quinta-feira, 26 de junho de 2008

Klaus e Flavinho

Momento inescrupuloso – Parte I

O primeiro tempo do jogo acabou e eu ainda estava divagando, pensando qual seria o motivo para Mariane ainda não ter chegado à casa da Penélope. O Flavinho me cutucou no braço e eu levei o maior susto.

– Tá tudo bem, Klaus? Você tá tão calado.
– É falta de cerveja, pega uma lá pra mim.
– Pega você, seu folgado.

Dei um cascudo nele.

– Deixa de ser mal-agradecido, rapaz.
– Agora que eu não pego mesmo.
– Deixa você me pedir cerveja de novo, pra você ver.
– Tá bom, tá bom. Tô indo...

Ele saiu. Eu levantei, dei aquela espreguiçada, como se estivesse sentado ali por séculos, depois fui pegar uma carne de sol na mesa, perto do Seu Dorival e da Dona Isadora. O Flavinho voltou com a latinha de cerveja aberta e bem mais leve do que deveria estar.

– Aqui, Klaus, a cerveja que você deixou lá na cozinha. Vê se não desperdiça.

Aquele moleque sempre foi uma figura, mas aquela superou todas. Eu não agüentei e comecei a rir. Seu Dorival me olhou daquele jeito meio desconfiado.

– Tá rindo do quê?
– Olha quem tá preocupado com a cerveja. Não toma nem leite direito e vem me dar lição de moral pra não desperdiçar cerveja.
– Flavinho, vai lá dentro e traz uma pra mim também.
– Toma essa aqui, Seu Dorival. Tá geladinha, eu tô meio empapuçado.
– Tá bom.
– Flavinho, vamos comigo na casa da Juliana?
– Ela não tá vindo pra cá?
– Tá, mas o Henrique me ligou pedindo pra ir lá ajudar eles a arrumar umas coisas, mas não disse o que era.
– Posso ir, pai?
– Se quiser ir, vai.
– Beleza.

Sai, passei na geladeira, peguei duas latinhas e entrei no carro com o Flavinho. Sei que eu não devia fazer o que eu estava fazendo, mas o Flavinho era gente boa demais e ao fazer isso eu pelo menos controlava o quanto ele bebia, do contrário ele bebia escondido até ficar bêbado como no dia do casamento de uma prima deles. A sorte dele foi que eu vi antes de todo mundo e o enfiei dentro do meu carro às escondidas. Deixei-o dormindo e voltei pra festa. Quando senti que Seu Dorival estava querendo ir embora e estava procurando por ele, voltei no carro e o acordei. Ele ainda teve a capacidade de vomitar lá dentro.

Enfim, entramos no carro e quando dei a partida ele abriu a cerveja e deu um gole. Eu o repreendi porque ele só deveria fazer isso quando estivéssemos longe da casa dele. Duas quadras depois parei o carro e ficamos lá dentro conversando.

– Quê que o Henrique quer?
– Não quer nada, seu Mané. Te trouxe aqui pra você tomar essa última cerveja, hoje. Estamos entendidos?
– Ah, Klaus. Só mais essa?
– Enquanto teu pai não liberar, eu te encubro, mas tem que ter limite.
– Mas eu já tenho dezesseis anos!
– É um problema seu com seu pai, além do mais até onde sei é proibido menor de idade beber.
– Por que você me dá bebida então?
– Porque se eu não der você vai beber escondido, e nós dois sabemos que você não tem limites.
– Ih, essa história de novo.
– É essa história de novo, seu Zé Ruela. Foi dose voltar pra casa com a tua prima e o carro cheio de vômito sem poder explicar o quê que era. Eu tive que culpar o Henrique e depois disso, ela ficava no meu pé toda vez que eu saia com ele. Tudo isso pra você não levar uma surra.
– Pô, valeu.
– Valeu uma pinóia. Você me deve sua alma, caramba.

Fez cara feia, porque sabia que era verdade. Eu o chantagearia eternamente por causa daquilo, muito embora até o momento estivesse sendo extremamente condescendente com ele e só o chantageasse para protegê-lo da própria sede insaciável.

Liguei para o Henrique para que passasse onde estávamos antes de ir para a casa da Penélope. Chegando juntos não haveria o incômodo de explicar porque fomos à casa da Juliana e voltamos separadamente.

