segunda-feira, 12 de abril de 2010

Desapego

Imaginas que sofro com tua ausência?
De fato conjecturas sobre meus sentimentos.
Imaginas que afundei-me em decadência,
Sofrendo por te ter em meus pensamentos.

Pensas que lembro-me de ti com afeto,
Que em meu coração ainda encontra alento,
Como se fosse teu refúgio secreto,
Para quando a vida te por em sofrimento.

Sofro sim, mas não pense que seja por saudade,
Pois tudo que trouxes foi desgosto e ilusão.
Sofro por teres ido tão tarde,
Agora que descobri que não há solidão

Vivo os prazeres da vida e da carne,
Sem no entanto ofertar meu coração
Deitei-me com mulheres de todas as idades,
Experimentei o sexo de ocasião.

Não, não preciso mais de tuas lamúrias,
Muito menos de seus achaques e sandices,
Descobri que posso viver da luxúria,
E que perder meu tempo contigo, foi pura tolice.

domingo, 28 de março de 2010

Fim / Rotina

- Você não sabe amar!

Gritava com lágrimas nos olhos. Cobrava apenas aquilo que considerava a equidade do sentimento que tinha por ele.

Indiferente ele acendeu um cigarro, soprou a fumaça pro alto e fitou-a em silêncio. Aguardando o que mais poderia advir daquela discussão que considerava desnecessária e enfadonha.

Ela começou a chorar, primeiro em silêncio, depois parecia fora de si chorava e gritava encolhida no sofá. Naquela situação o silêncio dele a feria mais do que quaisquer palavras que pudesse dizer.

Em pé diante dela, ele apenas fumava o cigarro enquanto ela chorava. Apagou o cigarro pela metade, sentou-se ao lado dela passou-lhe a mão pelos cabelos. Ela, com raiva empurrou-lhe gritando:

- Sai daqui!

Ele levantou-se acendeu outro cigarro e caminhou em direção à porta, abriu-a, olhou pra trás e disse em tom seco:

- Me liga amanhã.

Foi-se embora e nunca mais ouviu falar dela.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Desaprendizado

Começando a conversa: esse talvez seja o primeiro texto declaradamente pessoal que publico em um espaço que não seja o meu bloguinho, meu cantinho escondido onde falo abertamente de mim. Claro que, dentro do meu entendimento de literatura e partindo do pressuposto de que sou uma literata, muitos dos textos que escrevo, embora ficcionais, têm relação comigo ou com vivências que experimentei. Mas, nesse post sincerista, não vou me travestir de literata. Sou eu, palavra por palavra. Fácil não é. Uso a literatura justamente para falar de mim sem me expor. Mas como o espaço é dedicado aos românticos incorrigíveis, me sinto à vontade, é quase como conversar com a melhor amiga.

Sendo um texto sincerista, o estilo também é o sincerismo. Escrevo como falo, como sinto, sem preocupações maiores com o vernáculo. Principalmente por saber que, quando há sentimento, quem também sente entende, e isso independe da forma como é dita. Basta sentir.


*

Estou há quase quinze dias sem ver meu namorado, fato que não ocorre há mais de um ano. Difícil, sabem? Ser dividida em duas cidades sempre faz do período de férias um drama.

Passar tanto tempo longe da cara persona acabou me proporcionando diversas epifanias, coisas que tinha ignorado até então e surgiram em momentos de olhar pra dentro. Descobri que, ao contrário do pressuposto comum de que com o amor se aprende, eu desaprendi uma série de coisas.

Descobri que tenho medo de andar sozinha à noite. Eu, que sempre curti a noite (entendam, eu disse a noite e não a “nigth”), que sempre caminhei sozinha à noite pra pensar, que andava mais de dez quarteirões com a melhor amiga depois das dez da noite só pra botar a conversa em dia, tenho medo de andar sozinha à noite. Percebi isso ontem, enquanto voltava pra casa saindo da casa de um amigo. Porque há mais de um ano, quando eu volto pra casa, meu namorado tá no banco do passageiro do carro. E parece que só a presença dele garante minha segurança e bem-estar. Não, não me sinto uma mulherzinha indefesa e não vejo nele o guerreiro medieval que vai afastar os monstros na noite escura. É só aquela reação mecânica de pensar que, se algo acontecer, não vai ter ninguém do meu lado pra ajudar. Também não significa que antes eu me sentia Highlander. É difícil explicar. Mas, resumindo: antes dele, eu andava à noite sem medo.

