sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Carta de agradecimento

Oi, Lisa, tudo bem? Desculpe-me o jeito assim, informal, de escrever, eu nunca fui muito de palavras e você sabe disso, assim como sabe que eu falo enquanto durmo, que eu gosto de leite com chocolate de manhã e assim como você sabe tudo mais que se possa saber a respeito de minha pessoa porque você, Lisa, você foi a única pessoa com quem eu convivi de verdade.

Por você eu abandonei todos os meus vícios e manias, adqüiridos ao longo de vinte anos de solidão e isolamento. Você foi a única pessoa que pôs fim à minha misantropia. Depois que você entrou em minha vida tudo mudou. Graças a você aprendi a tratar decentemente as pessoas, independentemente de quem elas sejam ou do que elas tenham feito no passado, porque a vida começa sempre agora e sua única direção é o futuro. Sua alegria de viver mudou meu humor e os planos que você tinha para o futuro eram deslumbrantes e contagiantes.

Lisa, você realmente foi a pessoa que apareceu na minha vida para me tirar do lamaçal fétido em que eu vivia, sempre sufocado pelos meus rancores, pelos meus desgostos e preso pela minha falta de fé e de esperança em um futuro decente para mim, ou para qualquer ser vivo da espécie humana. Hoje vivo meus dias com grandes planos e procuro sempre concretizá-los, como aquela viagem à Inglaterra que eu sempre te falei. Os pubs londrinos são indescritíveis.

Hoje faz um ano que nos separamos, e eu só achei que eu devia isso a você. Eu aprendi tanto com você a respeito da vida e a respeito do que é viver que seria, no mínimo, falta de respeito se eu voltasse a ser o homem de outrora. Eu queria dizer também que eu ainda te amo, e muito. E que você não faz idéia da falta que me faz o seu sorriso, o seu cheiro, os cafunés que você me fazia de manhã, as suas ligações ao cair da tarde sempre me pedindo para levar alguma coisa diferente para o jantar. A sua ausência, a princípio, quase me levou à loucura, tanto que eu quase voltei a ser aquela criatura sorumbática de antes, mas me apeguei firmemente a tudo que aprendi com você, às nossas lembranças e à alegria de viver que você me ensinou. Não valia a pena voltar ao buraco negro onde eu me escondia.

Prometo te escrever sempre, e te amar ainda mais com o passar dos anos, até o dia em que ela vier me buscar também. Aí então poderemos viver juntos novamente.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Pôr-do-sol

Ambos estávamos contemplando o pôr-do-sol na janela do meu apartamento. E após um longo tempo em silêncio ela diz:

- Sabe...
- Hum...
- O melhor de tudo é que a gente se entende: e isso é o que importa.

E voltou a contemplar o horizonte. Eu fiquei ali olhando aquele perfil dela, agora ainda mais maravilhoso por causa das luzes meio alaranjadas meio avermelhadas que davam a seu rosto traços ainda mais sensuais. Abracei-a, olhei para o horizonte e disse:

- Isso é porque a gente se ama: e isso basta.

Medo do inferno

E o que mais você poderia esperar de um cara como eu? Amor, esperança e confiabilidade? Sim, eu te garanto que eu também sou feito desse tipo de material, mas a verdade é que depois de tanto tempo tomando tapas na cara, a vida me moldou de uma maneira diferente. Eu já fui ao inferno algumas vezes, todas elas por causa de pessoas como você. O problema é que eu sempre volto diferente, muito diferente, e quando volto tem sempre outra escrota como você pronta pra me mandar pra lá de novo. Chega, cansei!!! Quem quiser conhecer o miolo agora vai ter que romper a casca, e ela é dura e fria, eu poderia até dizer, de maneira poética (ou dramática), que ela foi forjada no inferno. O mesmo inferno aonde você com certeza me jogaria. Essa minha atitude tem uma simples razão de ser: apesar de ter sido tantas vezes jogado lá por causa de criaturas como você, eu nunca percebo quando estou caindo. Eu te garanto que a gente só percebe que está no inferno quando é tarde demais. O coração gela, as lágrimas queimam e nosso rosto se distorce de maneira quase irreconhecível. Não, não ouse abrir a boca agora. Você me acusou de ser insensível, quem fala o que quer, ouve o que não quer. Você me acha insensível mas eu quero que perceba o quanto eu já sofri. Você acha realmente que eu estou disposto a sofrer de novo? Não, eu não sou insensível, no máximo posso ser acusado de ser medroso. Sim, confesso que sou um tremendo medroso, um borra-botas, caso prefira assim, mas o fato é que ninguém vai me jogar de volta naquele abismo medonho. Ninguém! Isso!!! Vá embora!!! É melhor pra você do que pra mim, aproveite e leve suas alianças. Adeus!

