quarta-feira, 30 de maio de 2007

A história das minhas histórias

E tudo foi por água abaixo. Anos de planejamento, investindo tempo e dinheiro para no final das contas acabar em nada. Se bem que, só de não ter ficado louco com o ocorrido já me considero no lucro. Cheguei a ficar paranóico com esse negócio de virar escritor.

Comprei livros e livros para aprender a escrever de maneira simples, direta, clara e ao mesmo tempo envolvente. Passei noites em claro escrevendo, a cabeça fervilhando de idéias, o teclado do computador já todo queimado com marcas de cigarros que eu esquecia acesos enquanto digitava, ou tomava uma dose de uísque vagabundo, ou ia ao banheiro vomitar, ou dormia bêbado em cima da mesa do computador.

No outro dia era sempre a mesma coisa. A mesma sensação de que não tinha sido o suficiente. Sem contar a sensação contraditória de que essa paranóia estava prejudicando o meu trabalho diurno, mas de que era um investimento. Investimento no sonho de me tornar célebre e formador de opinião. No mínimo um nome a ser lembrado pelas gerações futuras. E isso me enchia de forças para no dia seguinte praticar o mesmo ritual: escrever, fumar e beber até dormir sobre a mesa do computador. Mais marcas no teclado.

Por fim consegui terminar meu primeiro romance. Coisa grande de gente pequena. Um senhor romance que, sem diagramação, dava umas quatrocentas páginas. Em 5 anos de trabalho eu tinha quilos de contos e toneladas de poesias. Todos sobre os mais diversos temas. E agora tinha o meu primeiro romance.

Fiquei extremamente feliz ao comprar uma resma de papel para imprimir em casa mesmo e levar para algum amigo ler. Precisava de uma opinião. Imprimi tudo e deixei sobre a mesa. À noite eu levaria para um desses meus amigos metidos a sabichões e despeitados. Ele seria o primeiro a ler. Melhor ter uma crítica desse tipo de gente primeiro, assim nos preparamos para o pior. Dormi o sono dos justos e acabei não alcançando este objetivo.

No meio da manhã recebo um telefonema do síndico do prédio. Meu apartamento havia pegado fogo. Junto com ele queimaram-se os contos, as poesias e o maldito romance. Eu havia esquecido o ferro de passar ligado pela terceira vez. Só que dessa última vez eu havia passado roupa no meio da sala enquanto assistia o jornal da manhã. Queria ver as últimas notícias da cotação do dólar.

Ainda agora quando fecho os olhos imagino a cena: da tábua de passar para o tapete, do tapete para o sofá e para o carpete, do sofá para a cortina e do carpete para a casa toda. Que maravilha. Posso até ver o romance se queimando, e eu nem cheguei a dar um nome a ele coitado.

Como ele nem chegou a ser batizado posso até dizer que mais um pagão morreu queimado. Como bônus da minha tragédia tem ainda o fato de que eu não tinha nenhuma cópia de nada. Todo esse tempo e eu nunca mostrei nada a ninguém.

Agora estou aqui, escrevendo sobre a única história que me vêm a cabeça. A história das minhas histórias.

terça-feira, 29 de maio de 2007

sumi... sumi mesmo... assim ó: puf! desapareci. nem sei se sobrou alguma cosia de mim, mas sumi. a partir do sumiço, a única voz que ouço é a minha. monótono e triste, mas verdade. nem tô ligando mais pro que eu falo, pro que eu canto, pro que eu finjo que sei. porque sumida, finjo que sei tudo de todas as coisas. finjo que sei até fofoca dos seres humanos que conheci antes de sumir. finjo que sei física quântica, todos os mistérios da vida e a acender isqueiro. eu nunca aprendi a acender isqueiro antes de sumida... sumida assim finjo de tudo só pra aparecer!

sexta-feira, 25 de maio de 2007

O fim certo do amor errado

Um novo dia se inicia,
Mais uma agulhada no meu coração.
Minha alma que já padecia
Cada vez mais perde a sua razão.
O desespero, que era uma casualidade,
Passa a se tornar um estado de espírito
Já estou perdendo a sanidade
Graças a este amor maldito.
Todos os sonhos desmoronaram,
Todos os planos ruíram,
Todas as esperanças me abandonaram,
Todas as alegrias partiram.
Uma sombra cada vez maior me abraça
Me cercando a todo momento
Minha vida mudou, se tornou uma desgraça
Sempre regida pela dor do meu sofrimento
Quem me dera decidir o meu destino
Eu o arquitetaria agora
Pediria a Deus, sorrindo,
Que me levasse embora.

