quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Carta a um destinatário vencido

Estava a pensar em você, no que ficou e no que nunca existiu. No que eu mais quis e acabei perdendo. Em tudo que ainda dói. Naquilo que ainda amo.
Amo tua respiração. Quente e pausada, como quem está em constante descanso do torpor vespertino. Como quem desperta do sono para sonhar acordado. O teu leve ressonar, calmo e perturbador.
Amo tua presença, constante e verdadeira. Essa capacidade que tens de estar somente comigo mesmo quando não estamos a sós, ainda que estejamos infinitamente separados.
Amo teu sorriso, meigo e fácil, sincero e carregado de mistério, sorriso que entrega e mente, de maneira simultânea, clara e sigilosa.
Amo tua paixão. Paixão pela música, pelo cinema, por teus amigos, pela sombra verde. Paixão pela vida. Amo a paixão que um dia dedicaste a mim. Paixão por aquilo que tens e por tudo que desconhece. Paixão por aquilo que entregas a outras pessoas, pela cor verde que nos é comum.
Amo teu ombro reconfortante, que afaga meus temores e afasta meus medos, que recebe minhas lágrimas e me encoraja a sorrir. Que embala meu sono e me abriga de cada perturbação noturna.
Amo teu cheiro. Teu cheiro de homem quando me ama, teu cheiro suave após o banho, o cheiro do teu cabelo molhado, da tua pele quente nas noites frias.
Amo teus sons. Pequenos pontos de identificação, que me fazem reconhecê-lo ainda que à distância. Seus sons adormecidos, suas canções mais caras, suas batidas ritmadas no instrumento característico. O som que você produz quando está de chinelos, com seu andar pesado e concomitantemente displicente. Os sons que você produz na intimidade. Na nossa intimidade. Sua voz grave e melodiosa, como uma nota triste de um baixo num blues melancólico.
Amo tua lembrança, nas horas insones, nas noites frias, nas tardes entorpecidas, nas manhãs que caprichosamente adormecem. Tua lembrança em momentos fugidios, em memórias esquecidas, em tudo que ainda dói porque não existe mais. Tua lembrança quando a saudade martiriza e os ungüentos e alquimias não estancam o sangramento. Quando mais nada parece dar certo, eu amo sua lembrança. Quando meus desejos são negados, eu amo essa lembrança. Cada dia de paixão nova me faz amar as velhas recordações.
O que amo em ti é a ti mesmo, em suma.

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Escrito em 2005.

domingo, 26 de agosto de 2007

Romance

Ela, a romancista, se encheu de arroubos românticos. Ela, que não usava apelidos carinhosos, que não gostava de ser abraçada, que não via futuro numa relação entre ela e qualquer outro ser vivente, se encheu de arroubos românticos. Encheu a casa de flores, cantou música brega em voz alta, ligou para a melhor amiga e narrou o acontecido como quem narra um conto de fadas, como se ela estivesse a falar das páginas de seu mais novo romance. Mas não era um romance literário, fictício. Era um romance real, impregnado de poesia e verdade. Ela, a romancista, se apaixonou por um cachorro.

Deu a ele o nome de seu último namorado, aquele ser maldito que merecia tortura selvagem. Comprou casinha, comprou almofada, coleira com pingente, gravou o nome dele no pingente e saiu pra passear no domingo. Parecia a mulher mais feliz e bem-amada da face da terra, ao lado do seu cachorro, o ser vivente mais feliz e bem-amado, que tinha encontrado sua outra parte no mundo. Viveram em lua-de-mel por onze anos, até que ele faleceu de velhice.

Ela, a romancista, perdeu a inspiração. Perdeu o prazo da editora. Perdeu o prazer pela vida. Encheu a cara no bar, brigou com o cara da sinuca e acabou fazendo sexo no banheiro com um dos garçons. Ela, a romancista, não queria mais escrever. Até que se apaixonou pelo garçom. Ela conseguiu voltar a escrever, recuperou o prazo na editora e continuou ganhando rios de dinheiro narrando romances. Viveram uma história de sexo, loucura e bebedeiras por longos cinco anos, até que ela foi trocada por uma gerente de um restaurante.

Ela, a romancista, perdeu a inspiração de novo. Estava sem editora, estava sem amor, estava sem sexo há duas semanas. Ela, a romancista, decidiu que não dava pra viver assim. Foi até uma sex shop e comprou um consolo, alguns pornôs e chamou as amigas para uma girls night. Beberam champagne, deram risada e a romancista acabou ficando com a amiga lésbica de uma de suas amigas.

Mas não se apaixonou. Foi uma noite e nada mais. Porém, a amiga lésbica de uma de suas amigas deu a ela a idéia de escrever uma autobiografia, mas em nome de outra pessoa, e depois dar escândalo dizendo que a tal biografia não era autorizada.

Ela, a romancista, escreveu a autobiografia, registrou com um pseudônimo, foi aos jornais, deu escândalo e o livro vendeu feito água no deserto.

Ela, a romancista, estava podre de rica. E decidiu parar de escrever. Foi viver no mato, plantando pimenta, como dizia a música. Apaixonou-se pelo caseiro, tiveram três filhos e ela, a romancista, foi feliz pra sempre.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Da janela

O menino não saía mais de perto da janela nova do quarto novo da casa nova. De lá, ele conseguia ver toda a rua, algumas árvores, a molecada correndo atrás de bola. Ele não podia brincar na rua, por isso se dependurava no parapeito com gosto, até podia sentir o suor da brincadeira.

A empregada vinha lá da cozinha gritando: "Menino, sai dessa janela! Qualquer dia desses você cai de coco no chão e vai ficar rachado pra sempre!". Ele dava uma gargalhada gostosa, gostava do jeito dela falar, embora não entendesse às vezes.

Achava muito chato ter cinco anos e ser filho único. Seus pais trabalhavam o dia inteiro, não queriam jogar bola, ou videogame ou fazer algo legal, pra variar. Queriam, ao chegar, tomar banho, jantar, assistir aos jornais noturnos e finalmente descansar. Ele passava o dia com a empregada, e às vezes achava que gostava mais dela que da mamãe. Depois desachava, rapidinho, pra mamãe não se chatear.

Àquele dia, ele estava bem entediado. Não havia meninos na rua, nem carros passando, nem passarinhos cantando nem nada acontecendo. Ele ousou sentar no parapeito pela primeira vez, e não sentiu medo algum, pelo contrário, só uma vontade imensa de voar. Sabia que meninos não voam, só homens feitos, e que ia demorar muito pra ele poder usar a cueca por cima das calças, mas sentiu aquela coisa crescendo dentro dele, tão forte, que quase não resistiu. Fez pose de decolagem, som de avião, mas não saiu do lugar. Ficou em pé, olhando a rua vazia de vida. Olhou para baixo, viu o chão nem tão perto nem tão longe, achou que uma queda dali não machucaria tanto, só o braço, daí ele não iria à escola, ficaria com a empregada o dia todo tomando sorvete e recebendo cafuné. Era tentador, mas mamãe não ia gostar nada dessa peripécia, melhor deixar a vida como estava.

O carro de mamãe dobrou a esquina à direita. O de papai, a esquina à esquerda.

Quando ele os viu, começou a pular, a gritar, queria que o vissem, como já era grande e crescido, já poderia brincar com os meninos de bola na rua, não precisaria mais, nunca mais, ficar preso. Não entendeu porque mamãe ficou tão assustada, ou porque papai acelerou o carro. Parou de pular um instante, olhando para mamãe, preocupado. Nunca tinha percebido o quanto mamãe era jovem e bonita.

A empregada, quando viu, gritou.

O menino, quando ouviu, se assustou. E caiu.

No chão, ainda com um restinho de vida, ouviu papai frear o carro e vir correndo na sua direção.

