quinta-feira, 24 de julho de 2008

De olores

Havia um cheiro em cada madrugada. Na primeira, o cheiro era uma mistura meio ébria de café, álcool, cigarros e maresia. Depois, com o tempo, veio o cheiro do sexo dela, do hálito amanhecido, do café requentado, sempre havia cheiro de cigarro, muitas vezes de álcool. E em mim havia o cheiro de gente doente, que morre um pouco a cada dia. Havia cheiro de flores brancas que eu sentia comigo desde o enterro de Nina, como se eu as carregasse pela eternidade em minhas mãos cansadas. E logo veio o cheiro de poeira, a poeira que se acumula sobre as coisas esquecidas na janela, em uma daquelas tardes em que estivemos a fumar e olhar o mar, tardes essas que não se repetem porque não compartilhamos cheiro algum agora. Não sinto, nunca senti o cheiro dela em minhas mãos. Lembro que ela tinha um cheiro bom na nuca, que não era perfume, era um cheiro próprio mesmo, e eu dizia que o cheiro de Clara era o meu preferido, ela ria feliz e me perguntava se eu ia engarrafar e vender. Eu, ciumento até da luz que a fazia ainda mais branca, ria e dizia que não haveria nunca de engarrafar, porque aquele cheiro estaria na nuca dela pra sempre eu haveria de senti-lo pra sempre. Tudo bem que meu 'pra sempre' era curto, mas só porque eu estava prestes a morrer, não por querer me livrar dela ou de todos os cheiros que ela tinha. Ela me dizia que eu tinha também um cheiro bom, um cheiro que não saía com banho ou a falta dele (eu tomava banho com frequência regular, só pra constar). Mas ela continuava a sentir o cheiro, e descobrimos depois de meses de uma convivência difícil e deliciosa que era o cheiro de um perfume que eu já não usava há anos. Pequenas magias. Minha casa tinha o cheiro de remédios e humores fatigados pela manhã, eu morrendo. À tarde a casa tinha cheiro de café e jazz, cheiro de tinta que eu usava pra escrever (eu sou desesperadamente formal e envelhecido, escrevo com caneta tinteiro), além do cheiro dela, um cheiro suave e marcante, que me fazia buscar seu pescoço de momento em momento. À noite a casa tinha cheiro de álcool costumeiramente, mas Clara era mundana e queria rua, sempre rua. Então eu a deixava, com o coração em um aperto só, fechando as janelas pra tentar prender o cheiro dela comigo. Às vezes eu me sufocava com o cheiro dela que era bom e se misturava aos meus que eram horríveis e corria pra beira do mar, tentando captar o cheiro de sal, e por vezes sentia junto com ele o cheiro de peixe podre do mercado ali no final da Copacana, sentia o cheiro das putas do calçadão, o cheiro de batata frita dos quiosques da orla, até cheiro de água de coco eu sentia. Todos aqueles cheiros. Voltava pra casa cansado como se tivesse corrido uma maratona e voltava a me sufocar com o cheiro dos remédios e com o cheiro da senhora dona morte que já caminhava ali perto à essa época. E um dia, um desses dias em que deixei Clara ser mundana, ela saiu e não voltou. Levou minha carteira de cigarros e levou o cheiro dela, nunca mais voltou. E enquanto o cheiro dela se esvaía o cheiro da senhora dona morte se acentuava. Ela me sorria, condescente, a senhora dona morte. Mas não, não era a hora. Senti o cheiro das flores brancas nas minhas mãos por alguns meses, alguns poucos, até o dia em que Clara voltou, era uma tarde límpida e ela voltou, branca e bela. Mas tinha um outro cheiro, não era mais o cheiro dela. Senti aquele cheiro novo na nuca dela por uma semana, sem nunca ter conseguido amá-lo. E ela se foi de novo, levando aquele cheiro estranho com ela. Nina me sorriu do espelho, senti o cheiro das flores brancas nas minhas mãos e no sorriso dela, segurei as mãos da senhora dona morte; ela toda cheirava a flores brancas. Flores brancas e mortas.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Confuso

Engraçado ver essas coisas acontecendo conosco, sentir essa distância se tornando cada vez maior. Juro por tudo que há de mais sagrado que tudo que eu quero é fazer com que as coisas dêem certo.