Descobri também que não sei mais dormir em cama de solteiro. Sozinha, então, é terrível. Descobri numa noite fria, e não só por me faltar o cobertor de orelha, aquela coisa de dormir abraçadinho e tal. Ilustrando: sempre durmo com o ar-condicionado ligado. E há sempre aquele momento, no meio da madrugada, que o frio do ar aperta. Quando isso acontece e quando estou com ele do meu lado, me basta dizer “amor, tou com frio”. Em um minuto – às vezes até menos – o ar já está desligado, ele já ajeitou os cobertores e já me abraçou daquele jeito dele que me deixa mais aquecida. Parece romance, né? É bem piegas, né? Talvez até seja. Mas quando você acorda no meio da noite morrendo de frio e leva cinco minutos pra perceber que a cara persona não está lá pra desligar o ar-condicionado, fechar a janela, virar o ventilador pro outro lado, ajeitar os cobertores ou dar aquele abraço, qualquer coisa que demonstre que seu incômodo incomoda também aquele a quem ama, quando você acorda no meio da noite e percebe que não tem ninguém ali do lado que cuide de você, dá um aperto, ó. Uma vontadezinha fajuta de chorar, chorar de saudade porque você se pega pensando se a outra pessoa também está em casa rolando na cama sem conseguir dormir, porque de repente aquela cama ficou enorme demais.

Descobri que todos aqueles rituais matinais vistos nos filmes estão apenas lá, nos filmes, mas que ainda existe uma maneira de amanhecer ao lado da pessoa amada sem perder a ternura. Abraços, desejos de bom-dia, mais abraços, ele se levanta pra se preparar pra sair (eu me dou ao luxo de ficar na cama até as onze). Toma um banho, come alguma coisa – se o horário permite – e sempre antes de sair me dá um beijo, um abraço e me deseja de novo um bom-dia. Às vezes diz que vai tentar resolver o que tem pra resolver e voltar, e se volta, me traz coxinha de frango e Baré, café da manhã dos campeões. E assim eu desaprendi não só a dormir sozinha mas, obviamente, a acordar sozinha, e meu humor oscila durante o dia se não tenho nosso rituais matinais. É como se a ausência do desejo dele de bom-dia acabasse influenciando no meu dia de fato, deixando ele bem meia-boca.

Descobri que assistir a competições de artes marciais sem ele também não tem graça nenhuma. E olha que eu adoro artes marciais. Sempre assisti ao UFC, campeonato de MMA (mixed-martial-arts, o antigo vale-tudo), mas com ele tudo fica tão mais engraçado e divertido, sabe como? Porque não é só assistir ao evento. É deixar de sair num sábado à noite, comprar umas cervejinhas e acompanhar com fervor religioso os competidores se matando numa gaiola – e o amor tem dessas coisas, de transformar em poesia um esporte violento. Tentei assistir ao UFC sem ele durante as férias, mas dormi durante o primeiro round da primeira luta. E isso nunca tinha acontecido antes dele. Com ele, então, impossível. Porque ao menor cochilo eu acordava assustada ao som de “pega, puta! Dá na cara dele! Joelhada, joelhada! Muito foda, muito foda!”. Claro que é incrível descobrir, no meio de tanta gente, alguém com tanta afinidade para as coisas menos prováveis, como o MMA. E quando se encontra, parece que não dá mais pra dissociar. Daí a gente desaprende a acompanhar se a pessoa não está por perto, pra fazer com que o gosto pela coisa faça sentido.

É claro que todo esse processo de desaprendizado leva a pessoa a aprender coisas novas. Aprendi e aceito a condição de lembrar dele ao ouvir heavymetal, e por lembrar dele, de sentir saudade de ouvir heavymetal. Aprendi a perder uma tarde inteira assistindo ao desenho animado preferido dele (Flapjack, recomendo, passa no Cartoon) só pra ter a impressão de que estamos juntos em casa e eu o observo rachar de rir enquanto assiste. Aprendi que saudade dá pra se matar assim, aos poucos e com pequenas coisas, enquanto não chega o momento de estar junto de novo. Aprendi que o meu lugar preferido do mundo é o peito onde ele me abriga, ainda que à distância, ainda que quebrada em duas cidades, e acredito no poeta que diz que deve haver um porto¹.