Escrito em 31/10/2005

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Fuga

Chuvinha fina, daquelas bem chatas, e eu correndo com uma pressa monstra pra um encontro que eu sabia malfadado desde o começo. Ela já devia estar me esperando há horas, impaciente, respirando fundo, aqueles cacoetes odiosos que ela tinha, mania de estralar os dedos que me enlouquecia. Trac trac trac. Eu odiava aquele estralar de dedos, eu odiava os suspiros de impaciência, eu odiava aquela mulher.

Parei debaixo de uma árvore, contrariando as orientações de não me aproximar de árvores na chuva, e acendi um cigarro. Eu tremia de frio, de frio e expectativa, queria ouvir o que ela tinha a me dizer, qual seria a desculpa da vez. Fumei o cigarro com alguma pressa e voltei a correr, cheguei ao lugar marcado e a vi de longe, também fumando um cigarro e balançando a perna daquele jeito incômodo que ela fazia como ninguém. Me aproximei com cautela, quase como se estivesse prestes a atacar a presa, mas ela nunca era presa, era sempre a predadora, besta fera maldita. Sentei à mesa respingando, o nariz escorrendo, certamente eu a estaria envergonhando, mas ela não olhava pra mim. Sacudi o cabelo com violência e enfim falei:

__ O que você quer?
__ Nada. só te dizer que estou de viagem marcada. É preciso uma movimentação de guerra pra falar com você.
__ Só isso? posso ir?
__ Minha filha, eu pensei se queria vir comigo.
__ Não me chame assim. Nem me peça pra ir contigo.
__ Não te chamar de "minha filha"? Mas você é!
__ Isso não significa que você seja minha mãe.

***
__ Oi, amor.
__ Oi, meu bem. Como foi a conversa?
__ Conversa com quem?
__ Com o papai noel. Claro que com sua mãe, Lígia.
__ Eu não estive com ela.
__ Eu odeio quando você mente pra mim. Ou insulta a minha inteligência. Insulta até a parca inteligência da sua mãe. Você acha que ela não ia me ligar, contando o último capítulo do seu drama? Não seja burra. O que ela queria?
__ Me convidou pra uma viagem. Eu não aceitei, se quer saber.
__ Faça o que quiser. Não me importo mais.
__ O que você quer dizer com isso?
__ Que eu não sou sua mãe.
__ Então você desistiu de mim? Não me ama mais?
__ Eu te amo como mulher. Não como filha. E, ainda te amando como mulher, não posso te impedir de nada. Se quiser voltar pro conforto do seu lar, esteja à vontade, Lígia querida. Não vai ser a primeira vez que você me deixa mesmo.
Bingo. Era o que eu precisava ouvir pra me sentir em paz com minha consciência. Pobre Bárbara. Já a manipulava há alguns anos, mas ela sempre perdoava, ela sempre se deixava ficar, sempre se negaceava por mim. E eu estava prestes a abandoná-la, forçando-a a dizer coisas que me fizessem abandoná-la sem me sentir um monstro por isso.

É muito fácil pra qualquer pessoa fingir que é um ser humano moderninho, desprovido de preconceitos, que usa algodão egípcio, lê Sartre e come comida de coelho. É muito fácil criticar e apontar o dedo inquisidor pra quem critica e aponta o dedo inquisidor, e se dizer libertário ao extremo. Tudo isso é fácil. Difícil é estar do outro lado da fronteira, difícil é ser o alvo dos dedos inquisidores. Difícil é ter um relacionamento com outra mulher e agüentar, serenamente, todas as piadinhas fora de hora, todos os olhares de esguelha, todos os “vocês são o casal mais lindo que já vi” seguidos de um olhar frio e duro de reprovação, porque até mesmo esses moderninhos não perderam o ranço de sua educação cristã e continuam julgando, condenando, estagiando para o Deus malvado deles que pune e castiga.

