sexta-feira, 23 de maio de 2008

Prato frio

Eu até poderia fingir que nunca doeu. Que nunca feriu. Eu podia fingir todas as coisas pra você, de fato poderia, e até quis por muito tempo. Aliás, penso que consegui por muito tempo, pois ainda ferido você tornava a me ferir. E não havia em meus atos ou palavras sinal nenhum de que tuas malignidades arrancavam lentamente, de uma lentidão suave e cruel, todos os amores que senti por ti e parti em milhares de pedaços, esperando em vão que de mim nunca saíssem. Mas estava em meu olhar o tempo todo, aquele desespero silencioso de quem vê a chaga mas não pode curá-la. Ou talvez não queira, na esperança de que outro, no caso a mulher amada, o faça. E é incrível olhar para trás agora, abrindo violentamente a cortina do tempo, e ver as chagas de anteontem ainda abertas. E somente te vendo agora, nua e sem vida, é que volto a me sentir vivo, como se milagrosamente eu voltasse a respirar, após um período longo e obscuro com a cabeça dentro d'água. E todas as palavras que eu quis um dia te dizer me vêm com facilidade tamanha, como se eu tirasse a mordaça que me censurou por todos esses anos. Posso até ver com clareza os seus erros, e consigo facilmente elencá-los em grau de maldade e violência. Eu estive cego durante anos, anos a fio em que você esteve a me trair, a mentir, a enganar, a sugar. Eu estive mudo durante todo esse casamento que você conseguiu, com sua fleuma de negociante, transformar em um arranjo, num jogo de interesses tão mesquinho quanto você mesma. Porém me veio a anunciação, minha cara, aquilo que chamamos precariamente e sem fé de Divina Providência. E nesta noite argentina não vou te deitar à minha cama, hei de te deixar banhada em sangue. E sairei, e rodarei, e viverei. E quanto eu voltar tu ainda estarás à minha espera, ainda nua e banhada em sangue, e como nunca silenciosa e devota.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Tempos apaixonados, tempos apaixonantes

Ontem eu me peguei pensando nela novamente. Dizer isso soa muito engraçado porque não existe ELA especificamente, compreende? Acho que estou vivendo novamente um daqueles momentos mutantes da vida, onde nos pegamos nostálgicos. Relembramos tudo de bom que nos aconteceu e começamos a pensar e pensar e pensar. Assim pensando, pensando e pensando acabamos sentindo saudades.

Ontem eu estava com saudade dela. Daquele friozinho na barriga, daquela euforia desmedida e aparentemente sem sentido de todas as manhãs. Esperança, euforia, decepção, frustração, mais esperança, alegrias, encantos e desencantos. Olhares, sorrisos, lágrimas, mais sorrisos, mais lágrimas, espinhos, pétalas, flores, cores, odores e temores.

Quanta coisa se viveu. Tanta coisa boa, tanta coisa ruim. No final ficam as lembranças, o aprendizado e a maldita saudade. Nós nos esquecemos de tudo, mas um dia a saudade bate e traz à tona tudo que se viveu e a vontade de viver tudo de novo, e nessas horas, no anseio de se reviver, as lembranças se misturam às fantasias, aos desejos e acabamos sentindo saudade até mesmo daquilo que não vivemos, porque também sentimos saudades dos sonhos que aparentemente morreram.

Sonhos são lindos, são maravilhosos e traiçoeiros. Nunca acredite que um sonho morreu. Ele se transforma, metamorfa, se maquia e é maquiavélico. Quando menos esperamos eles voltam pra nos assombrar, de sonhos se transformam em fantasmas. Frustração mal trabalhada, sabe? Faz parte da vida acontece comigo e com certeza acontece, aconteceu ou acontecerá com você. Paciência, não se morre dessas coisas e se formos espertos o bastante ainda conseguimos transmutar esses fantasmas de volta em sonhos. Isso é viver.

Sinto saudades da paixão. Sinto saudades de estar apaixonado. Sinto saudades dos meus sonhos. Sinto medo dos meus fantasmas... e eles sentem medo de mim.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Wishlist