Não dá pra dizer "eu te amo" o tempo todo porque têm horas que tudo que eu queria era que você virasse fumaça e sumisse da minha frente, mas logo em seguida me desespero por pensar nessa possibilidade. Minha vida sem você seria por demais penosa: uma busca constante e um eterno desgosto por não te encontrar. É justamente pensando nessas coisas que eu acho engraçado te ver assim, se distanciando e eu aqui quieto na minha só sentindo essa distância aumentar.

Não faz sentido pensar que me desesperaria sem você e, ao mesmo tempo, assistir mudo e imóvel à tua partida lenta e sofrida de minha vida lenta e sofrida. Acho que cheguei nesses dias de conflito pelos quais todos passam algum dia na vida e pelos quais alguns passam a vida toda. Estou confuso a respeito do que me confunde. Não sei se estou confuso a respeito do que sinto, ou se estou confuso a respeito do que fazer! O fato é que estou confuso, e isso não tem nos ajudado. Será que você está confusa também? Seria tão mais fácil se ainda tivéssemos a mesma comunicação de antes.

Onde foram parar nosso diálogos, nossas loucuras e nossas contas telefônicas estratosféricas? Não sei e aposto que você também não sabe. Aposto que ninguém sabe. Estranho pensar nessas coisas. Estranho pensar em você sorridente no passado e te ver muda e inexpressiva hoje. Estranho achar estranho nosso relacionamento, quando antes eu o achava perfeito.

O que fazer? Pedir ajuda? A quem? A você? Você está tão perdida quanto eu, minha jovem: isso é fato.

(silêncio...)

quarta-feira, 16 de julho de 2008

o retorno

eu voltei... é voltei sim. mas não foi pra pedir perdão não... não, não... foi pra te dizer... olha pra mim! foi pra te dizer que sem a tua presença, sou uma pessoa muito, muito melhor. é, é... sabe aquela pessoa que eu sempre quis ser? é, aquela que põe água nas plantas, não fuma e consegue beber com moderação sim. uma pessoa muito melhor. até tô mais bonito. já disse pra olhar pra mim. eu voltei pra dizer, minha cara, que sem a tua presença, a tua presença desprezível, eu sou bem mais eu. bem mais eu sem ti. sem a tua influência podre. meus dentes tão até mais brancos. olha aqui ó: muito mais bonitos. e não adianta esfregar na minha cara essa foto do teu namorado não.

não dou duas semanas pros dentes deles estarem podres...

agora dá licença que eu vou de vez!

terça-feira, 15 de julho de 2008

Dois lados - O lado dele

Estava entediado. Nenhum livro novo pra ler, computador quebrado e uma manhã inteira assistindo televisão. Sentia-me um prisioneiro dentro de casa. Repentinamente em um desses arroubos que nos acometem inesperadamente levantei-me e sai de casa. Não suportava mais aquela quietude fúnebre. Sai sem destino e sem ter idéia do que procurar fora de casa, além da sensação de não estar em casa.

Incrível como eu pude passar a manhã toda deitado no sofá assistindo televisão mudando de canal e reclamando da vida. Estava um dia muito bonito. Repassei mentalmente algumas coisas que eu faltavam em casa e decidi que iria fazer pesquisa de preços. Assim passei a tarde toda entrando de loja em loja e olhando preços, até que essa tarefa deprimente me cansou. Estava indo para uma lanchonete comer alguma coisa antes de ir para casa quando começou um temporal, absurdo.

Em questão de segundos a chuva tomou conta de tudo. Corri para debaixo de um toldo em busca de abrigo, algumas pessoas chegaram junto comigo e começaram a reclamar e xingar. Eu apenas ri. O que mais se pode fazer numa situação dessas? Foi então que chegou uma garota linda. Sem esperar muito tempo procurei puxar conversa tentando parecer espontâneo:

- Como pode, né? Estava tão claro agora há pouco.
- Pois é. Quem diria que ia chover.
- O bom é que quando é forte assim passa logo.
- Ahan...
- Bem, enquanto não passa vou entrar ali naquela lanchonete pra tomar um café.
- Então tá...
- Aceita um café?
- Não, obrigado.
- Tá, o café é o de menos. Não quer ir para um lugar onde vente menos? Lá pelo menos é coberto.