__Filho! Fala com o pai, filho! Tá tudo bem, filho?

Ele não sentia dor. Não sentia medo. Não sentia os braços. Sentia apenas que o vôo tinha sido lindo.

__ Nada, pai. Foi só o mundo que girou depressa demais.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Profiteroles

eu estava deitada na cama comendo pizza adormecida, bebendo coca sem gás e vendo um programa muito ruim de comédia. sábado, eu completamente abandonada. só conseguia pensar em como a diversão dos meus amigos podia dar errado e eles podiam ir pra casa cedo e ficar assistindo ao mesmo programa que eu, mas sem a pizza e sem a coca. pensei em pedir uns profiteroles por telefone, mas não sei de nenhum lugar aqui nesse fim de mundo que entregue profiteroles. aliás, não sei de lugar nenhum que venda profiteroles. o que é uma pena, profiteroles for life.

fiquei lá na minha cama e por lá fui ficando. pensei um monte de besteira, pensei em gente morta, pensei em matar gente, cortar meu cabelo, levar o carro na oficina pra fazer aquela revisão dos vinte mil que eu devia ter feito quando ele tava nos trinta mil, enfim. pensei. e pensei nele também, aquele ser humano todo grande, de mãos imensas que pegam em mim toda de uma só vez. pensei na última vez que ele teve por aqui, me trouxe uns profiteroles e a gente fez sexo selvagem e lambuzado e ele com aquela língua imensa e as mãos imensas e ele todo imenso. ah. ele tinha sumido, tava com a namorada, pensei na namorada e só de pensar já me sentir pior, então preferi não pensar. fingi dar uma gargalhada de uma piada deveras sem-graça, comédia de sábado à noite, você sabe bem como é.

ele me ligou. deixei o telefone tocar umas quatro, cinco vezes. achei que ele fosse desistir, mas ele não desistiu, ele devia ter desistido de mim já fazia uns cinco anos, mas ele continuava. se ele tivesse desistido eu também desistia. resolvi atender. ele falou umas sessenta palavras em média, das quais filtrei cinco que eram realmente importantes: quero teu cheiro, porra. saudade. eu respondi: ié, babe - que é tudo que ando dizendo por agora. ele riu e falou mais umas setenta palavras sem profundidade alguma, das quais filtrei apenas as últimas: tou indo pra tua casa. antes de desligar, falei: me traz uns profiteroles. ele riu e disse: te levo outra coisa, babe.

joga pizza fora, coca sem gás pelo ralo da pia, toma banho e de repente, não mais que de repente, o sábado sem-graça se enche de glamour. ele vem. borrifa perfume no travesseiro, senta e ri feito idiota, se olha no espelho: tu não é mais adolescente, porra. controla o batimento cardíaco, não dê tão na cara, ele vai perceber. que perceba, foda-se. calcinha sexy rasgada, oh dog, a vida é ingrata e cruel. calcinha branca de algodão, ele gosta, ele gosta de mim toda e de tudo em mim. e o carro para na frente da casa e eu abro a porta de calcinha e blusa de alcinha e ele vem me comendo toda e a gente faz sexo no corredor.

sexo no corredor for life. esqueçam os profiteroles.

domingo, 19 de agosto de 2007

_ que bonitinho! ele chamou ela de meu bem!
_ (cara de dúvida)
_ tu viu, meu bem, ele chamou ela de meu bem... que bonitinho!
_eu não chamei ela de meu bem! que história é essa de meu bem!
_ eu também era assim "que porra é essa de meu bem"... até conhecer ela (aponta) agora ela é meu bem.
_ (orgulhosa, feliz e bem-amada!)

sábado, 18 de agosto de 2007

a drummond

nasce de novo gauche que de gente sem graça o mundo tá cheio!
quase sem pensar, ela foi lá, se entupiu de chocolate, cerveja, brigadeiro, sorevte com calda quente e de choro e mágoa. ela se entupiu sem pensar duas vezes. chorou bêbada, cheia, solitária, magoada, feliz, satisfeito e muito, mas muito mesmo, gulosa. chorou até pelo chocolate que acabou, pelo grito que não deu, pela ex dele que reapareceu e pelas celulites que teria ganhado com aquelas mil barras de chocolate, as trocentasevinteecinco latinhas de cerveja, pelos três litros de leite condensado usados no brigadeiro e pelos 495,89 potes de sorvete. depois, levantou, lavou o rosto e recomeçou sua mágoa... a começar por comprar mais cerveja e chocolate pra apaziguar a dor

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Canção desesperada

__ Você tem esse costume bobo de fazer sempre as mesmas perguntas...já te disse o quanto isso me irrita.
__ Se eu faço sempre as mesmas perguntas é porque você nunca as responde. É tão simples, Nina. Basta dizer sim ou não.
__ Por que você faz essas coisas comigo, Breno? Você não confia mesmo em mim. Não posso ficar com alguém assim.
__ Nina, seja razoável, não temos mais treze anos. Pelo contrário, estamos juntos há treze anos. Responda, apenas responda.
__ O que você quer ouvir? É só me dizer que eu respondo. Quer um sim? Um não? Pedidos de desculpas? Faça-me o favor, Breno! Sabe o que falta? Falta você chegar com um formulário esperando que eu o preencha com a boa-vontade suprema que carrego. Seja você razoável. Não sou uma menina.
__ Então façamos o seguinte: eu saio, ordeno meus pensamentos, estabeleço minhas prioridades. Enquanto isso você fica aqui pensando no que realmente vale a pena pra você. Quando eu voltar sentaremos naquele sofá e juntos, eu espero, solucionaremos esse impasse.
__ Aumenta o volume do som quando estiver saindo, se possível.
__ Algo mais?
__ Não seja idiota o tempo todo, Breno. Isso vai acabar conosco.
__ Tentarei arduamente. Mas não prometo.

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Existem canções tristes como teus olhos outonais, e de tempos em tempos me lembro do cheiro do teu cabelo molhado. Existem canções melancólicas como todos os rompimentos do mundo, canções silenciosas como o silêncio imponderável do escuro. E por mais que eu saiba que existem canções alegres como o latir do cão cujo dono chega a casa, por algum desses inexplicáveis motivos não consigo me lembrar delas. Assim como não me lembro do teu sorriso meigo e fácil, das tuas mãos brancas de pianista, do relevo sedutor do teu seio. Quem é você que vejo diante de mim? Não te conheço, chego a crer que nunca te conheci, porque só me lembro dos gritos incompreensíveis, das palavras proferidas com tanta maldade por tua boca, boca essa que beijei mas já não lembro o gosto. Em que parte do mundo você está que não alcanço mais? Quem desfez o desenho do seu rosto não teve piedade para comigo. Da estação escura e fira que você partiu só me resta uma lembrança, mórbida e dolorosa, que volta em relances sombrios diante do meu rosto. Eu sei, é só o que sei. Existem canções.

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__ O que você espera de mim, sinceramente?
__ Nada mais, Nina. Sinceramente.
__ Então qual o porquê dessa carta?
__ É apenas isso. Uma carta. Letras que, estando juntas, formam palavras. Que, por sua vez, estando juntas, formam frases e, consequentemente...
__ Eu entendi! Por que você insiste nisso, Breno? Por que tenta arbitrariamente resolver as coisas do seu jeito, me machucando sempre?
__ Como você pode estar machucada, Nina? É apenas uma carta. São pensamentos meus, coisas que me vêm, que apenas escrevi por se tratar de um exercício. Sequer achei que você fosse lê-la.
__ Então ia guardar tudo, como um cão covarde?
__ Não vou discutir com você.
__ Típico. Você vem, desestabiliza tudo e tão simplesmente foge! Por que ainda me impressiono com você, Breno? O ser mais lugar-comum que eu conheço.
__ Vou ao cinema. Desculpe dizer, mas talvez eu não volte.
__ Por quê?
__ Você discutiria um filme iraniano comigo?
__ Está claro que não.
__ Isso responde a questão. Venho amanhã à tarde buscar o que me restou dos livros e CD’s que não te interessaram e deixo as chaves com o porteiro.
__ Breno, não faz isso...
__ Olhando pra sua estante, vejo que pouco de mim interessou a você. Nem mesmo meus Aurelianos. Bem, o que se há de fazer, não é? Enfim, existem canções.
__ Você consegue ser patético às vezes, amável quase nunca, apaixonante quase sempre e idiota a maior parte do tempo. Acho que já te disse isso, não?
__ Disse. Todos os dias.
__ Eu gosto muito de você, Breno.
__ Preciso realmente ir. Tenho pressa.
__ Por quê?
__ Apesar do calor, acho que vai chover. Eu te amo.