Diversão inescrupulosa – Parte I

Ficamos tomando a cerveja, ambos calados. Até que o Flavinho falou uma besteira qualquer e eu discordei dele só para irritá-lo. O Flavinho era muito engraçado quando ficava nervoso. Começava a falar coisas desconexas e por fim ficava calado durante um longo tempo para depois, quando pensávamos que o assunto já estava encerrado, recomeçar a falar. Só que ele recomeçava a falar igual uma metralhadora quase sem recuperar o fôlego até que se esgotava e calava-se novamente dando tudo por encerrado, sem aceitar que tocassem no assunto novamente. Uma figura ímpar.

Depois de discordar dele ele começou a falar e falar e não falava nada com nada, até que o carro do Henrique apareceu na esquina com toda aquela velocidade de tartaruga maratonista, como sempre. Ele parou o carro dele ao lado do meu, olhou para o Flavinho todo emburrado e depois olhou pra minha clássica cara cínica. Balançou a cabeça e começou a rir.

– Vocês dois não mudam nunca. Vamos.
– Vai na frente aí que eu vou seguindo atrás. Se eu for na frente você vai chegar lá no final do segundo tempo.

Ele arrancou o carro e nem se deu ao trabalho de me responder. Odiava quando falavam da forma como ele dirigia. Quase que automaticamente incorporava o Airton Senna e saia ziguezagueando os carros mais lentos.

Eu havia olhado dentro do carro de maneira discreta, mas não vi a Mariane lá dentro nem a Juliana, o que achei ainda mais estranho, já que ela e o Henrique eram unha e carne, e a Juliana era Flamenguista fanática

Liguei o carro e segui em direção à casa da Penélope, andando a quase vinte quilômetros por hora. Flavinho ao invés de encerrar a discussão de sua maneira particular, resolveu tentar me importunar.

– Você fala do Henrique, mas é pior que ele.
– Olha quem resolveu falar. É o Emburradinho da Estrela. Conhece o Emburradinho da Estrela, Flávio?
– Vai te catar.
– Hahaha... Calma, Flávio. Calma! Eu tô indo devagar porque Vossa Excelência ainda não terminou a cerveja.
– Ih, nem lembrava.
– Toma mais um gole e me dá aqui. Pode ser?
– Pode, eu já tô cheio mesmo.

Ele bebeu mais um gole da cerveja e me deu a latinha, só então comecei a andar a uma velocidade compatível com a via. Indiquei a ele umas pastilhas de menta que estavam no porta-luvas havia pelo menos três meses, sem, é claro, revelar este pequeno detalhe.

– Gosto estranho. É de quê?
– Menta arábica. Sabor novo no mercado.
– Quer uma?
– Ah, não. Obrigado. Vai deixar a cerveja com gosto diferente.
– Tá bom.
– Pode ficar com as pastilhas pra você.
– Pô, valeu Klaus.

Liguei o som e logo chegamos à casa dele.

