quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Noite de Bukowski

Não fiquei necessariamente surpreso quando ela anunciou, de maneira apoteótica, o fim do nosso casamento. Fiquei ofendido, de certa forma. Assim, não que o casamento tivesse salvação, estávamos num declínio vertiginoso há anos, mas eu não podia aceitar que ela me deixasse, como macho dominante que sou – ou pelo menos devia ser. Tentando recuperar um restinho de dignidade, anunciei que ela podia até me deixar e nunca mais olhar na minha cara de novo, mas quem sairia de casa seria eu. Ela riu, condescendente. “Moramos na casa dos seus pais, idiota”. Titubeei um segundo, não tinha atentado praquilo, e de repente sair de casa me pareceu sem sentido. Mas me mantive firme na decisão. “Não faz diferença. Quem deixa esse lugar que um dia, sonhadoramente, chamei de lar, sou eu”. Ela riu de novo, mais condescendente ainda, e aquilo me irritou. Peguei uma mala no armário, enfiei minhas roupas de qualquer jeito e por último arremessei meu portfólio de fotografias por cima de tudo, de um jeito propositalmente dramático. Ela me olhava e eu sei que se enchia de pena a cada segundo que passava, mas mantive minha cena cinematográfica. Fechei a mala de qualquer jeito, dei uma última olhada pelo quarto e saí sem olhar pra ela. Passei no quarto dos meus pais e inventei uma viagem de última hora, não queria preocupá-los, e fui embora. A pé, porque fugir da casa dos pais com o carro que o pai te deu não me pareceu muito rebelde.

No segundo seguinte já estava arrependido, porque chovia a cântaros e cada osso do meu corpo doía com o frio. Caminhei até um hotelzinho do centro, o atendente mal humorado da recepção me jogou num quartinho de segundo andar com a janela emperrada e o ar condicionado quebrado. O quarto cheirava a casa de gente morta. O chuveiro só tinha água gelada, então só troquei de roupa e me joguei na cama. Por um segundo pensei estar agindo feito um estúpido, mas como essa era uma sensação velha conhecida, não lhe dei atenção.

Devo ter dormido duas horas, aproximadamente. Depois de beber todos os mini-uísques que vi pelo quarto (e não eram muitos), liguei para a recepção e perguntei ao atendente mal humorado se ele sabia onde ficava o bar mais próximo. Não consegui entender uma palavra do que ele me disse, mas soou como “primeira à esquerda, segunda à direita, putas baratas”. Ainda tentei retrucar esclarecendo que não estava à procura disso, mas ele simplesmente desligou o telefone. Peguei minha câmera e saí fotografando as ruas da cidade, os postes, ainda caía uma chuvinha fina, mas eu fotografei tudo que vi pela frente. Os passantes me olhavam de maneira suspeita, acho que não era comum alguém fotografar àquela hora da noite um lugar que seria teoricamente sem atrativos. Mas a luz (ou a ausência dela) me atraiu naquele lugar.

Acabei caindo na esquina das tais putas baratas, e elas realmente estavam lá. Fui a um bar próximo, tomei uma cerveja gelada cujo primeiro gole me pareceu irreal e pedi para fotografá-las. Elas riram, meio tímidas, me perguntaram se era algum tipo de tara, expliquei que não, que era fotógrafo e queria fotografá-las, podia até pagar por foto, sei lá. Então elas se animaram, fizeram pose, comprei mais cervejas e bebemos e fotografamos por quase meia-hora, e nos intervalos para trocar o filme da máquina eu contava a elas minha história. Quando já estávamos todos meio bêbados e as putas bem menos tímidas, apareceu um cafetão sabe-deus-de-onde e me encheu de pancada. Destruiu minha máquina e os rolos de filmes, e só não destruiu minha estrutura facial porque as meninas conseguiram explicar a tempo que eu não era um tarado, nem da polícia e nem de um puteiro cybernético, era apenas um recém-divorciado que tinha a mania doentia de fotografar putas e pagar pelas fotos. Ele tomou isso como aceitável e me deixou ir embora, jogando cem reais em cima de mim pelo conserto da máquina que não teria conserto.