******

__ Pensei muito sobre ontem, Breno. Sabe, os Aurelianos. Tentei ler Cem Anos de Solidão, mas não sabia quem era filho de quem, nem conseguia entender aquelas mulheres...e o calor insano que emana do livro?
__ ?
__ Fala alguma coisa, faça valer o custo dessa ligação! Não posso amar todas as coisas que você ama, porque tenho minhas coisas para amar.
__ ?
__ Espere, eu sei o que você vai dizer, vai dizer que sempre há aquilo que nos é comum e nos cabe amar e alimentar. Mas...
__ Jamais diria isso, Nina. Diria apenas que é lamentável você não ter percebido que não era necessário amar aquilo que é meu. Bastava amar a mim. Simples assim. A mim, ao menos, é o que bastaria. Não se engane julgando que eu te esqueci, não me seria possível e talvez eu não o queira. Porém, tempo esgotado. Descobri que existe vida fora do mundo mágico que a Nina criou com suas mãos brancas de pianista, e eu quero viver agora.
__ Você me deixou, Breno.
__ Existe uma canção que fala sobre isso, mas não me lembro a letra...só me vem a melodia na cabeça. Sabe aquele vento frio que corta e deixa o rosto vermelho? É isso que essa canção faz.
__ Que história é essa de “existem canções”? Quando você vai voltar pra casa?
__ Eu não vou voltar.

*******

__ Quer saber o que eu acho? Acho que você está em casa e não quer me atender. Pois bem, converso com essa maldita secretária eletrônica! Posso ouvir o eco dos seus passos, aposto quanto você quiser que seu apartamento está vazio, você sequer comprou um sofá. Deixe-me ver...no seu quarto tem um colchão bagunçado, CD’s espalhados, o aparelho de som ligado e fora de sintonia...o telefone, que você não atende há coisa de um mês. Ia me esquecendo do maço de cigarros amassado perto do isqueiro prata que eu te dei, e você acendia na perna. Parei de fumar Marlboro, eu te contei? Estou parando aos poucos, semana que vem devo estar no Free Ultra Lights, você logo vai entender. Atende, Breno! Ai, isso é tão angustiante! Sua cozinha deve estar uma zona, você sobrevivendo de lasanha congelada e miojo. Aposto que anda se entupindo de Coca, o maldito líquido negro. Breno...é sério, é realmente importante. Você vai ficar feliz, eu sei. Não precisa voltar pra mim, basta ficar feliz. Talvez até você me perdoe, nunca se sabe. Olha, não vou continuar a conversar com essa secretária. Vou dizer logo de uma vez, aí você me procura e a gente conversa, tá? Breno? Breno! Droga...tá bem, vou dizer: eu menti. Não fiz aborto nenhum. Continuo grávida do nosso Aureliano. Você ouviu? Continuo grávida. Eu amo você. Amo nosso filho. Ah, li Cem Anos de Solidão nesses últimos dois meses. Acho que agora entendo algumas coisas, e até sinto o calor de Macondo invadir meu quarto. Nosso quarto. Breno?

*******

__ O que eu faço agora, Nina?
__ Você engordou. Eu sempre acerto.
__ Apenas responda. Há dois meses, quando eu saí do seu apartamento, você me garantiu ter feito o aborto. Lembra-se? Se me recordo bem, foi exatamente isso que me fez sair do seu apartamento, sair da sua vida. Eu achei que você tivesse mentido para mim quando daquela situação, mas agora não sei se você vem mentindo todo o tempo. Como hei de saber que você não mente agora?
__ Eu tenho todos os exames lá em casa. Volta pra casa comigo, Breno. Não suporto os espaços vazios que você deixou.
__ Por que tudo isso, Nina? Tive certeza que você fez o aborto, julguei inclusive que você o tivesse feito pra se afastar de mim. Como você vem agora dizer que continua grávida e, como se não bastasse, me pede que volte pra casa? Quem é você, Nina? Não é mais a mulher que amei.
__ Eu não queria estar grávida. Você foi contra o aborto desde o começo, Breno.
__ Isso é mais uma mentira, Nina. Sempre deixei claro que estava disposto a discutir isso, ter ou não ter filhos. Lembro-me que conversamos, meses atrás, e decidimos ter um filho. Espero que você não tenha esquecido isso também. Você engravidou, conversamos, decidimos ter o filho, duas semanas depois você me diz que abortou, para dois meses depois dizer que não, não abortou. Só falta eu esperar que dois anos se passem pra que você me diga que esse filho não é meu. Perdão, Nina, mas não preciso passar por isso.
__ Breno, procure entender. Quando eu engravidei passamos por aquela crise, eu quis terminar. Eu deixei de te amar. Você me obrigou a mentir, a ferir, porque eu sabia que se eu dissesse tudo aquilo você se machucaria e daí caberia a você pôr fim em tudo. Talvez eu tenha errado nisso, porque bastou você bater a porta pra que eu soubesse que nunca tinha deixado de te amar. Então, nesse sentido, só me coube dizer a verdade. E agora que você já sabe que menti, agora que te pedi perdão, não custa você considerar tudo isso e levar em conta o quanto eu te amo, o quanto ainda nos amamos. Sim, porque você ainda me ama, mesmo que diga para o resto da vida que não. Nos amamos, Breno, isso não basta? Você me disse, meses atrás, que amar você bastaria. Era mentira também?
__ Não seja ridícula, Nina, nem aja comigo como se me tivesse em tuas mãos. As coisas mudam, talvez eu não te ame mais, talvez você nunca mais tenha certezas como as que eu te ofereci um dia. E, por mais que pareça, não se trata de vingança, eu não sou assim. Caso queria saber minha opinião, faça o que quiser da gravidez. Se decidir mantê-la, me avise. Vou tentar deixar de ser um idiota a maior parte do tempo e ser um bom pai. Caso contrário, boa sorte nos teus caminhos. Eu vou descansar.
__ Você foge.
__ Você me conhece, Nina, sabe que não é isso o que acontece. Sinto muito, mas eu me cansei. Não esperava por isso, não desejava isso, mas não consigo olhar para você sem ver teu rosto borrado, teus olhos frios, tua boca crispada. Não sei mais quem você é, Nina, e isso me dilacera, porque eu te amei sem medidas. Porém isso parece pertencer a um passado tão distante que não justifica reavivá-lo. Continuo a ter uma única lembrança, como disse naquela carta, e o correr dos dias faz com ela se torne cada vez menos nítida. Talvez por isso eu consiga agora me lembrar da canção que tocava baixo quando nos perdemos.
__ Olha pra mim, Breno.
__ Nos teus olhos não vejo nada, Nina! Por mais que você chore não consigo enxergar a verdade. Você chora por você, chora por temer ficar sozinha. E, sinto dizer, nada posso fazer com relação a isso.
__ O que você vai fazer agora?
__ Vou pra casa, antes que chova. Vou tomar um bom capuccino, fumar um cigarro e ouvir alguma canção que seja melancólica sem ser triste, nostálgica sem ser saudosista. Depois vou escrever. Já te disse que estou escrevendo um livro?
__ Sobre o quê?
__ Sobre alguém dentro de um espelho.
__ Essa história já foi escrita por alguém.
__ Minha história está sendo escrita por mim, Nina. Lembre-se disso.