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

À beira da morte

- Essa porra dessa máscara deveria me ajuda a respirar.
- Calma, Klaus... sua pressão não está boa.
- Vá pro inferno, eu sou um velho doente. Pra quê perder seu tempo comigo?
- É meu trabalho...
- Você é ridícula, todos nós somos...
- Olha, me deixa trabalhar em paz, por favor.
- Está vendo, você não se importa comigo. Só se importa com seu trabalho de merda pra receber seu dinheiro de merda. Sua vendida...
- Boa noite, Klaus...

Ela se despede apaga a luz e vai embora me deixando sozinho no apartamento. Agora eu só consigo ver as luzes dos aparelhos piscando. Cheio de tubos no corpo todo, eu sei que eu vou morrer em pouco tempo. E agora à beira da morte eu só consigo me lembrar de como foi a minha vida. Não me orgulho nem um pouco de nada que eu tenha feito, mas também não me envergonho, viver foi sacrificante para mim, assim como deveria ser para todo mundo.

Lembro de quando eu era um adolescente cheio de ideais e planos para um mundo melhor. Eu desejava tornar o planeta um lugar que valesse esse desejo imbecil que todas as pessoas têm de se manter vivas. Eu sentia em mim a chama da vida.

Agora deitado esperando a morte só consigo ver que aquele fogo todo que me impulsionava e ao mesmo tempo me consumia se extingüiu. Dizem que isso acontece porque o sistema te quebra no meio de um jeito ou de outro, pra mim o nome disso é envelhecer mesmo. Por quê se preocupar com o mundo e se fuder constantemente por pessoas que não vão nem mesmo saber quem você é, ou que nunca chegarão a ver o branco do seu olho?

A síndrome do adolescente que quer salvar o mundo passa rápido, porque o mundo não quer ser salvo e no final todos nós acabamos nos tornando pessoas medíocres com objetivos de vida tão medíocres quanto os que nós criticávamos no auge da nossa adolescência utópica: somos todos patéticos.

Cotidiano

Junho. Para ser mais preciso, noite de junho, fria e solitária, como todos os anos anteriores. Sentado na poltrona enrolado em um cobertor, o maldito cachorro que não para de latir e de correr de um lado para o outro não me deixa pensar direito, acho que vou seguir o conselho do meu irmão e vou parar de dar café pra ele. Nem eu tomo o tanto de café que ele toma.

Acendo um cigarro, e tento voltar a ler o livro. Gabriel Garcia Marquéz nunca foi meu predileto, mas é o único livro que sobrou pra ler. Já li e reli todos os outros, uns poucos que eu li uma única vez, diga-se de passagem os melhores, eu acabei emprestando e nunca mais recebi de volta. A verdade é que eu sou idiota o suficiente para continuar fazendo propaganda do que leio para as mesmas pessoas que nunca devolvem meus livros.

Cheiro de amêndoas estragadas: cianureto. Pronto, cheguei ao ponto do livro em que sempre paro, e é bem no começo. Como alguém pode ter cheirado cianureto, saber que tem cheiro de amêndoas estragadas e ainda assim continuar vivo pra falar pras pessoas que cianureto tem cheiro de amêndoas estragadas? Isso é coisa de gente doente, prefiro ler as esbórnias de Bukowski.