sábado, 14 de junho de 2008

O homem no espelho

Eu sei, é o que todos dizem: histórias de pessoas e espelhos já foram contadas antes, anos e anos antes de mim. Mas esse maldito espelho de última categoria que tenho no meu quarto não conversa comigo, não me leva a outras dimensões e tampouco afirma o óbvio: que existe alguém mais belo que eu. Ele só me mostra diariamente minha degradação física e meus colapsos mentais.
Eu tinha uma esposa. Quer dizer, ela não era bem minha esposa, nunca fomos formalmente casados. Mas eu a conheci aos dezenove, montamos um apartamento aos meus 21 e vivemos juntos por 13 anos, quando eu tive meu primeiro colapso mental e a deixei. Aproximadamente dois anos depois ela morreu, suicídio, a covardia mais corajosa que já vi alguém cometer. Eu já estava doente antes disso e continuo doente agora, agora que se passaram cinco anos da morte dela, e muito embora eu tenha piorado consideravelmente desde que ela se foi, meu corpo sempre se esquece de morrer. Coisa muito agradável de se fazer, por sinal. Desde que ela morreu eu me abracei à minha mortalha e tenho esperado pela Indesejada, que anda me ignorando solenemente.
Nina nasceu pra mim numa noite subterrânea na faculdade. À época eu já parecia doente, tinha um quê de sorumbático que irritava muita gente. Sempre fui uma pessoa grave e silenciosa, tão tímido quanto um ser humano podia ser, e isso parecia meio arrogante às pessoas. Ou seja, eu praticamente não tinha amigos. Cursava Filosofia, era chato e carregava comigo a maior solidão do mundo. Andava pra cima e pra baixo com meu maço de cigarros completamente amassado, um livro velho que de tão lido e relido eu já tinha decorado e o porta-uísque sempre abastecido, que passou do meu avô imediatamente pra mim por ser meu pai um abstêmio convicto e feroz. O livro era Cem Anos de Solidão, em espanhol, uma raridade que encontrei a um preço irrisório num sebo vizinho à minha casa, abandonado como eu. Não tinha lá muito respeito por ele, fazia todo tipo de anotação nas suas páginas e, por nunca deixá-lo na estante, estava todo deteriorado. Mas eu tinha um apego sobre-humano àquele exemplar, como se eu não pudesse andar sem ele. Falava pouco às aulas e, às vezes, sequer atentava para a explicação do professor, absorvido na produção do meu romance, a minha grande obra que nunca consegui concluir na vida, uma das muitas coisas às quais me dediquei e falhei miseravalmente. Ora, nem morrer eu consigo.


Nina, era de Nina que eu falava. Era uma aula de Ética III, uma das matérias mais insuportavelmente enfadonhas de todos os tempos. Metade da sala dormia e a outra metade se concentrava em qualquer coisa que não fosse aquele senhor já idoso lendo o seu plano de aula. Saí da sala sem ser notado – não que fosse uma tarefa assim difícil – e acendi um cigarro no corredor. Sorvi a fumaça como se finalmente voltasse a respirar, tomei um gole do uísque e me sentei no chão pra reler meus apontamentos. Já disse que era uma noite subterrânea, não disse? Sim, a sala era no subsolo da faculdade, e aqueles corredores silenciosos e sombrios estavam sempre à espera de uma anunciação. E ela veio.


“O coração, se pudesse pensar, pararia”


Bernardo Soares. Meu coração parou, assim, mas sem pensar. Alguém ali ou além recitava Bernardo Soares. Me ergui num salto mais ágil do que me sabia capaz e quase caí, olhando ao redor e procurando a voz, ou melhor, a dona dela.
__ Gosta de Pessoa?
Ela estava à minha frente, e parecia que sempre estivera ali, eu é que nunca havia enxergado.
__ Gosto muito de Pessoa. Mas o Bernardo é meu favorito.
__ É, eu reparei – resmunguei sem inteligência.
Era branca de uma brancura absurda, palpável, quase líquida. Meu instinto foi tocá-la, mas não pude, eu já não fazia mais sentido. Mal sabia se ela existia. Contrastando com sua brancura líquida, cabelos lisos de um negrume só, uma escuridão impenetrável.
__ Como é seu nome?
__ Breno.
__ Oi, eu sou a Nina.
Ela sorriu, e eu sorri de volta só porque o sorriso dela me encheu de uma felicidade imbecil. Ela usava um vestido de um amarelo berrante que ofuscava, e quando se aproximou pra me dar um abraço – que só recebi, sem retribuir – causou um choque visual ao se encontrar com a minha blusa preta.
__ Desculpa, mas de onde você saiu?
__ Festinha nas Cênicas. Fui ao banheiro e na volta te vi fumando. Então vim pedir um cigarro.
__ Você faz Cênicas?
__ Não, Desenho Industrial. Você pode me dar um cigarro? O que você estuda?
__ Filosofia.
__ Interessante. Por que não está na festa?
__ Não sou de festas.
Ela esquadrinhou o chão à procura do isqueiro e encontrou meu livro.
__ Um intelectual, é? Sabe, eles também frequentavam festas. Os intelectuais. Bebiam absinto e usavam drogas, essas coisas.
Dei de ombros. Ela riu, superior. Sacudiu o livro com pouquíssimo zelo, quis matá-la. Mas não pude.
__ Gosta de García Márquez, pelo visto.
__ É meu preferido. Esse é o livro da minha vida.
__ Sei. Você carrega consigo a maior solidão do mundo. Eu até gosto dele, sabe? Mas prefiro poesia.
__ Você é passional.
Sorriu novamente, com gosto.
__ É? E de onde você tirou isso?
__ De lugar nenhum. É só uma teoria.
Estava nervoso, incomodado, intimidado e crescentemente envergonhado. Ela tinha um ar insolente que me desnorteava, eu não sabia o que fazer das minhas mãos. Por fim tomei o livro e o isqueiro dela e dei as costas.
__ Onde você vai, Bruno?
__ É Breno. Meu nome é Breno. Vou voltar pra aula.
Ela me puxou pelo braço, sempre sorrindo.
__ Esquece a aula. Vem, vamos nos espalhar por aí.