Assim como pude descobrir, à la Orkut, o que aprendi com os relacionamentos anteriores (impossível deixá-los de lado, sou feita de memória): o amor é cigano. Caminha, caminha, caminha, tece trilhas e mais trilhas até o local perfeito pra se parar e descansar. The long and widing road that leads to your door². O longo e sinuoso caminho que me levou até a porta dele.

1 – Caio Fernando Abreu
2 – Lennon & McCartney

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

ele grita. ela olha. ele berra mais alto. ela acende o cigarro entra as unhas já não mais tão perfeitamente vermelhas.
ele fala, agora mais manso: "me responde. me res-pon-de."
ela termina o cigarro. joga no chão. apaga. vira as costas. e fala. ainda de forma que ele escute.
"quando tu aprender a ser homem, tu me procura."

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Epifania mal-interpretada

Era tarde. Quer dizer, à tarde. Eu caminhava pelo deserto semi-árido que é Brasília no período da seca, entre o Palácio do Buriti e o Memorial JK. Tinha perdido um ônibus, eu acho. Ou sei lá, acho que ia até o Sudoeste a pé, justamente por ter perdido o ônibus, isso. Ia passar na casa dela por algum motivo que não me lembro agora, só que era um motivo doído. Tipo acertar os detalhes da separação. Tipo pegar a caixa com as minhas coisas essenciais ("os quadros deixa aí que eu coloco pra vender numa galeria depois" - ela disse, muito vaca. Comprei aqueles quadros de um artista vanguardista que ela adorava a um preço absurdo, dá pra entender a revolta?). Enfim, eu tinha rompido com a mulher da minha vida, o ser humano a quem mais amei na face da terra e por quem briguei com minha mãe e fui banido de todos os almoços de família para sempre. Deus, como eu amava aquela mulher. Mas ela, bruxa má do oeste, percebeu que em algum momento eu a sufocava e quis dar no pé. Quer dizer, dar no pé é só pra ilustrar a situação, porque quem ficou sem carro e sem apartamento fui eu. Porque eu jamais deixaria a mulher amada e desamparada na rua da amargura. Sendo que a rua da amargura dela era um outro cara no meu apartamento. Que agora era dela. Não sou um monstro, sou um romântico burro e incorrigível.

Voltando. Perco o foco às vezes, desculpem aí.

Estava debaixo daquele calor inclemente de Agosto caminhando em direção à casa que um dia foi minha ouvindo uma das musiquinhas mudernês que ela gostava. Nem sei o nome da banda. Tinha colocado no meu mp3 porque me fazia lembrar dela, e sou desses que gosta de se torturar após um fim de relacionamento. Eu não gostava daquele tipo de música até ela aparecer na minha vida. Ela era mudernê, entendam, eu era um classicista chato, extremamente preconceituoso e sem vontade de conhecer nada novo. Brigávamos horrores por conta disso, porque ela queria ir pras festas de discotecagem mudernê da cidade e eu nem queria ir e nem queria que ela fosse, porque ficar sem ela por algumas horas me deixava em completo desespero. Eu emburrecia sem ela. Sabe como? Não sabia o que fazer das pernas. Mas ela queria ir, e batia o pé, e dizia que se sentia um pássaro aprisionado na gaiola comigo. Eu também odiava essas metáforas, ela era a rainda das metáforas, mas como eu a amava eu suportava isso. E depois que ela me deixou eu virei o rei das metáforas também, mas perdi meus amigos por conta disso. No fim das contas ela acaba indo pras festinhas mudernês e eu ficava em casa macambúzio olhando pro relógio de minuto em minuto esperando seu regresso. E quase sempre colocava um brega sofrido no som porque era assim que eu me sentia, um cara brega que sofria.