Ela aceitou. Magrinha daquele jeito devia estar morrendo de frio. Chegando na lanchonete nos sentamos e conversamos bastante. Ela tinha um sorriso lindo, não conseguia deixar de reparar no quanto o sorriso dela era lindo, tanto que procurei fazê-la sorrir o tempo todo só para ver aquele sorriso iluminando aquele dia que até então estava sendo péssimo. A chuva passou e continuamos sentados. Conversando e rindo.

Quando começou a escurecer ela precisou ir embora. Ela morava num prédio longe da minha casa, mas a companhia era tão agradável que nem me importei em acompanhá-la. Lá chegando ela me convidou a subir. Neguei para não parecer muito afoito. Inventei uma desculpa qualquer e peguei o número do celular dela. Iria ligar no dia seguinte ou dois dias depois, para parecer despretensioso. Ela subiu e eu fui embora. Duas quadras depois fui assaltado. Levaram minha carteira e meu celular, junto com o celular foi-se embora o telefone dela.

Dois lados - O lado dela

Nunca esquecerei a situação em que nos conhecemos. Eu precisava comprar um sofá novo pra minha casa e, como o dia estava claro, decidi sair para olhar as vitrines a pé mesmo. Caminhar, espairecer e gastar. Eu usava uma blusinha branca de alcinha e um jeans coladinho, estava bem básica.

Então sai por aí caminhando e olhando vitrines. Acho que só olhei sofás mesmo por uma meia hora, porque lembro de ficar deslumbrada com alguns vestidos que vi nesse dia. A sensação que eu tinha era de euforia, alegria, liberdade. O céu estava limpo, de um azul fascinante. Passei a tarde toda caminhando pelas lojas da cidade e, assim empolgada, nem percebi que o céu fechou repentinamente. Chuva de verão.

Uma chuva forte e impiedosa preencheu tudo e desapareceu em poucos minutos. Enquanto chovia, fui obrigada a me abrigar embaixo de um toldo, e lá estava ele também. Sorridente, charmoso. Ria da própria impotência ante a chuva inesperada. Quando cheguei tratou logo de puxar conversa:

- Como pode, né? Estava tão claro agora há pouco.
- Pois é. Quem diria que ia chover.
- O bom é que quando é forte assim passa logo.
- Ahan...
- Bem, enquanto não passa vou entrar ali naquela lanchonete pra tomar um café.
- Então tá...
- Aceita um café?
- Não, obrigado.
- Tá, o café é o de menos. Não quer ir para um lugar onde vente menos? Lá pelo menos é coberto.

Pareceu uma ótima idéia, já que eu estava de camisa branca. Problemas femininos. Fomos para a tal lanchonete e lá, com certa descontração, Klaus conseguiu prender minha atenção. Acabei descobrindo a pessoa maravilhosa que ele era, tanto que a chuva passou e continuamos os dois sentados à mesa. Conversando e rindo.

Foi um fim de tarde ótimo. Ele me deixou no prédio onde eu morava, eu o convidei a subir e ele declinou. Disse que tinha um compromisso que não podia adiar. Pediu meu número de telefone e foi embora. Nunca me ligou, mas até hoje eu me lembro do sorriso dele. Engraçado como essas coisas acontecem, ele se tornou minha paixão platônica e eu só o vi um dia na minha vida, há dois anos.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Tempo perfeito

Sabe, eu tenho essa tendência nata a complicar as coisas. O raciocínio metódico é inerente à minha pessoa. Penso, analiso, calculo, repasso. Faço tudo isso em busca de um resultado não apenas satisfatório, porque de resultados satisfatórios são feitos os homens comuns. Eu busco a perfeição, porque tenho a ambição de alcançar a excelência. Sim, é um anseio deveras ambicioso, mas, por favor, não confunda minha ambição com ganância. São coisas que, se analisadas a fundo, podem ser completamente díspares, e acredito ser esse o meu caso.