Voltei para o hotel bêbado, encharcado de chuva e suor do cafetão, sangrando e mancando muito. O atendente mal humorado não queria que eu subisse pelo elevador pra não manchar o carpete, armei um escândalo na recepção e ele me xingou de vários palavrões num castelhano feroz. Então ele não era brasileiro, por isso eu não entendia uma palavra do que ele dizia. Mas ele tinha cara de brasileiro, isso era o assustador. Tinha cara de José da Silva, mas não era brasileiro. Tentei dizer isso a ele, que se enfureceu ainda mais e gritou palavras de ordem em castelhano, das quais só consegui entender ‘viva la revolución!’ e ‘Guevara hasta siempre!’. Boliviano? Quando perguntei ele subiu no balcão da recepção, colocou um chapeuzinho de lã na cabeça e cantou o hino, que imaginei ser da Bolívia e preferi acreditar que seria, aquilo já tinha ultrapassado todos os limites. Ao final da demonstração de ataque de hipoglicemia ufanista, ele bradou ‘EVO! EVO! EVO!’. Ótimo, um José boliviano. Disse a ele num castelhano arranhado que era partidário de Evo Morales e da revolução indigenista (isso existia?) e pedi que me conseguisse uns mini-uísques. Ele me perguntou onde eu tinha conseguido o olho roxo, falei que na esquina das putas baratas e ele começou a guinchar feito uma hiena mutante, mas me arranjou os mini-uísques. Saiu por uma portinha lateral, eu fiquei batucando os dedos no balcão, impaciente. No calendário pendurado na parede, a foto de uma modelo muito feia mas muito gostosa, possivelmente boliviana. Quando me dei conta da data, entrei em choque. 16 de agosto. Aniversário do velho Bukowski. A informação me veio num relance, eu não me lembrava de saber a data de aniversário daquele velho safado, mas de algum jeito eu sabia que aquela era a noite de 16 de agosto, ou seja, era aniversário do Velho Buk, então era por isso que todas essas coisas estúpidas estavam acontecendo comigo. Prestidigitação cigana. Devo ter passado muito tempo com a boca aberta, em choque, porque quando o José boliviano voltou com umas vinte garrafinhas de mini-uísque voltou a guinchar feito uma hiena, apontando descaradamente da minha cara pra cara da moça do calendário. Tentei explicar que não tinha achado a moça bonita, mas ele continuou a guinchar e eu me dei por vencido, tomei as garrafinhas dele e fiz questão de subir pelo elevador.

Quando voltei ao quarto ele estava parecendo uma sucursal do inferno de tão quente. A janela estava emperrada, então era impossível abrir sem quebrar, e se eu destruísse o hotel do José boliviano ele mandaria o Evo me matar. O ar condicionado não funcionava, ou melhor, ligava mas não refrigerava o ar, soltando aquele bafo quente na minha cara. Culpa do velho Buk, eu repetia, completamente sem sentido. Que noite horrível. Fiquei me perguntando o que minha ex-mulher teria feito, se já teria dito aos meus pais que eu fugi de casa num arroubo de adolescência tardia, se já teria contado sobre o fim do casamento, se já teria viajado para as Ilhas Fiji com aquele amante sem vergonha que ela tinha e que trabalhava na Bolsa de Valores. Fiquei me perguntando o que meus pais estariam pensando de mim, se já teriam mandado as equipes de busca atrás do meu corpo apodrecendo nas ruas perigosas, escuras e fétidas do centro. Depois pensei nas putas e fiquei me perguntando porque diabos eu não tinha chamado uma delas pro hotel, elas me disseram que eram baratinhas mas o material era de qualidade, e me pareceu mesmo, cada bunda e par de peitos que nunca tinha visto antes. De todos os pensamentos, pensar nas putas foi o que mais me confortou, então fiquei com ele. Tentei limpar o filtro do ar condicionado, sem sucesso, e a única solução para aquele calor infernal seria tomar um banho no chuveiro que só tinha água gelada. Ok, banho de uma hora, banho de onanista (a puta loira me fez uma grande companhia), já me senti melhor. Tentei dormir mas não consegui, tomei os outros mini-uísques e quando passava das duas da manhã minha mãe adentrou o quarto do hotel.

__ Certo. Filho, já sabemos o que está acontecendo. É hora de voltar pra casa.
__ Não vou voltar, mãe. Acabei de declarar minha independência. Vou fazer quarenta anos e ainda moro com vocês! Isso é ridículo.
__ Tudo bem. Tudo bem. Quer morar sozinho?
__ Quero!
__ Tudo bem, a gente prepara aquele apartamento da Augusta pra você. A Linete pode ir lá duas vezes por semana pra fazer a limpeza.
__ Certo!
__ E dinheiro?
__ Vou fotografar profissionalmente. Vou vender minhas fotos.
__ Tudo bem, vou te passar uma lista depois dos nossos conhecidos em jornais e revistas e essas coisas. Entro em contato direto com eles.
__ Ótimo!
__ Será que agora podemos voltar pra casa?
__ Não! Só saio daqui direto pro meu apartamento!
__ Bom, você é quem sabe. Vou deixar diárias pagas até o final da semana. Tudo bem pra você?
__ Sim!
__ Certo, então. Boa noite, meu filho. Ligue para o seu pai amanhã.
__ Boa noite, mamãe.

Ela deu as costas e cinco minutos depois o telefone do quarto tocou. O José boliviano disse que ela deixou as diárias pagas e mais todo o estoque do bar do hotel à minha disposição, então eu devia ir até lá pegar os mini-uísques porque ele não andava em elevadores por medo de queda. Desci de roupão até a recepção, e fiquei batucando os dedos na mesa esperando o atendente voltar. Olhei de novo para o calendário, e muito embora tecnicamente não fosse mais 16 de agosto, ainda estava acordado desde que o aniversário do Velho Buk começara. Decidi comemorar.

Desci de roupão até a esquina das putas baratas e encontrei a minha loira. Comemoramos com o Velho Buk no estilo do Velho Buk até amanhecer.

Um comentário:

Thom.Job disse...

Gostei muito do blog!
Ótimos textos!
Parabéns!