segunda-feira, 31 de março de 2008

Dois

__ Preciso fazer isso.
__ Não, você não precisa. Deixa.
__ Preciso, como você vai saber se eu preciso ou não? Como, se a lacuna é do meu peito e é da minha veia que jorra e sangra e eu não estanco?
__ Não se leve tão a sério.
__ Me dá dois minutos.

Larguei o telefone e corri até a cozinha, e durante o percurso senti o mal-estar dele me seguindo, silencioso e sombrio. Ele deve me odiar, pensei logo, mas logo repensei e vi que não procedia. Quem ama cuida, já diziam os estúpidos sentimentais, e ele cuidava de mim, desde sempre, lá se vão uns quatro anos de cuidados desperdiçados e nunca retribuídos. Pelo menos não da forma que devia ter sido, da forma que faz sentido, who cares? ele dizia, e eu ria e tornava a me descuidar pra que ele tornasse a me cuidar, e assim prosseguíamos, fingindo um ódio absoluto que só podia ser amor mesmo, mais nada. E como se de mais nada precisássemos íamos vivendo no nosso mundinho de incertezas que forjávamos pra intensificar a vida, um mundinho cada vez mais escuro e frio e mofado de onde não considerávamos a possibilidade de sair não por gostar, mas por temer a luz do sol. E nada de nirvana pra nós. Queríamos beirar o inferno.

__ Pronto. Voltei.
__ Fez o serviço sujo?
__ Escuta, posso te fazer uma pergunta?
__ Ahn.
__ Você gosta de mim?
__ Estou preso a você.
__ Resposta errada, caubói.
__ Você nunca me perguntou isso antes.
__ Você nunca manifestou isso antes.
__ Como é?
__ Hein, como está São Paulo?
__ Cinzenta e fria, como sempre esteve.
__ Tipo Brasília nessa época do ano. Já te disse que Brasília me dá nos nervos? São Paulo também. Odeio São Paulo.
__ Sei.
__ É sério. Se eu pudesse, não ficava nem aí nem aqui. Hein, vamos morar em Minas?
__ E de Nova Iorque, você gosta?
__ São Paulo blaster. Não é pra mim.
__ Escuta, posso te ligar em meia hora?
__ Por quê?
__ Não dá pra falar agora.
__ Tá, tá, eu sei, eu tou fodendo com o teu estilo de vida. É, pode ser, meia hora, vou comprar cigarros então.
__ Deixa o fone no gancho. Eu vou te ligar.
__ Eu te ligo.
__ Mas que coisa chata. Ninguém leva meia hora pra comprar cigarros.
__ Vou atravessar o eixão. Você precisa ver, adrenalina, foda-se montanha russa se você tem o eixão.
__ Como estão seus braços?
__ Pararam de latejar. Hein, vamos tomar umas cervejas? Você bebe daí e eu bebo daqui e ficamos bêbados virtualmente mas em tempo real.
__ Não tou bebendo, você sabe.
__ Ah, é. A coisa pseudo-religiosa.
__ Pra curar a coisa pseudo-depressiva. Nem é Deus, porra, são só remédios.
__ Me liga em meia hora. Vou ficar bêbada sem você, vou ver se arranjo uma puta russa.
__ Isso mata. Não viu o jornal?
__ Viver mata.

Desligamos sem nos despedir, como sempre. Acho que nunca dissemos "tchau", "até logo", essas sentimentalidades potencializadas pela distância. Até mesmo no aeroporto, no dia em que ele foi embora pra São Paulo, não teve despedida. Acho que ele me disse algo do tipo "não morra, te ligo em duas horas" e eu não morri e duas horas depois ele me ligou e "oi, cheguei, odeio São Paulo, comprei cervejas no aeroporto e o hotel é uma bosta" e a ladainha. Desde então passamos metade da vida no telefone, e só ele me liga e só eu ligo pra ele, e a outra metade da vida passamos ou dormindo ou sonhando ou escrevendo ou.
Não tive espírito aventureiro para atravessar o eixão, nada havia do lado de lá. Conveniência e cigarros e puta russa, das mais vagabundas, garrafa de plástico, dez minutos no freezer e fica tudo ok, babe. Dei uma volta na quadra, me balancei no parquinho, a vida era terrivelmente vazia sem ele. Voltei pra casa e tentei adiantar umas revisões, eu precisava fazer aquilo, duas semanas sem dinheiro e eu quase morrendo de inanição, o editor e o escritor e o pai do escritor e o mundo me enchendo o saco por causa de duas dúzias de páginas de puro lixo. Odeio escritores da nova geração, não sabem escrever, mas que merda. Preciso de grana, eu dizia, puta vendida, ele dizia, nem doía mais, não de verdade, dói quando se acredita e eu nunca fui crente em absolutamente nada. Larguei as revisões e andei pela casa, acendendo um cigarro na bundinha do outro, coloquei um CD de Jazz só por causa do silêncio, Chet Baker, e andei e andei e.

