Mas não vamos esquecer da boca do pai. Essa lindeza de sorriso. Se não fosse por ele, ela não tinha essa boca, meu Deus!" E eu sorria amarelo, com a vontade de não-sorrir. "Mas as covinhas são da mãe. União perfeita!" Meu avô olhava de longe. Não se metia na descrição da neta. Não se metia na indiscrição das irmãs. "A cor da pele! Esse moreno que ninguém sabe de que parte da família veio. Só ela e a mãe têm. O irmão nem tanto e a outra é mais branquinha".

Meu avô levantou do canto onde estava, passou a mão nos meus cabelos e sussurou no meu ouvido: "Só não casa, morena. Não casa que homem só dá problema!"

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Acontecimentos

Ele está caindo, aproveito pra dar mais um soco de direita no meio do nariz. O sangue espirra e ele finalmente alcança o chão. Bate primeiro com a cabeça e faz um barulho seco. O restante do corpo mal toca o chão e eu aproveito para começar a chutar suas costelas, quem sabe com um pouco de sorte eu quebre alguma. Ele grita, e eu chuto sua boca.

- Cala a boca, filho da puta!

E continuo a chutar suas costelas. Ele rola e eu finalizo com um chute na barriga. Escuto-o expelindo o ar com um som abafado. Afasto-me dois passos para trás e fico olhando o desgraçado jogado no chão. Ainda se mexia... pouco mas mexia. Por mim tudo bem, desde que nunca mais aparecesse por ali. Começo a procurar a arma que ele deixou cair, a mesma arma que usou pra me assaltar semana passada.

Hoje foi diferente. Hoje eu havia sido demitido por ser solteiro. Corte de pessoal na empresa... meu chefe tinha que demitir um funcionário e ele optou por mim porque todos os outros eram casados ou tinham filhos. Já voltando para casa um amigo me liga e diz que viu minha namorada com outro cara, e ele é do tipo que não mente. Ainda mais puto decido beber no primeiro boteco que encontro pelo caminho, entro no boteco e tomo todas. Na hora de pagar percebo que esqueci a minha carteira no escritório, pelo menos estou rezando para estar lá, só me falta perder a carteira. Deixei meu celular empenhado, depois volto pra pagar.

Saindo do bar, um pouco embriagado e com ódio da vida vem esse infeliz me assaltar. Tudo o que eu precisava era de uma válvula de escape... um bode expiatório. Tem gente que gosta de estar no lugar errado e na hora errada, e ainda por cima tentando fazer a coisa errada. Assim que ele me apareceu fui com tudo pra cima dele, acho que o cara não acreditou.

Agora que eu peguei a arma vi porque não morri: o imbecil assaltava os outros sem munição. Só usava a arma pra ameaçar. Fiquei ainda mais puto porque semana passada ele me roubou todo o dinheiro do aluguel, com essa arma sem balas. Ele está se arrastando, volto e dou outro chute na cara dele. Começa a chover.

A vontade que eu tenho é de bater na cara dele com essa arma até arrancar todos os dentes, mas minha mão ainda está doendo da surra que lhe dei. Decido ir embora e deixá-lo ali sozinho. Agora eu sou um homem furioso e armado. Só falta conseguir munição pra fazer alguma merda da qual provavelmente eu vá me arrepender depois.

Enfio a arma na cintura, cubro com a camisa e vou pra casa, onde chego totalmente encharcado. Foda-se, uma gripe agora era a menor das minhas preocupações. Ligo pra um colega de trabalho perguntando se ele poderia trazer a minha carteira no fim do expediente. Acendo um cigarro, coloco uma dose de vodka num copo sujo de café que peguei na pia atulhada de louça suja e me sento na cama.

Cabisbaixo, olhando pro chão... me pergunto: "O que mais falta acontecer?"

O telefone toca, meu pai capotou o carro e está no hospital. Pelo menos uma boa notícia... uma herança é sempre bem-vinda.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

A morena veste saias como camisas-de-força. Coloca pela cabeça e deixa os braços presos por alguns segundos. Depois os tira, arrumando a saia, fechando o zíper.

Se perguntam pra morena porque ela usa somente saias, ela responde que se sente mais livre. Que usar saias é mais feminino. Que tem até seu charme lutar contra o vento pra não levantar a saia.

Mas a morena sabe que, lá no fundo, é pelos momentos dentro da camisa-de-força. Pelos momentos com os braços presos, pela impossibilidade de mexê-los.

A morena sabe que, lá no fundo, é pela prisão!