Fecho o livro e vou à cozinha colocar mais café pro cachorro, ele ficou quieto de novo, tremendo e olhando para o canto da parede da sala. Aproveito e coloco uma xícara para mim também. Bebo metade e completo novamente com conhaque. Ah... isso que é vida.

O telefone toca e eu atendo:

- Alô?
- Klaus...
- Eu.
- É o Carlos.
- Fala, viado...
- Cara, é o seguinte, meu computador deu pau aqui em casa, e eu preciso dele pra falar com a Carolina. Ela tá me esperando na Internet pra gente conversar. Talvez eu vá a Brasília esse final de semana, preciso marcar um local pra vê-la.
- Usa o telefone, filho-da-puta. Eu trabalho o dia inteiro com essa merda agüentando gente burra me perturbando e...
- Eu comprei um Johnny Black.
- Tô passando aí agora.

Desligo o telefone e calço meu coturno velho e surrado. O cachorro já tomou o café e voltou a correr. Ah... isso que é vida.

Breve despedida

Amado, amigo, amante. Amado amigo amante.

Já amanheceu aqui, nesta terra distante que é meu quarto. Nesse quarto vazio de ti. Já amanheceu e eu não durmo, por esperar esse amanhecer frio que me traz remotas lembranças de um tempo só teu.

Há tanta força aqui, não vê? Há carinho e cuidado, há o sopro eterno do amor que lhe dedico assim, à distância, essa distância breve e avassaladora que impus para não te perder em definitivo. Há o perdão pelas palavras duras que disseste, sei o que te assola, conheço teus caminhos. Como haveria de não perdoar? Há dores imensas, ora, aceito a condição humana. Mas há um bem-querer de sempre, a ti e a mim. Há sempre fé.

Pequenas magias, eu sempre disse, lembro-me com clareza. Sinto teu sorriso antigo como se fosse de ontem, por que te escondes? Sai desse canto obscuro, vem caminhar comigo em silêncio. Vem ver quanta vida tem lá fora e aqui dentro de mim. Não te prives de mim, é o que te peço em súplica rascante. Mas não me devaste o peito assim, sem reserva. Não te insurjas contra mim com o peito aberto à morte e a face aberta ao tapa. Não me venhas como animal sangrando de feridas velhas. Tampouco me julgues por buscar verdade na vastidão do meu coração. Sei a medida exata dele, aqui não há sobras.

Amor meu, deixemos de nos lanhar por alguns pequenos instantes, para que a Divina Providência me mostre que não lutei por guerras vencidas, de tempos imemoriáveis. Para que eu saiba que meu prêmio de consolação não há de ser o desapego. Não, não estou a abandonar-te, nem a mim mesma, estou deixando em suspenso aquilo que me é mais caro, o tempo nosso, paro o tempo no tempo em que ainda temos um ao outro, antes que a chuva termine por levar de nós o que é só nosso, antes que deixemos de ser só um...inelutavelmente.

Amado amigo amante...vou me deitar à sombra. Aceite essa breve despedida. Fecho as cortinas agora, mas deixo para ti uma fresta da minha alma. Deixo sobre o balcão a melhor parte de mim, com o aviso de sempre: manuseie com cuidado, existe vida aqui dentro.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O bilhete

"Linda...Não tinha outras palavras para descrevê-la. Achava-a simplesmente linda... a perfeição do gênero feminino.Ele, estudante de medicina, admirava-a todos os dias enquanto percorria o caminho que o levava à Universidade. Ela, uma garota de família simples, estava sempre auxiliando a mãe nos afazeres domésticos. Sua casa ficava à beira da rua que o jovem estudante percorria todos os dias.

O tempo foi passando e o rapaz alimentando cada vez mais aquela paixão, até que decidiu, enfim, tentar uma investida. No entanto precisava, de alguma forma, certificar-se de que a moça não tinha nenhum pretendente oficial.