__ Mais de meia hora.
__ Eu sei. Precisava terminar uma coisa. Você já está bêbada?
__ Not yet. Puta russa desqualificada ainda no congelador.
__ E o que você fez?
__ Andei e fumei e ouvi e só. E você? Terminou?
__ Aham.
__ Terminou o quê?
__ Meu namoro.
__ Ah, sinto muitíssimo.
__ Eu não.
__ Ela vai ficar bem?
__ Espero que não.
__ Você vai ficar bem?
__ Nunca estive mal de fato. Hein, o que você tem lido?
__ Muita porcaria. Tem um carinha novo que é horrível, comete erros grotescos, Jonas Monteiro o nome do pusilânime. Mas o pai do infeliz tem rios de dinheiro, e hoje em dia a máxima é "pagou, publicou". Sad, but true.
__ Voltei a ler Kerouac, aquele que você tinha me dado e eu nem consegui na época. Difícil, por Deus, que coisa difícil. Mas é bom.
__ Só pelo desafio?
__ Nem. Só é bom.
__ Me dá dois minutos.
__ Esquece os braços.
__ Esqueci. E esqueci também da vodca.

Corri pra cozinha e ele ainda me olhava, sem mal-estar, um divertimento mundano, quem sabe? Eu o conhecia como ninguém, e como ninguém eu assim o desconhecia, com um desapego tão fingido que às vezes feria, mas só às vezes, nas noites de chuva. E de mim ele sabia tudo, gesto decorado, palavra mil vezes dita. E de tão afundados que estávamos naquele amor sem carinho não conseguíamos trazer à tona absolutamente nada que nos fosse externo. E assim todo relacionamento que se iniciava à parte de nós era só uma vírgula, uma lacuna, um parêntese, esperando o nosso ponto final. E sempre findava sem choro nem vela.

__ Por que a gente não casou?
__ Somos amigos. Amigos não se casam.
__ Inimigos se casam?
__ Penso que sim.
__ Mas a gente trepou muito.
__ Putz, nem foi assim tão bom. Quero dizer, não o sexo, o sexo era bom, acho que o fato do sexo ser entre a gente é que não era bom.
__ E por isso a gente não casou?
__ Nem casou, nem renunciou, nem largou, nem ficou, nem viveu, nem.
__ Mas estamos presos um ao outro.
__ Então pra quê casar? Somos perfeitos assim. Eu tenho você, você tem a mim. Sem brigas, sem ciúme, sem posse, sem crime, sem sangue, sem dor.
__ E sexo? Não sente falta do sexo?
__ Casados não trepam. Não com quem se casaram.
__ Perguntei se sente falta do sexo comigo.
__ Não.
__ Não sente?
__ Não foi isso que você perguntou.
__ Não importa. Se um dia você se casar, o que vai dizer de mim à sua mulher?
__ Que você é minha outra parte no mundo.
__ Não sei se é legal de se ouvir.
__ Você não gostou?
__ Falo da sua esposa. Não sei se é o que ela quererá ouvir.
__ Ela vai preferir a mentira, é isso? Isso não deve fazer sentido. Não mesmo.
__ É, é meio surreal.
__ Irreal. Mais e maior.
__ Não acha o nosso relacionamento doentio?
__ Não temos um relacionamento.
__ Claro que temos.
__ Não temos, são só telefonemas. Doentia é a conta que eu pago.
__ E no que você tem trabalhado?
__ Resenhas, críticas, colunas. O mundo underground me adora.
__ E como você consegue chafurdar nisso de cara limpa? É terrível.
__ Tudo se aprende, quantas vezes não te disse? E nem é nada mágico, só é vida. Who cares?
__ E tem quanto tempo que você não bebe?
__ Uns meses. Dois, três, nem faz diferença. Você sabe. A última bebedeira foi naquele sábado sangrento.
__ Entendi a piada.
__ Não, não teve piada. Eu bebi e me cortei todo e fiquei duas semanas internado, nem morrer consegui, sábado sangrento.
__ Achei que tivesse falado da música.
__ Que música? Você nem gosta da banda.
__ A puta russa tá batendo. Meia garrafa para meio juízo, proporção.
__ Mas já? É o que o meu tio velho chama de peso da idade.
__ Estômago vazio. Porra, nunca aprendi anda na vida. Me dá dois minutos.
__ Cacete, esquece os braços, esquece a vodca.
__ Preciso vomitar. Isso eu aprendi: bebe vodca, vomita, bebe mais vodca. Ah, preciso fazer isso.
__ Deixa de ser doente.
__ Dois minutos.