******

__ Até quando você vai me ignorar, Breno? Estou precisando de você. O aborto foi complicado, eu sangrei horrores. Será que você não vê? Nem tudo aconteceu da forma que esperávamos, mas não podemos simplesmente negligenciar o que existiu. E existiu tanta coisa, você deixou tanta coisa...há determinadas canções que não posso ouvir sem lembrar de ti. Tenho Cem Anos de Solidão decorado, porque bebo das palavras que você amou um dia. Descobri que o Paul McCartney não é o grande monstro mercenário dos Beatles, porque não sei contar o número de vezes que você disse que ele era apenas um workaholic, louco por trabalho. Esse, aliás, excelente. Tenho verdadeira adoração pelo cinema iraniano, porque desde que ter perdi resolvi amar tuas paixões, como forma de recuperar você. Ah, Breno, só agora consigo vislumbrar o quanto eu te amo, o quanto você é belo. Só agora sei o que teus olhos verdes causam em mim, mesmo que sejam os olhos que vejo em um retrato. Não pode ser assim pra sempre, pode? Não faz sentido estarmos longe um do outro, porque somos o encaixe perfeito um do outro. Lembra daquela senhora parada na rua que disse que eu tinha encontrado minha outra parte no mundo? As coisas andam tão fora do lugar que voltei a fumar uns baseados, pra sarar a dor, e me imaginei conversando com você. Eu choro pouco, você sabe, mas tenho chorado em excesso, porque o Chico Buarque chora em “Trocando em miúdos”. E isso foi você quem me ensinou.

******

__ Por que você não ouve os recados da secretária? Eu disse a você que estaria do teu lado quando do aborto, não posso ser tão vil. Perdão por te deixar passar por isso sozinha, sincero pedido de perdão. De resto, agradeço por perguntar se estou bem, espero que você assim esteja. Tenho feito muitas coisas, escrito como nunca, acho que vou publicar um livro. Projetos, Nina, tenho projetos. Comprei um aparelho DVD mas ainda não o desvendei por completo. As coisas estão mais simples agora que quatro meses sem você já correram, e consigo me lembrar do que dizem as canções que existem. Tenho, inclusive, ouvido canções alegres, sinto o pulsar delas na minha própria vivência. Estou em paz comigo e com tua lembrança. Talvez eu ainda te ame, mas já faz tanto tempo...me sinto à vontade na minha cama enorme e posso receber meus amigos nas poltronas verdes da minha sala. Existe uma canção que fala sobre isso, sobre a ausência que liberta. É assim que me sinto, e enquanto escrevo a história do homem no espelho posso ouvir minha voz capricorniana ascendente controlar meus impulsos escorpianos regentes. Não faço sexo há meses, isso é definitivamente engraçado, porque mesmo tendo me acostumado com seu corpo já não sinto falta dele. Sinto falta daquilo que não vivi por estar com você, por julgar que minha existência deveria estar na sua órbita. Não me maltrato por errar, não faço mais essas coisas. Continuo fumando Carlton, e é nos dias de chuva que sinto prazer em ler Budapeste. Ah, Nina, tão branca quanto Kriska...vou jogar o macarrão na tua parede, para que me expulses de tua vida. Existe uma canção que me é sempre recorrente, e me faz lembrar daquela tarde de outono que nos perdemos. Ouça Revolver, Nina, faça seu próprio sonho. Leia Chico Buarque e se martirize – como eu – porque aquele maldito consegue sempre escrever coisas bonitas. Vá a um festival de cinema mexicano, viva outros amores, busque novas paixões. Você é uma pessoa tão linda...sei que existe uma vida pulsante de libriana em teu peito, exploda tudo isso. Escreva um livro, OUÇA AS CANÇÕES. Seja feliz, Nina...
Acho que vou fazer um café.

******

__ Recebi sua carta. É triste.
__ Pelo contrário. Escrevi-a de uma só vez e a encaro como irreparavelmente esperançosa. Julguei que fosse perceber isso.
__ É uma esperança morta, não vê? Você deixa claro que é o fim. Breno, eu sei que errei, mas não aceito que sua mágoa possa ter apagado o que vivemos.
__ Não é mágoa, Nina, é desprendimento. Nos machucamos muito, não tinha razão continuar. Aliás, existe uma canção...
__ Chega! Não posso mais com isso de canções, o tempo todo, pra lá, pra cá, sem fim! Você me fez enlouquecer, Breno. Queimei o maldito livro, porque ouvia o choro do nosso filho morto, quebrei os CD’s porque sentia sua dor, emanando como sangue das suas canções. Não tenho projetos e uma carteira de Marlboro não me é suficiente para uma manhã. Existe outra pessoa em mim, que chora e se flagela, mesmo sabendo que não tem culpa. Você me fez matar nosso Aureliano, e pelas minhas contas ultrapassa o número de 20 deles que morreram. Não comprei um aparelho DVD porque não consigo assistir à televisão sem odiar tudo, não consigo acordar sem ter a certeza de que deveria continuar dormindo. Enfim, qual o porquê disso?
__ Nina, não chora. Por mais que você grite e fume desesperadamente e bata com as mãos na mesa, quando te vejo chorar a quebra da imagem é tão brusca que me assusto e me perco.
__ Por que você não me abraça mais? Por que não ignoramos quase cinco meses de distância execrável? Podemos nos amar loucamente, como antes, podemos ouvir Chico e ter nosso filho. Me deixa pegar na tua mão, coloca tua cabeça perto da minha...
__ Nina, não...
__ Vamos nos lembrar do gosto das nossas bocas, maliciosas línguas...a noite nos encobrirá, e quando você se der conta já será tarde demais, e você será meu para sempre, conforme o prometido.
__ Você tem noção das coisas que fala e faz? Você se machuca sem perceber, e depois, levianamente, atribui a culpa a mim. Conheço teus joguinhos, Nina, porque já caí em todos eles.
__ Eu odeio você. Odeio o que você faz.
__ É justo. Me empresta o isqueiro?

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__ Eu sou uma farsa, Nina. Acho que você conseguiu destruir tudo com teu discurso de que a culpa era minha. Não consigo fazer as coisas direito, não consigo estruturar meus pensamentos. Precisava falar com você. Eu sei que um ano é tempo considerável, mas eu precisava falar com você. Estou morto, Nina, porque senti tanto medo e tanta dor que escolhi me proteger de tudo que era externo a mim, ou seja, o mundo que não é meu. Julguei que assim, protegido, as coisas tristes e melancólicas que ouço nas canções não me aconteceriam, eu poderia simplesmente seguir. Mas como seguir, se a tua lembrança corrosiva me assustava todos os dias, e eu esperava que o mundo fosse fazer o mesmo comigo? Então eu criei um universo paralelo para mim, do qual somente eu fazia parte, e tuas mãos brancas de pianista tocavam uma canção fúnebre por todo o tempo. Sou amargo, estou vazio, frio e ainda temeroso. Meus projetos se perderam de maneira irrecuperável e a chuva molhou meus melhores sapatos. Não sei se é o certo a dizer, mas preciso fazê-lo, preciso expurgar tais elementos de meu peito: eu te amo, Nina, e talvez precise que você me salve. Preciso que você me cure com tuas mãos brancas de pianista, como se eu saísse em uma noite de inverno europeu vestido apenas de cueca samba-canção verde com ursos polares. Preciso de ti, Nina, para trazer de volta o sentido que havia no meu existir. Volta pra mim. Eu te perdôo.