Vou tentar desenvolver o tópico sem resgatar esse tipo de lembrança dolorosa. Bom, era à tarde de um dia quente e eu tinha perdido o ônibus e então eu decidi ir caminhando até a casa dela pra buscar qualquer coisa minha da qual ela queria se livrar. Era agosto. Em Brasília. Isso significa que nessa época do ano faz um calor desgracento e o tempo seco e a baixa umidade não ajudam em absolutamente nada, apenas no pôr-do-sol mais bonito que já vi na vida. Então era agosto, e como é final do período da seca, costuma chover de uma hora pra outra, chuva das fortes mesmo, repentinamente, como ela me deixou, r-e-p-e-n-t-i-n-a-m-e-n-t-e. Então eu ia caminhando quando olhei pro céu e percebi que lá no horizonte ele estava mais carregado que o meu peito (eu disse que tinha virado o rei das metáforas). Ia chover em cinco minutos, no máximo. Vocês conhecem Brasília? Na região central existe apenas um descampado com cerrado seco, sem árvores, sem prédios com marquise, sem absolutamente nada que possa fazer um pobre coitado se abrigar da chuva. A maior parte do tempo eu amo Brasília, mas nessas horas ela me dava um pouco de raiva. Ia cair um temporal e eu estava completamente desabrigado, obviamente sem guarda-chuva, porque ao sair de casa pela manhã estava um sol insano. Eu me sentia a criatura mais tola e infeliz da face da terra, caminhando no sol e depois na chuva só pra ver por dois minutos a mulher que me largou. E muito embora em tempos outros eu conseguisse ver poesia e beleza nisso tudo, nessa hora só um alarme apitava na minha cabeça, como se dissesse que eu estava deixando de fazer sentido.

A chuva chegou antes do previsto (como eu disse, r-e-p-e-n-t-i-n-a-m-e-n-t-e), mas não me pegou. Curiosamente, no exato ponto em que eu estava, não chovia. Como num desenho animado, só que ao contrário. Olhei para o céu, como se pedindo clemência, ou até mesmo agradecendo por não estar encharcado, e vi a metáfora de mim mesmo. Parado ali, com uma nuvem negra ao meu redor, e só havia luz sobre mim.

Talvez eu não tenha entendido direito a coisa. Saí do spot de luz que Deus tinha me dado por breves momentos, como uma epifania bizarra e completamente palpável, e caminhei ainda mais decidido à casa da mulher amada. Obviamente peguei muita água no caminho, porque o spot de luz ficou lá, paradinho, sem me perseguir (no momento achei que isso fosse acontecer, ainda como num desenho animado, sabe como? Só que ao contrário, no desenho animado chove sobre você, e esse não era o caso). Depois de quase meia hora de caminhada e encharcado até os ossos, toquei a campainha do apartamento que era meu, virou nosso e agora era dela. Ela abriu a porta e sequer se dignou a me oferecer uma toalha, só pediu pra eu esperar que ela já voltava com as caixas. Quando voltou, perguntei se ela podia me dar uma carona, porque estava chovendo, ela se desculpou e disse que não podia por estar muito ocupada. Ficou parada à porta me olhando com cara de "por que você ainda não foi embora" quando eu desperdicei toda a epifania que Deus me deu naquele momento anterior, aquela coisa toda da luz e da chuva. Pedi a ela que voltasse pra mim, pelo bem da minha saúde. Prometi a ela que a deixaria respirar, como se eu garantisse que abriria a gaiola pra ela dar uma voltinha e quem sabe fazer as fezes longe do jornalzinho (não disse isso, mas soou como se eu tivesse dito, o que pensei depois ser uma grande estupidez). Prometi que seria o melhor marido do mundo e faria dela a mulher mais feliz e amada da face da terra. Ela só me pediu pra ir embora. Mais nada. Só disse "por favor, vá embora". Joguei a caixa com meus pequenos pertences no chão e a abracei pela cintura, desesperado mas sem chorar, e disse que não sabia o que fazer da vida sem ela. Ela se afastou, foi tudo tão rápido, ela se afastou e o punho cerrado do cara que eu não conhecia e morava com ela atingiu meu nariz com tanta precisão que na hora nem senti dor. Fiquei pensando "Deus, que golpe preciso, será que ele luta?" até cair no chão. Senti o sangue quente escorrer pelo rosto e aí doeu, porra, doeu muito. Ela não se mexeu, ficou lá em pé parada com cara de vaca ainda esperando que eu fosse embora. Eu me levantei, limpei o nariz sangrento na camisa de maneira absolutamente inútil e fui embora com minha caixa com meus pequenos pertences e deixando pingos de sangue pelo corredor.