De tanto passar em frente à casa, mesmo quando não havia necessidade, ele sabia qual a janela do seu quarto. Aguardando o anoitecer começou a percorrer o caminho sinuoso que levava à Universidade. Em uma curva, ao lado da pequena ruela adjacente à janela da moça, ele parou a charrete, temendo que o barulho dos cascos dos cavalos pudessem despertar a jovem amada ou, pior, a futura sogra.

Caminhando, escondendo-se atrás de árvores e outros objetos comuns nas ruas da época, ele acabou aproximando-se da janela da moça e enfiou o bilhete por uma fresta da janela de seu quarto escuro. Logo após afastou-se rapidamente e retornou para a charrete, com medo de que o simples barulho do papel esfregando na madeira da janela desbotada e descascada da jovem pudesse acordá-la.

O bilhete:
'Perdoe-me pela ousadia, mas não poderia deixar de expressar todo este amor tão puro e maravilhoso, que preenche o meu coração, simplesmente ao ver-te auxiliando tua mãe nos serviços do lar. Gostaria de apresentar-me, no entanto receio que já tenhas outro pretendente. Poderia deixar na tua janela esta noite um bilhete me dizendo se já és prometida a alguém?'

Naquela noite o jovem universitário não dormiu... no dia seguinte não foi à faculdade. Passou a noite e o dia pensando na mulher amada. Pensou em como se apresentaria à mãe da jovem, como seria seu casamento, pensou nos filhos; chegando até mesmo a batizá-los e imaginar a carreira de cada um. Sim, ele estava se deliciando com seu amor, que em breve deixaria de ser platônico... se tornaria real. Se concretizaria na carne e teria em seus filhos a representação viva de uma história de amor verdadeira, sublime, terna e amena, como todos os grandes verdadeiros amores.

Ele já havia lido bastante a respeito, e imaginava para seu futuro todas as histórias de amor que já havia devorado na adolescência. Inútil... era assim que seus pais chamavam todas as histórias de amor que lia. Pois bem, ele lia muito mais do que apenas romances, ele lia a história da própria vida, e agora era a oportunidade de provar isso aos pais. Sim, nada se oporia ao seu caminho de felicidade!!!

Ao anoitecer, começou a preparar-se para receber a resposta da mulher amada. Imaginou-a esperando por ele na janela, com um sorriso lindo e olhos curiosos aguardando aquele que declarava a ela um grande amor. Perto da grande hora, quando o hoje está prestes a se tornar amanhã, ele decidiu ir receber a resposta.

Repetiu o mesmo ritual da noite anterior. Não encontrando a jovem amada decepcionou-se, sua mente, obcecada pela idéia de ter a mulher amada à sua espera, quase o leva ao colapso. No entanto a ponta do papel estava visível na beira da janela. Subitamente uma onda de calor e alegria, palpitação e ofegância, um sorriso que insistia em permanecer no rosto; tudo ocorreu ao mesmo tempo.

Receoso de ler o bilhete ali, no local, voltou correndo à charrete e rumou para casa. Lá chegando, entrou correndo esbaforido para dentro de seu quarto. Jogou-se na cama de barriga pra baixo, um sorriso ardente em seu rosto; rapidamente retirou o bilhete do bolso e o abriu. Lá encontrou somente uma linha que dizia: VÁ TOMAR NO CÚ!"

Escrito por Paullus Castro em 12/05/2006

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Retrato de família

Será que, se ele descobrir, há de me perdoar um dia? [gosto da idéia de começar a carta assim, parece-me um diálogo suspenso por um café, não por uma distância física assombrosa].
Quero dizer, você bem sabe do que estou falando. Meu doce Caio viajou e seu irmão maldito, o vilão Eduardo, já tomou conta do travesseiro. Ah, como sou horrível. Bem sei o que você vai dizer, como a irmã indulgente e adorável que és, mas não há salvação para mim. Sou um caso perdido. Que outra razão há de haver? Quem mais arriscaria um casamento perfeito por um prazerzinho carnal frívolo e tolo? Com o irmão de seu marido? Isso se aceitaria se fosse Caio o vilão, se me deixasse feito nau à deriva. Mas não. Meu marido tem cheiro de tranqüilidade, e haveria de ser meu bastião de serenidade, se eu não fosse quem verdadeiramente sou.
Vou tentar não me lamentar tanto. E definitivamente vou me concentrar em expulsar o vilão Eduardo da minha cama.
Por aqui chove todos os dias, dá pra acreditar nisso? E começa sempre às quatro da manhã. O que nos dá um amanhecer cinzento e nada agradável.
Minha cabeça pensa o que quer, coisa doentia. Pouco sono, muito café, muito cigarro. Se tudo der certo, morro antes que meu doce Caio descubra quem sou.