******

__ Em noites alternadas eu acordo ouvindo uma criança chorar, e tenho e ligeira sensação de que esse choro vem do meu útero. Nas noites em que não ouço o choro, sonho com crianças monstruosas que me enchem de medo e impossibilitam o sono. Você me obrigou a odiar meu corpo, porque não fiz uma escolha, e de tempos em tempos vejo uma assassina no espelho. Você me privou de liberdade quando condenou minha existência à essa culpa mesquinha e talvez mais corrosiva que tua lembrança dolorosa. Queimei todos os livros em frente ao teu apartamento, quebrei todos os CD’s e agora só ouço o silêncio pausado e angustiante que só a ausência insubstituível é capaz de forjar. Desde que nos perdemos eu sigo por seguir, porque você soube como ninguém obscurecer meu caminho, e eu vejo nuvens sombrias de chuva mesmo nas tardes mais quentes de meus dias, tardes quentes como só as tardes quentes de Brasília. Por isso me assustei quando o correio mostrou tua carta, tão evidente em minha frente que parecia querer ser lida. Não posso voltar pra você, Breno, porque teu fantasma me persegue por todos os lugares, e você carrega nosso Aureliano morto nos braços. Já não te amo mais, porque consegui destruir esse sentimento infeliz que me trazia a esperança morta de um dia te ter de volta. E quando eu percebi que todas as pessoas tinham teu rosto frio e irritantemente ponderado, desisti de todas elas. Sigo sozinha, depois de ter jurado mentiras imperdoáveis a mim e ao mundo. As coisas estão fora do lugar e eu não consigo vislumbrar a forma de corrigi-las. Estou cansada de você, das lembranças, de mim mesma. Me sinto fraca por não ter podido me reestruturar e pensar em você como um garotinho mal-educado que merecia um bom castigo. Não há mais nada aqui, e o teu lado da cama continua bagunçado, como da última vez que você esteve nela. Não tenho ódio, sequer paixões, tenho o silêncio, o escuro, o vazio que oprime, o frio que condena. De toda sorte, sinto que você esteja mal e tenha, em algum momento, se julgado culpado pelo que aconteceu. Ainda que meu discurso tenha sido nessa direção, a interpretação é tão somente sua, porque é reflexo de quem você verdadeiramente é. Perdão, mas não posso voltar pra você, nem considerar digna tua proposta. Posso ter cometido erros, mas um ano de solidão me mostrou que os mesmos não mereciam tamanha condenação, e se isso não é justo não deve ser continuado. Parei de fumar, mas em compensação tomo café de dez em dez minutos, e meu estômago dói a noite inteira. A cortina do meu quarto quebrou e uma luz pisca incessantemente, me mantendo acordada a observar as formas difusas que se espalham pelo meu teto. Tive de jogar meus brincos fora, porque machucavam muito a minha orelha, fazendo com que o sangue acumulado dentro de mim escorresse por dois pequenos furos de meu corpo. Vejo borboletas verdes nos jardins que raramente visito, e me lembro dos teus olhos congelados no único retrato que não destruí. Tal souvenir foi tudo que me restou, e o Breno do retrato está sempre triste quando o vejo. Eu o vejo todo o tempo. Antes eu me perguntava se seria sempre assim, mas agora já não tenho força para questionamentos. Não busco nada, dia desses saí sem pagar a conta do supermercado, quase fui presa por coisa de R$7,90. E por mais que você diga que eu devo te salvar, você está condenado à mesma dor que eu, e não cabe a um salvar o outro. Existem canções que falam sobre isso, e já que você gosta tanto delas busque nelas tuas soluções.
É tarde, preciso dormir. Acho que vou deixar a luz acesa, para que as crianças entendam que gostaria muito de brincar com elas.

******

__ Breno? Breno, abre logo essa porta! Eu não vou bater a tarde inteira, está me ouvindo? Céus, o que estou fazendo aqui? Vamos, Breno, seja razoável, faz um ano que não nos falamos, eu vim aqui disposta a conversar. Eu sei que você está em casa, o porteiro me disse que você não sai há semanas, até o seu cigarro é ele quem vai comprar. Por favor, Breno, abre essa porta. Se você não abrir em dez minutos eu vou embora e...Espera...A porta está aberta? Ah, Breno, por que não me avisou? Breno? Que estranho...a porta aberta, Breno não responde...Que casa escura, você nunca abre essas janelas, Breno? Abafado, nossa, parece a casa de um morto...E essa cozinha? Que revolução passou por aqui? Você costumava ser mais organizado quando...bem, antes de tudo acontecer, não é? Quantas garrafas de uísque, você virou um alcoólatra...Bem, pelo menos o banheiro é limpo, disso você sempre fez questão...Breno?
__ Aqui no quarto, Nina. É só seguir a música.
__ Ótimo, agora estamos brincando de pique - esconde. E então? Estou esquentando?
__ Não seja infantil. É a última porta à direita.
__ Obrigada pela dica, você não perde a chance de ajudar ao próximo e...Céus, Breno! O que está acontecendo aqui?
__ Oi, Nina...que bom que você voltou.
__ Eu não voltei, Breno. Vamos conversar, eu vou voltar pra minha casa e vamos seguir com nossas vidas. Você está bem?
__ Mais ou menos. Alguma dificuldade pra respirar, alguma dor no peito. Eu sinto sua falta, Nina.
__ Por favor, Breno, não faz assim. Posso abrir as janelas? As cortinas? Não me admira que você não consiga respirar, esse quarto é tabaco puro.
__ Você parou de fumar, não é? Que engraçado. Por favor, deixe as janelas e cortinas fechadas. Luzes e sons me incomodam sobremaneira.
__ O porteiro me disse que você está trancafiado nesse apartamento há coisa de uma semana...O que está havendo?
__ Nada. Só não tenho vontade de sair, aonde ir, com quem conversar...Nina!
__ Que foi?
__ Você está usando amarelo!!! Exatamente como na noite em que nos conhecemos! Eu sempre detestei amarelo...mas em você...não sei...não me incomodo tanto quando é você quem usa amarelo. Nada do que você faz me incomoda, Nina...Você lembra da noite em que nos conhecemos, na faculdade...Estávamos naquela reunião idiota quando você entrou e recitou Pessoa...tenho que confessar que não gostava muito de Pessoa até você entrar na minha vida...eu não gostava da minha vida até você entrar nela, porque...
__ Breno? Nossa, que tosse horrível! Breno, você está doente, e só você não percebeu isso. O que é isso aqui, no travesseiro? Sangue? Meu Deus! Breno, você está tossindo sangue! Eu vou chamar alguém!
__ Não, Nina, não é necessário, daqui a pouco isso passa...não vá embora de novo, Nina. Fique pra sempre! Exato, fique pra sempre! A gente pode ficar aqui o resto de nossas vidas, você toca piano pra mim e eu escrevo e a gente volta a ser feliz!
__ Breno, você está tossindo muito sangue, eu preciso chamar alguém! Quer fazer o favor de me soltar?
__ Nina! Por que você nunca tocou piano pra mim? Você tem mãos lindas de pianista, mas nunca tocou piano pra mim...
__ Eu nunca fui pianista, Breno. Com licença, vou pedir ajuda.
__ Não vá, Nina...fique e toque piano pra mim...eu fico em silêncio...