Quando saí do prédio já não chovia mais e o calor abismal tinha voltado. O sangue secou no meu rosto e coçava. E eu olhei pro céu com raiva de Deus, porque na minha cabeça aquela luz sobre mim indicava que, se eu pedisse com carinho, ela me aceitaria de volta. É, eu não era bom em entender sinais.

Apareci na casa da minha mãe a cara do abandono. Ela se encheu de pena, quis me dar banho, disse que ia matar a vaca e essas coisas que mães falam. Fui pro quarto que ainda era meu, mesmo depois de banido, me joguei na cama e chorei com tanto gosto que até desanuviou o peito. Uns dez minutos depois, minha mãe abriu a porta e disse, toda alegrinha "veja pelo lado positivo, agora você pode participar dos almoços de domingo".

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Da fome

Tem gente que se alimenta de comida. De música. De amor. De luz. Ela se alimentava de mágoa. Deixava acumular, fingia que perdoava, chorava sozinha e mordia a ponta dos dedos, sentindo toda a mágoa do mundo de uma vez só. E somente quando se cansava muito é que ela conseguia sair da letargia e, por fim, se recuperar. Mas só pelo excesso de mágoa que deixava juntar no peito. Como se no fundo do fundo do poço sem fundo houvesse uma mola que se alimentasse também das dores dela, e somente muito pesada pudesse impulsioná-la para fora. Alimentada de mágoa ela conseguia levantar da cama e organizar a casa, tirar dois quadros da parede, arrumar o banheiro que está há dias esperando o conserto, somente alimentada de mágoa ela sentia que tinha que se reencontrar e, sabe? Viver. Porque sem isso era como se não houvesse fome. E sem fome era como se não houvesse porque levantar da cama depois de dois dias. Ela se enchia de mágoa pra comer o próprio coração.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Devaneio

Ele vinha caminhando rua abaixo imerso em pensamentos. Em meio a seus pensamentos rápidos e atropelados divagava sobre tudo e sobre nada enquanto seu corpo caminhava automaticamente para lugar algum. Era como se o mundo ao seu redor não existisse até o instante em que chocou-se com outra criatura tão distraída quanto ele.

- Desculpa
- Eu que peço desculpa estava aqui viajando e nem te vi.

Despediram-se e seguiram seus caminhos confusos de destinos incertos. Ele sentou-se num banco e pôs-se a tentar devanear como já fazia antes da brusca interrupção que sofrera, foi quando deu-se conta de que não pensava em nada antes de interromperem-no. Quanto mais pensava menos conseguia lembrar de seus pensamentos anteriores.

Começou então a ser tomado por um sentimento incômodo de não ter em que pensar. Todo mundo tem no que pensar, oras. Por que justamente ele não conseguia pensar em outra coisa além da incômoda sensação de não conseguir pensar? A dúvida o torturava: teria ele algo em que pensar?

Levantou-se e pôs-se a observar os transeuntes. Todos sisudos, estariam eles imersos em seus mundos de problemas inexistentes e medos injustificáveis? Não tendo no que pensar começou a pensar sobre o que estariam os outros pensando.

Uma senhora caminhando do outro lado da rua tinha um olhar despreocupado, enquanto aquele homem de meia-idade que passava por ela naquele exato instante tinha um caminhar apressado. De cabeça baixa e cara amarrada facilmente seria comparado a um touro pronto para atacar.

Foi quando deu-se conta de que estava observando as pessoas então pensou consigo se alguém o estaria assistindo naquele exato instante. Deu um giro sobre si mesmo procurando seus possíveis observadores e nada encontrando voltou a observar os outros e tentar descobrir sobre o que eles pensavam.

Tomado por grande curiosidade decidiu que teria que decifrar o mistério. Uma jovem de uns vinte anos de idade vinha subindo a rua. Cabisbaixa, usava toca e cachecol para se proteger do frio e enquanto respirava soltava aquela fumaça resultado da diferença da temperatura corporal para o ambiente frio que a circundava. Resolveu perguntar o que ela pensava e imaginou grandes respostas sobre trabalho, família ou faculdade. Talvez o término de um relacionamento ou o início de um novo.


Assim sendo, quando ela ultrapassou-o ele soltou um grito:

- Hey!

Ela parou de andar e voltou a cabeça para ele, por sobre os ombros:

- Você está pensando no quê agora?

Ela voltou a caminhar com um passo ainda mais apressado e saiu balançando a cabeça, deixando-o na dúvida.