*

Não sou indulgente e adorável coisa nenhuma. Com que direito você faz isso com o Caio, Marília? Em nome de Deus, você é louca e merece o inferno.
Brincadeira.
Sabe o que eu acho? Você, com essa sua vida de cinema, não vai se acostumar nunca à idéia de estar casada, independente do marido maravilhoso que você tem. E olha que sua vida nem é só rotina assim. Quantos lugares e pessoas você já conheceu desde que se casou com ele?
Você ama seu marido. Pense nisso antes de enfiar o vilão Eduardo na sua cama, certo? Peço isso com especial carinho por Caio também. Não posso me privar de sentir o que sinto, mas se ele escolheu a ti, o mínimo que deves a mim é fazê-lo feliz.
Mas não falemos disso.
Por aqui as coisas vão bem, tudo dentro da normalidade. Passei o final de semana na praia com alguns amigos da redação, mas é muita loucura para o meu way of life. Tenho lido pouco, mas sem explicação de causa, é só preguiça mesmo. Volto a trabalhar na semana que vem, quem sabe revisar aquelas porcarias que esses jornalistas escrevem me estimule a procurar melhor leitura.
Achei que não agüentava mais a faculdade. Agora tenho certeza que, mais um mês naquela redação, eu enlouqueço definitivamente.
Mamãe te manda um beijo. Nada disse a ela sobre as tuas peripécias sexuais, papai não volta do interior nem tão cedo, algo de grandioso está para acontecer.
E quanto a isso de morrer, eu conto ao Caio sobre você e Eduardo logo após o enterro. Pense nisso. Ódio em vida a gente resolve, talvez consiga absolvição. Agora ódio em morte eu não sei não...

*

[Arrepios.]
Quão malvada você é! Mas eu bem entendi tua mensagem, sempre cifrada, coisa de escritor. Vocês são mesmo uns bestas.
Você não sente, às vezes, que pregamos uma peça no destino [ou ele na gente] e talvez por isso as coisas todas sejam tão confusas? Digo, qualquer um que nos conheça pode afirmar, categoricamente, que vivemos uma a vida da outra. Você sempre foi o orgulho da família. Estudou a vida inteira, foi editora-chefa do jornal da faculdade e só amou um cara na vida (que por acaso é o meu marido). Mas quem é a casada-servidora-pública-classe-média sou eu. Eu me casei antes dos trinta, eu tenho o trabalho chato e eu comando a casa. Ironia. Absurda. Enquanto você passa finais de semana regados a álcool e drogas com os intelectuais interessantíssimos do jornal. E quantos livros você vai publicar? Quantas vidas de outras pessoas você vai forjar com teus personagens? E eu sempre achei que os escritores findam por morrerem sós, com um temível medo terrível e absurdo da morte em si. Mas não te assustes com isso. É a vida que eu sempre quis pra mim.
Ah, eu definitivamente expulsei o vilão Eduardo da minha cama.
Penso que há uma dor silenciosa em viver. Não sei bem o porquê, sequer encontro o contexto da afirmação. Mas penso isso sim. E sem dor, o que é curioso.
Vai, Michele, viver tua vida empolgante. Vai enquanto eu descasco as batatas para o jantar.
O doce Caio volta de viagem amanhã. Prometo que vou cuidar melhor da preciosidade que te tomei.