E daí que casar não está nos meus planos, não mesmo. Ter um filho até, quem sabe, um Lorenzo. É, sou brega, não há remédio pra isso, já procurei na farmácia. Mas isso de ter um filho é sazonal e depende do estado dos meus nervos, então eu mudo de idéia toda vez que muda a Lua, e ainda bem que tomo pílula e todo o resto, senão o que eu ia fazer com o Lorenzo na época de não querê-lo? Oh, drogas. Também não pretendo passar o resto da vida num emprego só, mas isso não é o que todo mundo diz, o papo de promoção e progressão funcional ou trabalhar com qualquer coisa até o dia glorioso em que vou trabalhar com o que quero (tipos ser lanterneiro até conseguir chegar à Procuradoria Federal). Não. Mesmo se eu trabalhasse com o que amo desesperadamente - que no momento é aquele ser humano que toca bateria e trança o cabelo do jeito mais charmoso ever - eu ia querer trabalhar com outra coisa alguma hora da vida. E nem é por ser versátil, porque não o sou, ou por ser multifacetada, porque não gosto dessas frescuras. A questão é que me desapaixono por tudo de uma maneira tão rápida e indolor que às vezes dói, como diria o CaioF, 'lateja louca nos dias de chuva'. E a sensação de vazio me enche de tanta angústia que me perco nas coisas que nunca foram minhas, então preciso ter tudo, ora, isso não faz sentido. E também quero viajar muito e para muitos lugares, mas os locais mais não-convencionais possíveis, tipos todo mundo quer ir pra Nova Iorque só pra comprar aquela blusa idiota do I S2 NY, tudo bem soar clichê, todo mundo é clichê, mas tem o clichê charmoso, tipos eu quero a Europa, super clichê a Europa, mas não Paris e Londres e essas baboseiras que todo mundo faz. Quero a Espanha, o leste europeu, a parte mais dourada e menos cinzenta do Viejo Mondo, quero a vodca da Polônia e não da Rússia. E da Ásia prefiro a Indonésia à China, todo mundo vai pra China, todo mundo quer a China, é muita bicicleta amontoada, chega perco o ar. Nova Zelândia tá na moda, mas eu até queria, nem tanto pelos cangurus, ai, canguru é na Austrália, na Nova Zelândia é aquele pato-peixe, não é isso? Sei não. E além de viajar e não-casar e ter vários empregos vida afora, também quero ter muitos cachorros, nada de gatos, odeio gatos, mas quero ter muitos cachorros. Juro que não vou carregá-los em fakes da LuíVitón pra cima e pra baixo nem vou levá-los a DogSpas, vou deixar os bichinhos serem cachorros felizes, podem se sujar de lama e enterrar ossinhos (embora eu não acredite verdadeiramente nessa história de enterrar ossos). Enfim, eles poderão agir feito cachorros e estará tudo lindo, tudo na mais perfeita (des)ordem. E seus nomes serão coisas do tipo Zeca, Chico, Madalena, nada de Max ou Fox ou Scott ou Beethoven (se bem que um podia se chamar Wagner, de preferência o labrador de pelo negro, Wagner fica lindo). Enfim. E depois de ter vários cachorros e depois de viajar e depois de trabalhar com tudo que eu puder e depois de tudo mesmo eu queria aprender a operar um trator. Ou pilotar, ou dirigir, ou o que seja que alguém faz pra colocar o trator em movimento. Eu queria colocar um trator em movimento, com aqueles fones horrivelmente grandes no ouvido. Mas queria colocar um trator em movimento em uma avenida movimentada, tipos a Paulista às seis da tarde. Mas aí ele não ficaria em movimento, então esquece a Paulista. Não sei aonde, sei que tudo que ando querendo por agora é operar um trator. E não, pseudo-psicanalista-de-merda, isso não é um desejo reprimido, é o que é, vontade de operar um trator e pronto. Quem sabe até carregar uns tijolos pra lá e pra cá e depois tomar um café requentado. Mas é isso, por ora. Operar um trator e depois beber com os meus amigos e contar pra eles como é operar um trator, eles nunca fizeram nada parecido e vão ter inveja master. E quem sabe depois da vontade de operar trator venham vontades outras, também não-convencionais, tipos morar num iglu só pra ver se faz frio mesmo, e ver até onde suporto neve, porque eu acho neve o máximo, mas será que eu suportaria ver neve todos os dias por toda a minha vida? Não, eu não suportaria, cancela o iglu, cancela a neve. Quem sabe uma sociedade alternativa, cogu e visu da natu na cachu. Por uns três meses. Hahahahaha.

Pensando bem, pensando bem mesmo, ainda bem que essa vontade de ter Lorenzo vem e passa rápido, não sei se eu teria coragem de operar um trator sendo mãe. É isso, cancela o filho, fico com o trator.

sábado, 10 de maio de 2008

Simplicidade envolvente

Estávamos abraçados. Era noite e estávamos abraçados olhando pela janela, as luzes apagadas, e eu sentia o cheiro dela enquanto o aparelho de som preenchia o ambiente com aquele trip hop relaxante.

Eu fechava os olhos e sentia a textura da pele dela. Lisa, macia, tentadora. Até então a noite havia sido perfeita. Um bom jantar, um bom vinho, sorrisos, abraços, beijos e sexo apaixonado. Não importa quantas vezes você fez sexo na sua vida, quando se faz com sentimento sempre parece ser a primeira vez.

Mordi levemente a orelha dela. Ela passou a mão pelo braço que a apertava contra meu corpo.

- O que faremos agora?
- Não sei. Sei que está sendo muito bom.
- Não me imagino mais sem você.
- Nem eu me imagino sem você. Sem esse abraço, sem esse sorriso...
- Mas você tem que ir embora e eu não posso ir junto.
- Ah, não, amor. Vamos aproveitar o nosso tempo...

Dito isso, virou-se, colocou seus braços em volta do meu pescoço e me beijou.

- Para de pensar nisso, a gente vai dar um jeito.

Simples. Fácil. Tudo para ela parecia ser assim. Ela parecia não se importar com os meandros dos caminhos da vida, com os obstáculos impostos pelo destino. Fascinante essa visão da vida. Uma linha reta: simples e sem interferências. Uma visão tão fascinante quanto perigosa. Não posso negar que fui seduzido por tudo nela, desde sua beleza até sua forma simplista de ver a vida.

Beijei-a de volta, abraçando-a firmemente. Parei e, olhando dentro daqueles olhos encantadores, não pude pensar em outra coisa, além da felicidade de se viver o agora.