Você deve estar se perguntando o porquê de tantos preâmbulos e eu direi agora. Tenho protelado o momento de tomar uma atitude de verdade ao que você tem considerado como "nós". A verdade, é que não existe "nós". Essa junção de duas pessoas em uma só é uma invenção patética dos românticos frustrados do passado. Veja bem, estou explicando o que, para mim, seria o "nós", e ele seria justamente isso: romantismo frustrado. Analisei a fundo essa questão e, depois de tanto pensar, firmei os pés no chão e cheguei à conclusão que tanto para mim, quanto para você deve haver um "eu e você", confesso que chega a parecer uma coisa monstruosa para a maior parte das pessoas, acostumadas a filmes água-com-açúcar veiculados por nossos meios de comunicação que tornam as pessoas cada dia mais acéfalas. Oh, desculpe-me, mas a televisão me enerva.

Bem, quando eu digo que deve haver dentro de um relacionamento o "eu e você", quero dizer que nosso relacionamento é feito por dois indivíduos diferentes, que podem pensar de maneira diferente e tomar decisões individuais. Acho que essa é a solução ideal. "Nós" é muita gente, "eu e você" somos dois indivíduos distintos.

Assim refletindo cheguei também a algumas conclusões no que tange a questões temporais. Eu e você somos duas pessoas com projetos de vida que tendem a serem construídos em torno de um pilar comum, nosso bem estar. O porquê disso? Certamente porque nos conhecemos o suficiente para nos querermos bem, e essa é uma questão que segue unicamente uma lógica passada. Por que eu haveria de gostar de quem você poderia ou não ser? Não tenho essa pretensão futura. Tenho um sentimento construído no passado e nenhum plano pro futuro. Não, não me olhe assim de maneira tão exasperada, não quero comunicar que pretendo terminar o relacionamento, muito pelo contrário, acredito que a conclusão a que cheguei é muito mais interessante do que esse pensamento comodista de quem pensa no futuro.

Os amantes que pensam no futuro fazem planos para futuro, fazem juras de amor eterno e essas outras baboseiras que no final se tornam apenas palavras ao vento. Oras a eternidade é por demais longa e eu tenho quiçá mais uns quarenta anos pela frente. Não, não possuo a eternidade, e ainda se a possuísse enlouqueceria, o momento de vida humano é breve para ser vivido em sua intensidade, e aí chegamos ao ponto que eu queria. Intensidade. Não te prometo amor futuro, porque do futuro eu não sei. O que posso te prometer é o melhor tempo que eu tenho na minha vida: o agora.

Concorda que se vivermos o agora, sem a esperança de um futuro, cada segundo nos parecerá muito mais precioso do que a eternidade que as pessoas prometem como se realmente a tivessem? Então, o que te prometo é o agora, porque agora estou aqui, agora só quero você, agora esse seu sorriso me conquista, porque agora te amo. É tão simples, não sei porque compliquei durante tanto tempo.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Sigo, busco, admito
Ao teu passo repasso
O teu ódio, a tua libido
O ócio e o descompasso

Deus, ópio nosso de cada dia
Que nos leve na leveza do pensamento
Que nos vele na eternidade do firmamento
Que as diferenças lançadas à frente
Sejam tua imagem e semelhança
Tua menina, tua esperança

Admito, busco o caminho
Repasso ao teu passo
A tua libido, o meu ódio
O ópio, meu pequeno paço.

[Escrito por Adaildo Neto e Daniela Andrade]

*

Mas quem é Adaildo Neto? O Neto veio na safra de novos amigos dessas terras acreanas tão distantes. Escreve para os blogs Grito Acreano e Excesso de Dúvidas Frequentes Sobre o Nada, dentre outros. Além de novo amigo da safra, espero que Neto seja também parceiro nesses passeios literários que surgem enquanto bebemos idéias, trocamos cigarros e fumamos cervejas.