Passei três dias seguidos na casa dela, vivendo de sexo e brisa, ou seja, um amor desesperado e latente. Eu me apaixonei pela sua loucura. A casa era o exemplo da desordem, o som era alto dia e noite, pessoas iam e vinham a qualquer hora e ela se alimentava de maconha. E mesmo bebendo feito uma lontra selvagem e fumando maconha como quem respira ela quase nunca dormia. Tinha o maior número de amigos que pude imaginar e pintava o tempo todo, andando pela casa em trajes sumários como se estivesse sozinha. Por vezes ela me deixava à deriva e se perdia nas coisas dela que eram só dela e continuariam sendo pelos próximos quinze anos.
Dentro do que conseguimos aceitar como sensato construímos nossa vidinha. Ou melhor, ela construiu sua vida com o resto do mundo, eu construí um castelo inacessível e nos tranquei na torre mais alta. Minha vida era ela. Meu sangue era o dela, meu respirar era o dela. Trabalhava por trabalhar, estudava por estudar, eu vivi Nina em desespero.


Dois anos depois de sua morte eu tive meu segundo colapso mental e larguei o emprego, prestes a me aposentar integralmente por invalidez. Meu pai ficou felicíssimo, claro. Pediu minha interdição e me trancou num hospital em São Paulo para tratamento. Terapia, quimioterapia, eu só queria morrer, mas não podia. Nina morta em mim doía, toda a dor do mundo, toda a solidão do mundo. Após um ano tive o terceiro colapso, me dei alta daquele hospital infernal e me mudei para o Rio de Janeiro. Fumava dois maços de cigarro por dia pra ver se apressava a hora de ir embora e bebia ininterruptamente. Escrevia, virei escritor, fui publicado e lido aqui e ali, foi no terceiro mês de Rio que o espelho apareceu. Só comprei pra me livrar do vendedor, larguei aquela monstruosidade barroca no meu quarto e não lhe dei atenção por uns quatro dias, até me ver refletido nele.
Tive o quarto colapso mental, então. Parei de fumar, reduzi drasticamente a bebida àquele cálice de vinho famigerado dos cardiologistas e tentei fazer uns amigos. Cheguei a viver um pseudo-amor com uma moça branca e bela que hoje me odeia violentamente. Adiei a morte enquanto me foi possível, mas por um motivo qualquer que ainda agora ignoro completamente, pois não havia vontade, não havia apego nenhum à vida. Continuei a amar Nina de um jeito tão doentio e agalopado que me parecia errado não estar com ela.


Hoje, hoje tive meu quinto e último colapso mental, eu acho. Cheguei em casa mais embriagado que uma marmota mutante e vi Nina branca, incrivelmente branca, no espelho. Sem pensar uma vez sequer eu o destruí, juntando seus destroços sobre a cama, e me deitei ao seu lado, todas as pílulas nas mãos ensanguentadas.


“O coração, se pudesse pensar, pararia”. Acho que pára dessa vez.





*

A história de Breno, meu personagem mais longevo, está fragmentada em textos desse blog, e ainda resta uma lacuna, referente ao período que ele viveu com Clara no Rio de Janeiro. Se for do seu interesse, acompanhe sua história, lendo os seguintes textos, nessa ordem: Canção Desesperada, Amores possíveis I e Baixo Rio. Só não se incomode com sua morte. Era uma morte anunciada, como o título de um livro do seu literato preferido.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Cretino conquistador

Ela sempre foi muito bonita, isso eu não tenho como negar, foi assim que a conheci: tentando conquistá-la. Ela estava em um vestido preto que mostrava o corpo esguio e aquele busto fenomenal. Estava conversando com uma senhora de uns quarenta anos excessivamente bem vestida para a ocasião e com uma maquiagem que parecia inspirada em bailes de carnaval. Aproximei-me com um copo de uísque na mão.