Corri até o banheiro e senti as mãos dele segurando meu cabelo pra não sujar, e afagando minhas costas pra eu respirar. Pude sentir a reprovação dele se alojar num canto do meu cérebro que eu não conseguia destruir mas ele sempre conseguia acessar, como um bunker dele dentro de mim. E foram as mãos dele que jogaram água no meu rosto, e depois escovaram meus dentes, e foi no passo dele meio torto pela minha embriaguez que voltei ao telefone. Vomitei de novo, no tapete, ele não limpou, aquele nojinho meio homo que ele tinha e que me divertia.

__ Ainda viva?
__ Quase morta. Por duas vezes.
__ Tapete?
__ Ié, babe.
__ Hein, tem visto alguém?
__ Não. Quem há para se ver?
__ Só pensei.
__ Escuta, posso te pedir uma coisa?
__ Ahn.
__ Quando a gente desligar, daqui a pouco, me diz adeus?
__ Digo.
__ E não me liga mais?
__ Nem amanhã?
__ Nem amanhã, nem depois, nem em agosto. Nem nunca mais.
__ E você vai ficar bem?
__ Nunca estive mal de fato.
__ Tá certo. Adeus.

Ouvi o clique do telefone e tornei a vomitar. Eu te amo, ele disse ao meu ouvido. Eu te amo mais, ainda ousei afirmar.

terça-feira, 18 de março de 2008

O livro do desassossego

Me perdoa. Só me perdoa. Porque fui estúpido, porque agi feito um imbecil, ataque de hipoglicemia, como você mesma diz. Não sei o que houve, ou porque fiz o que fiz, sei que fiz e foi feio e deve ter doído aí, porque aqui em mim doeu, mas só doeu depois, quando eu percebi repentinamente, como num vislumbre, quase uma anunciação, que ao agir assim eu podia te perder. E me lembrei daquela analogia que você fez uma vez, da pessoa que perde a outra pessoa, a pessoa querida, a cara persona, como quem perde um anel precioso por dia, e não quero te perder diariamente. Quero ter sua conquista diária, como você disse. Tudo bem, vou tentar parar de te citar, é a velha necessidade de parear, isso não é novo pra mim, só estava adormecido. E estando adormecido e tendo acordado com tamanha violência e encanto, fico sem saber como agir, porque você me intimida e me invade e me atinge de uma maneira que não sei dizer se é positiva ou negativa, sei que você me atinge de maneira brutal e vai devastando os espaços que eu gostava de pensar ilesos. Não, não tenho medo de ti, não tenho medo dessa entrega, não tenho medo desse encantamento. Tampouco me incomoda o desassossego, você surgiu como grata surpresa e quero me alimentar disso sim, mas às vezes ajo assim, feito imbecil, e sei que te deixo feito nau à deriva, perdão por isso, sou tão menino perto de você. E você é tão resiliente, tão irascível, hahaha, pode rir, aprendi essas palavras contigo, você as disse ontem enquanto xingava minhas cinco gerações vindouras, eu me lembro, estava ébrio mas não fora de mim. Tanto que cheguei em casa em estado de horror e fui procurar um dicionário porque eu precisava saber do que você estava falando, porque você costuma falar e eu costumo entender, é como você diz, somos harmônicos, somos sintônicos, não quero perder isso. Então me diz que me perdoa e vamos fazer as pazes daquele jeito piegas que os casais costumam fazer, pensei numa cena pra isso, um take de cinema, a gente aqui com esse sol ameno e esse vento-quase-brisa e nós dois sentados nessa escada tentando acalmar esse desassossego. Palavra sua. Me perdoa. E aí você diz que me perdoa sim, ora porra, e eu volto a sorrir, e você me sorri também e corta a cena, tem música, talvez Chico, nosso favorito, pode ser assim? Talvez funcione assim, sei que vai, e até posso te imaginar escrevendo sobre isso, você é tão mulher e tão melhor que eu. Ah, eu sei que você me perdoa, eu sei, pequena, eu sempre soube. Daí você diz que me perdoa e eu te abraço e você me abraça e eu gosto do seu abraço porque você abraça de verdade e eu sinto o teu cheiro e o desassossego volta a ser encantamento. Mas para de me punir com esse olhar, com esses silêncios, com esses muxoxos de desaprovação, porra, eu não parei de falar e você só me olha como se me radiografasse, procurando saber a verdade, não é mentira, agi feito imbecil sei lá porquê, mas quero você. Sempre quis. E vou continuar a querer.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Do desespero, do cigarro e coisas outras