******

__ Srta. Nina Alencar?
__ Dispenso o srta. Como ele está, doutor?
__ Bem, como todos sabemos, o caso do Breno é muito sério. Ele já devia estar em tratamento há muito tempo. Mas foi irresponsável e negligente, e essa combinação, aliada ao câncer de pulmão, não é nada boa.
__ Câncer de pulmão?
__ Por Deus, você não sabia? Mas ele fala tanto de você, achei que soubesse.
__ Não, eu não sabia de nada. Nós não tínhamos contato há quase um ano...
__ Nina, o Breno tem um câncer diagnosticado nos pulmões há mais de seis meses. Nesse período, em que devíamos estar em tratamento, ele se escondeu do mundo em seu apartamento, e até onde me consta dobrou a quantidade diária de cigarros. Ele está se matando aos poucos. Se ele tivesse seguido o tratamento desde o início, talvez pudéssemos fazer alguma coisa...mas agora não temos mais tempo. O Breno não tem mais tempo...
__ Não, doutor. Eu não aceito isso. Vou conversar com ele, vou demovê-lo dessa idéia estúpida de não fazer o tratamento...ele vai se curar, doutor, eu tenho certeza...
__ Então tente, Nina. Qualquer coisa que você fizer pelo Breno vai dar a ele mais tempo, eu tenho certeza.
__ Eu só preciso de um pouco mais de tempo, doutor...tempo para aprender a tocar piano pra ele...

******

É um dia bonito e ensolarado, apesar disso não sinto calor assim, vestindo preto. Meus olhos vermelhos e cansados não podem ser vistos porque não permito, e os escondo atrás de óculos e sorrisos de agradecimento pelo consolo. Todos eles já partiram, mas hei de ficar aqui, porque meu lugar é do teu lado. E não pense que faço isso por pena, de mim ou de você. Faço isso porque te amo, como fá foi dito somos o encaixe perfeito um do outro. E ainda que você tenha partido, posso te sentir aqui a me abraçar agora, a afagar a dor que tua ausência definitiva há de deixar. Estou doente, irrecuperavelmente doente, mas não tenho com o que me preocupar, porque tendo você partido só me resta fazer o mesmo. Talvez tenha te odiado quando soube que você desistira, mas consigo apreender a beleza e purificação veladas de teu gesto desesperado. Existem canções de morte, mas elas não dizem mais que teus olhos fechados e teu semblante de paz. Ah, Nina, peguei tuas mãos brancas de pianista antes da tua partida, e sinto o cheiro delas, cheiro de flores brancas, nas minhas próprias mãos. Faz um bom dia ensolarado, e a única canção que cabe nesse momento diz que “se um dia fores embora, te amarei bem mais do que esta hora”. Tua morte não te levou, Nina, porque te tenho em mim. Tem sido assim há quinze anos, e há de ser assim pra sempre, porque a chuva sempre vem. Além disso, ainda existem canções.

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Escrito em Abril de 2003.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

No terapeuta

"Eu sei que essa é minha primeira sessão, doutor, e sei que as pessoas costumam não falar muito assim, de início. Mas eu já não aguento mais. Preciso compartilhar isso com alguém. Sabe o que é, doutor? Eu sou médico também, olha só, sou cardiologista. Mas há uns anos, antes da especialização, na época da residência, o senhor sabe como é, a gente faz a residência. Eu fui residente em um hospital da rede pública, e logo no meu primeiro mês foi me acontecer isso. Eu residia no pronto-atendimento, via de tudo, fratura exposta, buraco de bala, gripe, infarto. Achava poético cuidar das feridas dos outros, acabar com a dor dos outros, o senhor entende, né doutor? Aquela baboseira sentimental que ataca todo médico em formação.

E foi logo no primeiro mês que aconteceu, doutor. Foi no meu primeiro mês de residência, numa madrugada fria e de chuva torrencial, que a Clarisse chegou. Não, eu não a conhecia, não era namorada ou coisa alguma. Nunca tinha visto Clarisse na minha vida. Mas ela chegou e eu fui tratar dela. Meu Deus, ainda me lembro com clareza do horror. Ela tinha sido encontrada à beira da rodovia, doutor, por um caminhoneiro que foi deixá-la no hospital. Tinha todos os documentos com ela, pobrezinha. Havia sido espancada, estuprada e esfaqueada, bem aqui, no flanco esquerdo, perto do coração. Perto do coração, doutor, o senhor entende? Fiquei chocado. Ela ainda estava viva quando me disseram pra cuidar dela. Peguei seu braço pra ver seu pulso e vi cortes, muitos cortes. Vi cicatrizes nos dois braços, depois verifiquei as pernas, a barriga...cheia de cicatrizes, a Clarisse. Era uma suicida, eu logo soube, que outra explicação praquelas cicatrizes? Mas ela não tinha feito a escolha, doutor, alguém escolheu por ela. Alguém quis que ela morresse, alguém a machucou daquele jeito horrendo. Ai, doutor, nem gosto de lembrar. Um enfermeiro chegou perto e disse que o pulmão estava perfurado, não dava dez minutos pra ela morrer, falou que ia fumar um cigarro e saiu, me deixando sozinho com ela. Doutor, eu fiquei tão pesado. Pedi a ela que abrisse os olhos e, quando ela abriu, o que vi foi um vazio, mas um vazio de um negrume absurdo e estarrecedor, vi duas janelas abertas para o nada infinito. Por Deus, doutor, o senhor não tem noção do que é aquilo. Aquela menina já estava morta, doutor, só que ainda viva. Nunca tinham me dito na faculdade que eu ia encontrar uma pessoa que morrera em vida. Por Deus do céu, ela devia ter menos de 20 anos, doutor. Morta em vida. Ela falou comigo, arre, voz baixa e silenciosa, quase uma prece. Ela falou: "faz passar". Eu levei as mãos à cabeça, assim, doutor, porque eu fiquei desesperado. Eu sabia de que dor ela estava falando, era da dor na alma dela, não tinha como curar aquilo. Não vende na farmácia, vende, doutor? Eu sorri sem graça, acho que já estava chorando quando ela falou, ainda mais baixo: "deixa pra lá". Eu entendi. Olhei o vazio do olho dela e entendi. E fui lá e desliguei todos os aparelhos que a mantinham viva. É isso mesmo, doutor. Matei uma pessoa que já estava morta. Meu Deus, finalmente consegui compartilhar isso com alguém. Obrigada, doutor, muito obrigada."


Dias depois...


__ Clínica de Psiquiatria, em que posso ajudar?
__ Eu queria marcar uma consulta.

No consultório...

"Vim confessar, algo. Também sou psiquiatra. E agora sou cúmplice. Cúmplice de um assassinato. Ajudei alguém a matar alguém que já estava morto. O senhor entende, doutor?"

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Fragmentos de cartas

Choveu. Parou, feito qualquer outro dia. E não é mais. Deixou de ser um dia qualquer, e há dias tem sido assim. De outro modo, tem sido sim um dia qualquer, um dia como todos os outros. Porque todos os dias a angústia é a mesma, e há sempre desesperança. E não há mais preces silenciosas, um abraço de conforto ou uma palavra para afagar o coração que não se abarca mais. A angústia é a mesma, por isso é um dia como outro qualquer. Mas o fato é sempre novo, desqualificando o dia e a vida. Ontem foi a solidão, anteontem o abandono, hoje a resignação diante das coisas que não se podem transformar. E choveu novamente, e parou como sempre, e o sol é fraco e nunca aquece. A chuva já matou muita gente, solidão e angústia não entram nas estatísticas, mas aquela moça morreu disso. E eu estou certa em afirmar que os dias dela não eram os mesmos, embora os pais dela dissessem o contrário e os amigos não acreditassem. E, como não podia ser diferente, ela morreu sozinha na sua casinha de bonecas, abarrotada de sonhos e vazia de vida. A casa, não a moça. Essa, essa foi esvaziada muito nova, a essência dela já havia se perdido. E talvez por isso fosse tão diferente das pessoas todas deste mundo. Porque roubaram a essência dela e ela quis procurar, ao contrário daqueles que mantêm sua essência guardada em pequenos frascos mesquinhos e sem profundidade alguma. E ela procurou enquanto pôde, mas o caminho era longo, frio e deserto, e todos os atalhos eram tão incertos quanto a noite escura. E, ainda que não se pareça crível, um dia ela parou de procurar, porque alguém de sorriso bonito e olhos de perdição disse a ela que a busca era inútil. E como era de se esperar ela se perdeu, para todo o sempre, um sempre a perder de vista, exatamente como o coração dela. E nunca mais se encontrou, nem foi encontrada, e foi avistada pela última vez na beira de uma estrada que levava a lugar nenhum, fumando o cigarro sem número de uma das suas vidas, seja lá qual fosse. E eu estou certa em afirmar que chovia, e depois parou tudo de uma vez, de uma interrupção silenciosa e doentia, e os pais dela choraram por três dias e três noites e foram cuidar da vida, e os amigos dela logo a esqueceram, porque nós definimos a importância das pessoas na nossa vida, e os mortos só nos importam enquanto o corpo ainda é quente. E eu, que sofria de insônia, agora descanso, o descanso justo e merecido daqueles cuja mente perturba mais que todos os sons amontoados, cujo coração não compreende o verdadeiro sentido da palavra “paz”.