– A festa está bem animada, não acham?

Ambas me olharam com desdém e voltaram a conversar como se eu não estivesse ali. Eu fingi que aquilo não me abalou.

– É... nem todo mundo está animado. Frigidez é um problema sério. Tchau, minhas queridas.

A senhora fingiu que não era com ela, mas Mariane não resistiu. Ofendeu-se. Eu já estava virando de costas e saindo quando ela falou:

– Tchau, palhaço.

Voltei, abri o sorriso mais cretino que uma pessoa consegue simular e olhando nos olhos dela disse:

– Pelo menos você viu alguma graça em mim, já eu não posso retribuir a afirmação.

Sai sem esperar resposta e ela ficou sem reação. Ela sabia que era linda e ouvir de um homem que ela não o atraía era como uma bomba que seu orgulho não seria capaz de suportar.

Continuei: bebi, dancei e flertei com várias mulheres. A festa estava realmente bastante animada e cheia de mulheres bonitas. Dancei um xote com uma das mulheres mais bonitas da festa – minhas aulas de forró estavam realmente surtindo efeito. Ao fim da música eu pedi licença, fui ao banheiro e de lá ao bar, pra pegar uma água tônica. No caminho, Mariane me puxou pelo braço.

– Você é sempre assim?
– Assim como?
– Sem educação.
– Só quando a ocasião pede.
– Olha... foi mal, me desculpe mas eu estava já estava nervosa com o papo chato daquela senhora.
– Tudo bem, agora com licença.
– Ei, você vai aonde? Estamos conversando.
– Ah, estamos? Eu pensei que o assunto havia encerrado.
– Prazer meu nome é Mariane.
– Klaus.
– Nome diferente.
– Meu pai sempre achou bonito. Não gosto muito dele, mas como não tenho outra opção, acabo aceitando.
– E então, Klaus. De onde você conhece o Henrique.
– Estudamos juntos na faculdade. Ele comprava os trabalhos dele de mim, sabe.
– Que horror.
– O quê?
– Você colaborar com isso: vender trabalhos universitários.
– Só isso? Eu vendo até hoje. É um dinheiro fácil que eu não dispenso de forma alguma.
– Um absurdo isso.
– Deixa pra lá. E você de onde conhece o Henrique?
– A Juliana é minha prima.
– Ah, a Juliana é sua prima?
– É sim.
– Que interessante.
– Por quê?
– Porque a Juliana é praticamente minha vizinha. Somos muito amigos e ela freqüenta bastante a minha casa. Aliás, fui eu quem fez as apresentações dos dois. Engraçado eu nunca ter te visto por lá.
– Bem, não somos extremamente amigas. Somos primas e só. Ela me chamou pra vir à festa hoje porque minha mãe passou na casa dela e eu fui junto. Como não nos víamos há muito tempo me chamou pra festa.
– Ela e o Henrique são perfeitos, não? É o casal mais bacana que eu conheço.
– Nossa que termo.
– O quê?
– Bacana...
– O que tem?
– Tão... chulo.
– É meu jeito, se não te agrada...
– Você é sempre assim?
– Assim como?
– Sem educação.
– Só quando a ocasião pede.

Achei que a conversa deveria terminar ali mesmo e fui saindo, ela segurou meu braço novamente e me puxou de volta.

– Você é tão bonito, por que age desse jeito?
– Por que não agir desse jeito?

E fiz novamente o sorriso cretino. Aliás, esse sorriso cretino é minha marca registrada. Um sorriso de canto de boca com os olhos meio apertados: um charme só. Ela aparentemente ficou horrorizada com a resposta que porque soltou meu braço e ficou com aquele olhar vago, fixando o vazio. Acho que ficaria assim por um minuto inteiro se eu não tivesse intervido.