E daí que eu saí da minha mesa apressada e corri até a escada que dá pro estacionamento. Me sentei e acendi um cigarro e fumei num desespero absurdo. E o sol se punha e o calor era insuportável, mas eu fumei. E logo depois acendi outro, mas logo depois mesmo, tipo o tempo entre jogar fora o um e pegar o isqueiro pro outro, rapidão assim, nesse desespero. Como se disso dependesse a minha vida, sabe como? Preciso fumar esse cigarro senão morro. Tá, não faz sentido nenhum, eu sei, nem é apologia a nada também, é só uma observação, um tanto quanto minha, vivo ilhada e imersa em mim mesma. Reparei agora, enquanto escrevia, que vivo de metáforas absurdas, e isso nunca faz sentido. E depois que fumei o outro cigarro, ou seja, dois cigarros em aproximadamente cinco minutos (me lembrei daquela canção dos Titãs, nem cinco minutos guardados dentro de cada cigarro, nem cinco minutos guardados dentro de dois cigarros é o meu caso) me arrependi horrores de agir feito uma desesperada, e subi de volta as escadas em direção à minha mesa muito puta comigo mesma, conversando comigo mesma e implorando a mim mesma que deixasse de ser ridícula. E andando pelos corredores eu me lembrei do contorno das costas dele e sorri, e me deu aquele embrulho na boca do estômago, golpe seco, como elas dizem? Elas, aquelas alternativinhas, como elas dizem? Ah, borboletas no estômago, é isso, faz sentido até, vê bem, parece que elas estão voando desesperadas no seu estômago, vê que não parei de escrever desespero? Arre, o que é isso. E logo depois meu chefe me pediu pra tirar cópias, era um mundo de papel, dava tempo pra fumar outro cigarro, eu pensei logo, e corri pra fumar e fumei três, três de uma vez, e me arrependi de novo. E quando eu voltei pra pegar as cópias eu pensei no quanto eu estava fumando desde que tudo aquilo tinha começado, se eu estivesse desocupada em casa com TV e rede a carteira já teria acabado, eu comprei na hora do almoço e agora que chega a noite e ela já está na metade, e me lembrei dele dizendo que eu fumava demais. "Você fuma demais", ele disse, fuma demais, bebe demais, fala demais, pensa demais, dorme de menos, você não é nada saudável e putaqueopariu, como isso é charmoso assim em você, essa coisa intelectual e boêmia e irresponsável e sensível e mais uma caralhada de coisa charmosa. Hahahaha. Caralhada é uma palavra ótima. Me lembrei dele falando isso de mim e, porra, como ele me conhece, e eu não sei nada dele, meu Deus, eu não faço idéia de quem ele seja, só sei que ele gosta do mesmo escritor que eu, como se isso fosse mudar o rumo inexorável das coisas. Nada nunca muda, e talvez nem seja tão ruim no fim. Eu não sei de nada, desde o momento em que decidi mandar às favas o sentido e a segurança e todas as minhas defesas.

Ai, que dor no flanco esquerdo.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Raiva desmedida

Chega! Não suporto mais! Teus olhos cândidos, tua boca sorridente, esse seu ar bondoso e resignado, tudo isso para quê? O que ganhaste até agora? Nada além de piedade e elogios comedidos. Tudo em respeito à tua sacrossanta máscara de dignidade. Eu te conheço, minha jovem, teu coração é podre até o miolo! Creio que até o diabo ficaria corado frente às tuas reais intenções ao se aproximar de alguém. Te esconjuro, maldita. Suma da minha frente! Vá embora e faça-me o favor de sequer olhar para trás, ou juro por tudo que há de mais sagrado que não sei do que seria capaz. Não há nada que receba o teu toque e não pereça, faça-nos um favor: desapareça.