*

A cúpula da insanidade perpassou essa casa e causou um estrago que faria inveja a qualquer furacão da América Central. Nem o Papa tem poderes para exorcizar as gargalhadas que Satã tem dado às custas da nossa família.
Papai voltou do interior e finalmente pediu o divórcio. Felicitações, bravos e tudo o mais, passamos os últimos dez anos esperando por isso. Mas a mamãe ainda tinha alguma esperança, pobre mulher. Quebrou a casa toda, atirou a prataria histórica na cabeça do pobre homem, que está a salvo em um hotel no centro. Não tem graça nenhuma nisso, e a dor silenciosa de viver grita histérica pela casa. Sei que não parece agradável, mas o que acha de uma visita?
Quanto a tua última carta, pensei muito nela. Não quero sentir ódio ou inveja de ti, afinal você é minha irmã, e é a única que tenho. Mas não me faça acreditar que eu merecia a sua vida, seu marido, seu trabalho, sua casa. Talvez eu fosse mesmo a melhor opção para o Caio, mas o que fazer disso? Não vou tomá-lo de ti, ou esperar que você meta os pés pelas mãos. Há algo em ti que o encantou e não posso lutar com isso. E chego a crer que esse encantamento reside justamente no fato de sermos tão diferentes uma da outra. E seria justo, sensato e delicado da sua parte não me lembrar disso todo o tempo. Não vivo a vida que quero, mas certamente não quero a sua. Afinal, juventude de drogas e roquenrou, aliada à infidelidade com o cunhado não é lá meu estilo.
Amo-te, Marília, sobremaneira. E Caio também. Reclama menos e valoriza mais, não deve ser assim tão difícil.
Mamãe te espera, desesperada.

*

__ Quanta hostilidade na tua última carta.
__ Não começa, Marília. Ninguém aqui precisa do teu jogo.
__ Eu sei. Desculpe.
__ Já esteve com mamãe?
__ Ah, sim. E não me sobra energia para mais nada. Quando você vai para Brasília?
__ Não vou mais. Não posso deixá-la sozinha. É uma grande oportunidade, mas vou ter de esperar pela próxima.
__ Vai tranqüila. Eu fico com ela.
__ E Caio?
__ Ah...acho que Caio não vai se importar se eu não voltar. Não depois da conversa que tivemos.
__ E como devo entender isso?
__ Da maneira correta. Meu casamento acabou.
...
__ Até que demorou muito.
__ Pro inferno, Michele. Vai pro inferno.
__ Dá cá um abraço, criança. Não se morre dessas coisas.

*

Caio não reconsiderou, o que eu já esperava. Agora a vilã Marília pensa em voltar à faculdade, passar um tempo com papai no interior e, quem sabe até, rever o vilão Eduardo. Deus sabe que tipo de resoluções sou capaz de tomar.
Mamãe vai bem, acho que seis meses é tempo suficiente pra começar a aceitar certas coisas tão óbvias. Ela até faz piada com a situação, vê bem: uma divorciada com trinta anos de casamento e outra com três. Formamos uma boa dupla.
Há tempos não recebemos suas cartas. Sei que Brasília te tira vida. Como se sente? Ainda respira?

*

Vilã Marília?
[Risos gargalhantes].
O trabalho me tira vida, mas é exatamente o que eu esperava. A cidade é linda e quente, gosto demais disso. Achei que fosse derreter sem praia, mas nem sinto falta.
O vilão Eduardo está no exterior, não soube? Foi torrar a herança familiar na Europa. Pelo menos ele tem charme.
E já que o assunto é família, o doce Caio vem à Brasília com certa freqüência. Parece-me bem, com saúde, trabalhando bastante. Mesmo sendo jornalista da concorrente, ainda conseguimos almoçar juntos sem maiores problemas de vez em quando.
[Suspiro].
Talvez nenhum de nós esteja pronto pra isso.