Aproximei dela, segurei seu rosto com uma mão enquanto colocava a outra na sua cintura. Ela pareceu despertar com um choque e assustar-se, mas não reagiu. Apenas me olhou. Eu olhei seus olhos, sua boca, aproximei meu rosto, puxei o corpo dela contra o meu e parei. Nossos lábios estavam bem próximos.

– E agindo assim, eu agrado?

Foi então que nos beijamos. Um beijo demorado e lento. Um beijo apaixonado. Enquanto a beijava eu acariciava seus cabelos e passava a mão por suas costas. Que pele macia, que cabelos maravilhosos. Acho que nunca vou esquecer a sensação que foi nosso primeiro beijo. Uma sensação deliciosa que sinceramente, nunca mais experimentei desde então.

Terminado o beijo permanecemos abraçados, nos olhando em silêncio. Estávamos nos admirando por alguns momentos. Ela era realmente linda e tinha um jeito muito carinhoso.

– Então...
– Então o quê?
– Isso é porque você não viu graça nenhuma em mim?
– Você viu em mim, isso me basta.
– Você é muito cheio de si.
– Eu transbordo egocentrismo.
– Percebi.
– E aproveitou também.
– Jesus amado, você não consegue deixar de ser assim nem um instante? – disse sorrindo.
– Assim como, sem educação?
– Não. Convencido.
– Ah, eu achei que eu era sem educação. Você muda de idéia muito rápido.

Ela sorriu. Pediu licença, disse que voltava e saiu em direção ao banheiro. Eu olhei o relógio, fui até a saída e pedi ao manobrista que trouxesse meu carro. Voltei à festa para me despedir do Henrique e da Juliana. Retornei à saída onde meu carro já estava esperando, dei uma gorjeta ao manobrista e fui embora.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Amores possíveis II - Lígia e Bárbara

Então o plano.

Não, não havia plano. Era só estímulo, manifestação, sopro, indo em todas as direções, num caminhar descontínuo e sem limite. E havia a esperança, todas as esperanças unidas no desejo latente de matar a sede. A fome. Tudo que consome e cega. E consumida e cega eu ia, faminta dos gostos dela, desconhecidos e cravados na minha pele, minha língua, meu suor que banhava a cama noite após noite. E noite após noite meus dedos a transformavam em vítima e cúmplice desse crime ensopado, e a cada amanhecer de cada dia eu era ela, ainda que ignorando por completo seu nome. E andava nos seus passos por não encontrar meus sapatos ou o que tivesse valia, eu ia.

Então a forma.

E havia um dia de luz, uma luz clara de fechar olhos. E de olhos fechados eu ia até cruzar com ela, num único respirar do universo. Todos os meus poros se abriram como que para absorver o perfume que ela exalava impunemente, e naquele momento de luz e dor eu fui dela, e continuei sendo dela, todos os dias em que eu refazia aquele caminho pra cruzar com o olhar dela, esperando que de olhos abertos ela caminhasse e pudesse me ver, mendiga dos carinhos dela. E a segui, e os dias em que ela não caminhava pela nossa estrada de tijolos eram longos e vazios, daquela espera silenciosa e voraz pelo dia seguinte. Eu ia.

Então o espelho.

O espelho me julgava e me mentia todos os dias, porque eu contrariava a natureza por desejar aquela criatura e por saber que o sexo dela era o mesmo do meu. E não só o espelho como o dia, a noite, a chuva e todos os olhares me julgavam por esse desejo errado porém latente e de uma verdade tão absoluta quanto absoluta era a equidade entre o sexo meu e o sexo dela. Mas contrariando qualquer julgamento eu continuava a esperar, e cada vez mais sedenta do sexo dela igual ao meu junto ao meu eu ia.

E de ir acabei cegando pro que devia ter visto, e devo ter cruzado com ela em vários outros caminhos, mas a esperava sempre no lugar que julgava nosso, por tê-la visto lá a primeira vez. E não vi caminhos outros e não vi mais a ela e a mais nada. Apenas ceguei.

Então a visão.

Ela veio caminhando por um caminho novo, num dia sem luz de fechar olhos, num dia de se caminhar seguramente por um caminho que se vê, se conhece e se deseja. Ela veio. Eu não pude ir até ela porque não sabia se ainda podia andar, eu apenas esperei. Ela veio.

E começou a falar.