****

__ Mariana, você ainda está dormindo?
__ Pergunta cretina.
__ O que você disse?
__ Nada, mãe. O que quer?
__ Você soube? Clarisse foi encontrada.
__ Já não era sem tempo. Como está?
__ Morta.
__ Puxa, quanto zelo no repasse da notícia.
__ O quê?
__ Nada, mãe. E a Regina?
__ D. Regina, mocinha. E ela está bem. Se mostrando uma pessoa forte. Bem, tenho de ir trabalhar. Não enrole na cama, senão vai se atrasar.
Pobre mamãe. Sempre acredita em tudo que dizem. Em tudo que mostram. Não é capaz de ler as pessoas.
Meu pai tinha essa capacidade. Por isso partiu enquanto podia. Eu queria ter ido com ele. Nada pior que essa casa e essas ausências. Sobreviver é para quem sabe enganar a vida, e isso eu nunca aprendi.
Tomei um banho quente ainda pensando em mamãe, mas logo desviei meus pensamentos para Clarisse. Fiquei me perguntando se ela havia conseguido enfim decifrar todas as nossas questões, e se de alguma forma pôde me passar a mensagem.
Reli meu diário, costume bobo, tomei o café amargo de minha mãe amarga e fui para a faculdade. Não há uma manhã como outra, mas aquela me parecia exatamente igual. Angústia...

***

Não posso mais suportar isso. Digo, essa coisa de acordar, colégio, dormir, acordar...Há tanto para se ver, não concorda? Tenho medo da rotina, Mari, tanto medo que me cega. Olha os meus pais e me diz, em nome de qualquer coisa, se isso é justo. Me diz se faz sentido viver trancada nesse quarto, olhando pela janela as casas iguais, das pessoas iguais, que descem dos seus carros iguais e admiram seus jardins estupidamente iguais. O que eu faço com toda essa balbúrdia dentro de mim? Como posso silenciar meus pensamentos, velozes e incompreendidos?
Já pensei nisso muitas vezes, e somente agora considero verdadeiramente a possibilidade: vou fugir, Mari. Não volto mais, nunca mais. Não, minto, volto sim. Um dia eu volto pra te buscar. Pra gente morder a vida.

***

Pra gente morder a vida...Ela sempre escrevia isso nas nossas correspondências secretas. Já fazia tanto tempo que ela havia partido, mas eu não tinha como esquecer, afinal ela havia prometido voltar. E se foi, há quase sete anos, e eu sabia que ela jamais voltaria, mas eu esperei. E chorei três dias e três noites, como ela dizia, e preparei minha mala, pra que a gente não perdesse tempo quando ela voltasse pra me buscar.

***

__ Você sabe pra onde ela foi, não sabe?
__ Infelizmente, não, D. Regina. Sinto muito.
__ Sabe sim. Eu sei que você sabe. Sei que vocês trocam cartas. Diga-me onde ela está.
__ Já disse que não sei. E, mesmo se soubesse, não contaria.
__ Posso saber o motivo?
__ Ora, a vida é dela, ela faz disso o que bem entender. Ela precisou partir.
__ Não seja leviana! Então você acha certo o que ela fez?
__ Certo, certo, pode até não ser. Mas era necessário. A senhora não a conhecia, nunca vai poder compreender.
__ Se você sabia que ela ia fazer isso por que não fez nada para impedir, Mariana?
__ Deixa a Clarisse encontrar o que procura. Um dia ela volta pra casa, mãe.

***

Tenho tanto medo que alguém encontre essas cartas...E se a sua mãe bisbilhotar e descobrir tudo? Eu sei, ela não teria coragem para tanto. Mas ainda assim, cautela e atenção.
Nada é fácil, isso é fato, a vida é ingrata, mas eu consigo superar isso. Conheci mil pessoas, mil lugares, nem parece que saí do universo conhecido há apenas dois meses. Porque isso aqui é um universo paralelo, Mari, e a fenda que eu abri pra escapar da realidade já se fechou. Você nem acredita nas coisas que vi, nas situações que me envolvi. É tudo sonho, Mari, e eu nem tenho mais pesadelos porque não durmo mais. As pessoas aqui, do lado de fora da minha janela, são bondosas e cruéis, e tudo é volátil, e a vida tem pressa. E eu tenho pressa, você entende, é como eu. E eu tenho só treze anos, e você nem vai acreditar nisso, mas eu consigo quase tudo que quero, eu nunca menti pra ninguém, veja bem, e consigo casa, comida e roupa lavada por alguns dias ou semanas, algum dinheiro, alguns cigarros, e pego a estrada de novo, e sei que vou no caminho certo. E eu vou te mostrar tudo isso um dia, Mari, pode esperar.

***

Fiquei sozinha na capela por muito tempo, porque os pais dela não puderam faltar ao trabalho. Olhei Clarisse por longos minutos até reconhecer nela minha amiga de infância. O rosto dela estava machucado e não havia felicidade em seu semblante. Coisa estúpida de se dizer, onde já se viu morto feliz? Mas era algo de se sentir, e eu não sentia isso. Era como se a busca dela tivesse sido inútil, e aquilo me doeu, muito mais que a morte dela, disso eu já desconfiava, afinal não me escrevia havia alguns meses. E a última carta era realmente desesperançosa. Parece que os olhos de perdição eram uma grande mentira, e a vida inteira é uma doença traiçoeira, e a minha amiga sofreu por ter verdade demais num coração vasto demais.
__ Obrigada por vir, Mariana.
__ Não por isso, D. Regina. Não vai olhar sua filha pela última vez?
__ Não, não. Já vi o que tinha de ver no reconhecimento do corpo.
__ E o tio Geraldo, não vem?
__ Deve chegar para o enterro. Caíque não vem, pobrezinho, está em São Paulo a trabalho.
Eu não tinha pena dessa família. Regina é fria como um imenso bloco de gelo, Geraldo é apático como os tons pastéis. E Caíque...

***

Você e o Carlos Henrique? Não posso conceber isso, Mari, juro que não posso. Ele sempre me pareceu idiota demais, ainda mais perto de você, que é linda e incrivelmente especial. Mas o amor tem dessas coisas, e eu espero que você possa descobri-las. Quanto a mim, só sinto saudade de você. É quase como se eles não existissem mais. Ou como se nunca tivessem existido de fato.
O Rio de Janeiro é absurdamente lindo, tão bonito que cansa. André e eu estamos mortalmente felizes, o quiosque vai bem e todas as noites temos viola e fogueira. Semana que vem eu completo dezesseis anos, mas me sinto uma criança de apenas três. E só tenho uma data para comemorar. E não demora pra você também nascer de novo. Espera...