*

Eis que me vejo no centro de tudo. E não há ninguém ao redor.
Papai se mudou em definitivo para o interior. Mamãe foi visitar parentes em Minas.
Eu tinha um marido, que tomei de minha irmã, que está prestes a tomá-lo de volta.
Eu tinha um amante, que a essa hora deve estar em meio a uma orgia com algumas francesinhas lascivas.
Meus amigos dos tempos da faculdade sumiram, casaram, esqueceram...enfim.
Vê bem, em carta anterior disse que meu sonho era morrer sozinha. Mas é difícil ter certeza disso agora, sozinha de fato. Não sei por que me mudei pra São Paulo, ela não me é acolhedora em nenhum sentido. Acho que volto pro Rio.
Sei que existe dor em viver. Mas ela não silencia mais. Do contrário, grita enlouquecida pelas lacunas do peito.
Ama o Caio como não amei, e o faz feliz como não o fiz. Eu sei que você pode isso. E sei que estamos todos prontos pra isso também.
Preciso de gente por perto, Michele. Viver só comigo não é a melhor coisa do mundo.
Ah, tia Mariana esteve por aqui dia desses, e fomos à igreja. Sou pouco religiosa. Vi logo que entrei lá. Não sabia da missa a metade. E não pense que dormi de babar. Ouvi tudo o que o padre disse. E tive de tomar um porre depois, pra ver se o desejo de morrer passava.

*
Você disse certa vez que há uma dor silenciosa em viver. É possível que sim. Assim como é possível que haja um prazer inescrutável em sofrer. E penso, querendo estar errada, que você se apega a esse sofrer para que possa sentir essa dor, e concomitantemente, sentir sua própria vida jorrando pelos poros.
Preciso dizer que isso é desnecessário, minha amada irmã? Preciso lembrar a ti que a vida é feita de escolhas, e a única coisa que há de nos restar dela é o usufruto da memória? Espero que não, afinal é o teu discurso, e odeio imaginar tanta inteligência perdida em meio a questionamentos vãos.
Certo, ambas teríamos de concordar que tua vida não tem o céu azul de antes. Mas, apesar de me doer, tenho de dizer: você nublou seu céu. Lembre-se que a vida não faz escolhas por nós.
Esqueça o vilão Eduardo, esqueça a paranóia da mamãe, esqueça a tentativa risível de papai de se tornar um eremita. Volte a se permitir, Marília. Viaje, conheça, conquiste. Depois esqueça, se assim lhe for conveniente. Mas não se prive. Não quero te ver assim engasgada, cara amiga.
E quanto ao doce Caio, deixou um gosto amargo na boca. Preciso urgentemente variar meu paladar.

*

Eis que então Michele há de ser tia? E uma tia fantástica, suponho.
Vilão Eduardo e eu chegamos há pouco de Paris, ele prepara o chá enquanto aqueço a água do banho no inverno londrino. Pois que há muito charme nisso, vê bem: quantas pessoas atravessam o oceano para recuperar um amor que se julgava perdido? Quem recomeça uma história de amor em Paris? Digo recomeçar com uma energia nova no peito, pois já havia um romance. Era só o alvo errado para a pessoa errada. E agradeço a ti e ao doce Caio por isso.
O adorado Eduardo (vê? Até rima!) te manda abraços calorosos. Esteja certa, nossos dias de vilania estão prestes a findar.

*
Pois que há magia em viver. Agradável certeza.
Publico meu livro em dois meses, então volto à casa maternal. Caio não vem mesmo, e nada mais me dói. Aceito a condição. Certa feita você disse que escritores findam por morrerem sozinhos, com medo da morte.
Não é isso. É amor à vida.
Tanto clichê. Quando foi que nos tornamos assim?
Bem, que assim seja. Há uma motivação nova em cada respirar do universo, por isso abro as janelas em par todas as manhãs.
Vai, Marília, viver tua vida empolgante. Pode deixar que eu passo o café.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

"Eu fico triste quando chega o carnaval"

Achei num baú antigo
Uma pilha de fantasias de outrora
De carnavais imemoriáveis

Todas elas tinham o cheiro de lembrança
Da mesma quarta-feira de cinzas