***

__ Mari, escuta...
__ Não precisa dizer nada, Caíque. Eu entendo.
__ Que bom. Isso facilita as coisas.
__ Agora eu entendo o porquê da sua irmã ter fugido. Quer dizer, olha pra você...
__ Como assim?
__ Nada, Caíque, esquece. Eu sei que é isso que você vai fazer mesmo...E eu não quero me arrepender depois.
__ Tudo bem, então. Vou deixar você sozinha.
Engraçado pensar que fiquei quase cinco anos com Caíque, pra terminar desse jeito. Mas quando ele bateu a porta do quarto e eu joguei o anel de noivado no lixo, me arrependi de cada segundo que passei com ele. E chorei de vergonha por ter pensado em não partir com a Clarisse caso ela viesse me buscar. Nunca disse isso a ela, nunca disse isso a ninguém, porque era feio demais. E indigno de quem eu penso ser, e muito mais indigno de quem Clarisse era. E, obviamente, Caíque não era merecedor disso, Caíque não merecia nada.
Minha mãe trouxe o Zeca do veterinário hoje, e ele anda tão fraquinho que acho que em breve vamos ter outro enterro. Feliz cãozinho, tem quase a minha idade e viveu muito mais que eu.

***

Promete pra mim, em nome de qualquer coisa, que você vai se cuidar para sempre, para nunca precisar abortar. É horrível, sangrento e desolador. Infelizmente um filho não estava nos planos, que planos? O André já se foi há algum tempo, mas ainda tem um buraco aqui. Sendo honesta, tem dois buracos, eu acho que nunca mais vou engravidar de novo, mas tanto faz, vou ser madrinha do seu filho e adotar um monte de criancinhas lindas quando eu ficar velhinha. E não serei como a D. Regina, serei a melhor mãe do mundo, e meu quintal vai ser cheio de brinquedos e cachorros, tão ou mais adoráveis que o seu incrível Zeca.
O grupo de teatro caminha, caminha bem, passeamos todo o interior, sempre com a mensagem de uma vida bela e livre. Tem a Camila, que é linda demais e me lembra você, ela voltou pra casa porque era cheia de medos, e me disse antes de partir que a gente é livre pra escolher, mas é escravo das conseqüências. E você nem acredita no quanto isso pesa no meu peito. Daí eu sonhei três dias e três noites que eu voltava pra casa e dava com a porta trancada, e eu fiquei cheia de medos também. Onde isso tudo vai parar, Mari? Detesto admitir, mas há todo tipo de escravidão, e eu sou escrava da minha liberdade.

***

Como eu disse, não sentia pena da família de Clarisse. Pouco mais de uma semana depois do enterro e a casa está cheia de gente, música alta e salgados frios, e Regina ostenta ouro e superioridade, Geraldo conversa com pessoas que não conhece, e Caíque sorri para mim como costumava sorrir no começo de tudo. Minha mãe está trancada no quarto com inveja de toda e qualquer vida que não seja a sua, e eu me sentei perto do muro com uma garrafa de vinho e um coração cheio de sonhos adormecidos. Caíque veio ter comigo e fui definitivamente grosseira, e só então consegui chorar diante dos acontecimentos recentes. Era como se não houvesse resposta alguma, afinal, apenas a resignação diante de tanta vida despedaçada. Ou intacta, caso prefira, nunca mordi a vida como isso realmente deve ser.
Conversei com Geraldo quando já amanhecia e o último bêbado ainda vomitava no jardim. Ele me perguntou o que havia feito de errado com Clarisse, qual foi o ato falho, e eu me descobri sem resposta para isso. Sempre achei que a resposta estaria pronta caso alguém questionasse, parecia tão óbvio para mim. Mas não. O que terá descoberto Clarisse em sua busca? O que a fez declinar de continuar procurando, verdadeiramente?
De repente uma angústia nova atravessou meu peito, feito ponta de lança, e eu deitei no colo de Geraldo como fazia com papai e tentei dormir, mas não pude, achei que nunca mais fosse dormir na vida, porque enfim percebi que sequer havia uma pergunta. E Clarisse fugiu disso também, ela era fraca porque fugia daquilo que não podia combater. Mas quem sou eu para julgá-la com tamanha severidade? Ela colecionou lugares, vivências e amores, eu colecionei angústias e ausências. Nunca fugi de nada, mas também nunca combati nada, fiquei sempre neutra, vendo os exércitos invadirem meus territórios e tentando permanecer ilesa, sem lutar pela posse de mim mesma.
À tarde fui ter com Clarisse no cemitério, e só consegui pedir perdão. E choveu, e parou, feito qualquer dia. Mas a minha decisão finalmente foi tomada.
Se chover de novo essa noite, eu juro que me mato.

***

Não sei como começar essa carta, Mariana. Achei que tivesse descoberto tudo que precisava, achei que meus olhos de perdição enfim me mostravam o caminho, e me dei por satisfeita. Mas os olhos de Valter são de perdição em embriaguez e fúria, e agora sou escrava das promessas que ele me fez um dia. Descobri o gosto ruim da vida, o pedaço podre de tudo isso, e não sei como me livrar. Tudo é tão negro perto de mim agora, não tenho mais ânsia de viver. Como isso é triste, cara amiga! Como é difícil aceitar que esse é o ponto de chegada, e fim! Sinto falta da minha casa, que coisa doentia isso de viver. Não há beleza, entende? Porque eu transformei tudo que acreditava em continuidade do viver de outra pessoa. E eu nunca fui assim, você sabe que não, mas não posso mais acreditar nisso, não confio mais em mim. Porque eu falhei miseravelmente, e estanquei o sangue que latejava incontrolavelmente. Tenho vinte anos e não conquistei absolutamente nada, e não posso morrer assim, sozinha, cheia de angústias, em uma casa que não é minha e ao lado de alguém que não me vê.
Estabeleci um prazo para mim mesma. Se em dois meses eu não escrever novamente, pede pra D. Regina arrumar meu quarto, porque se não funcionar da maneira que tem que ser eu volto pra casa.

***

Minha mãe teve um acesso de insanidade temporária e revirou meu quarto atrás de maconha, coisa mais absurda, e encontrou as cartas de Clarisse, todas elas. Tive que lembrá-la que Clarisse estava morta, porque me proibiu de ter com ela. Daí foi minha vez de ter um acesso, mas de riso, porque era só o que me cabia. Ri porque tinha pena de minha mãe, de Clarisse, de mim mesma. Ri porque choveu todas as noites e eu não me matei, conforme havia decidido. Ri porque amava Caíque, ainda, e junto com ele toda a segurança que isso implica. Ri porque meu pai me abandonou quando eu tinha cinco anos, foi comprar cigarro e nunca voltou, e ao invés de odiá-lo eu odeio esse vício, detesto esse bastão nicotinoso. Ri porque toda a minha vida é um emaranhado de defesas pré-estabelecidas, e eu sempre apertei o botão vermelho inconscientemente.
Minha casa parecia um bloco de carnaval fora de época. Regina e mamãe, brigando feito cães, no duelo dos trios. Vez ou outra eu ouvia meu nome, seguido de adjetivos nada elogiosos. E Geraldo, folião de quarta-feira de cinzas, sentado no sofá com olhos profundamente interessados no nada.
__ Ela te amava, sabe?
__ Hã?
__ Clarisse. Não sei quanto à Regina e ao Caíque, mas estou certa em dizer que ela te amava, tio.
__ Eu sei, Mariana. Porque tudo que ela viu em mim, precariamente escondido, fez com que escolhesse esse caminho. E eu me orgulho dela por isso.
Escapei à francesa e fui ter no quarto de Caíque, que dormia o sono solto e sem preocupações de quem não quer morder a vida, apenas enganá-la enquanto ela deixar. Me deitei ao seu lado e não me surpreendi quando ele me abraçou e me chamou pelo nome.
__ Posso ficar um pouco?
__ Fique para sempre.
__ Sempre é muito tempo.
__ Eu sei. Por isso mesmo.
Dormi. Dormi o sono de quem ama.