Repassei mentalmente meus últimos sete anos e vi que, nem de longe, amei Bárbara como ela me amou. Porém isso não me fez sentir que a decisão dessa noite seria menos árdua. Desejo vem e passa. Queria que ela tivesse isso tão claro como eu tenho na minha cabeça, mas ao mesmo tempo penso que isso pode ser só uma desculpa que crio levianamente. Amei Bárbara, verdadeiramente? Talvez. Lutei por ela. Escolhi odiar minha mãe para amar Bárbara. Mas a amei? Ou só a desejei violentamente enquanto meu corpo ainda carecia de desejo? Pensei em E., devia estar arrumando as malas agora. Valia mesmo a pena abandonar essa mulher que me tem há sete anos pra fugir com esse homem que conheço e recebo há apenas alguns meses?

Vá lá. Pode até ser que eu perca esse frio na barriga que sinto diariamente ao lado dela. Pode até ser que eu não freqüente os lugares bacanas, pode ser que eu nunca mais vá a uma ópera, pode até ser que eu tenha filhos e casa e cachorro, o kit completo, antes dos trinta. Vá lá. Mas eu só quero agora “a sorte de um amor tranqüilo”. Eu só quero deitar minha cabeça no travesseiro e dormir o sono solto de quem só ama. Quem sabe dar um descanso pra minha mãe, quem sabe ela dê um descanso pra mim. Quem sabe permitir que Bárbara se permita com outra pessoa, e seja feliz com alguém que queira ser feliz ao lado dela. Covarde? Que seja. O que eu quero não é aventura, desejo, loucura. Quero serenidade.

Passava das cinco da manhã e ainda chovia quando abri cuidadosamente a porta pra não escapar nenhum ruído. Nenhum bilhete. Nenhum abraço ou beijo de despedida. Nenhuma roupa esquecida no armário. Nem meu cheiro quis deixar pra ela. Apenas saí, tranquei a porta, passando a chave de volta para dentro por baixo da porta, pra que eu não tivesse desculpa alguma pra voltar. Lá fora o vento cortava, E. já me esperava no carro, esfregando as mãos umas nas outras pra tentar aquecer. Frio na barriga. Não era medo, nem expectativa. Era só um filho. Um filho que eu já tinha.

Um último olhar pra janela dela. Um último aceno. E, se tudo der certo, minha última fuga.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Monólogo

Antes de você sair deixa só eu te dizer umas coisinhas, bobagenzinhas à toa, mas que preciso dizer antes que você feche a porta, para que depois você não precise voltar ou para que eu não precise te procurar [não que isso vá acontecer, é claro]. É só que, apesar de tudo, eu amei você incondicionalmente. Não, não precisa me olhar assim, eu sei que nos expulsamos da vida um do outro e não há mais retorno. Mas eu te amei sem medidas. E vou sentir falta de você sapateando com o meu juízo, fazendo do meu coração o seu brinquedo favorito. É verdade, sim. Tudo bem se você não acreditar, eu pesei tudo na balança e assumo a parcela mais salgada de culpa. Não, não é demagogia, me deixe ao menos terminar, eu quero poder acertar ao menos agora. Assumo o erro agora na sua frente e na frente de quem mais quiser ouvir. Mas isso jamais mudará o fato de que teu cheiro fez casa em mim, e tampouco pretendo me livrar dele como você está a se livrar de mim assim, com tamanha facilidade e desapego. Deixa eu te dizer que nunca mais vou dormir sozinha, porque você vai continuar a dormir comigo por noites e noites a fio. Não, não é mais uma historinha minha, não choro para angariar tua piedade, não precisamos disso, no fim das contas. Só preciso te fazer ciente de que não terminou pra mim, esse amor devia ter durado anos e eu ainda acredito nisso, muito embora tenha a certeza de que você jamais vai me tocar de novo. Deixa só eu te pedir para me cumprimentar se a gente se esbarrar por aí, um olhar, um aceno de cabeça, um esboço de sorriso. Não precisa me julgar pelo que fiz, já recebi condenação. Mas também não precisa fingir que nunca me amou, assim desse jeito que você tenta fazer agora, afinal eu conheço todos os teus caminhos. Ah, como pude esquecer? Deixa eu te avisar que essa porta nunca estará trancada, e as janelas permanecerão abertas de par em par, e essa persiana verde vai espiar as ruas todos os dias, de manhã bem cedinho, esperando você voltar. E você sabe, isso eu não preciso dizer, você sabe que pode voltar a qualquer hora, mesmo que não seja para sempre naquela eternidade de momentos que costumávamos forjar. Você ainda tem meu telefone, não tem? A gente pode só conversar. Por favor, não dê as costas pra mim, espera só mais um pouco. Não esqueça de avisar pra próxima garota que você gosta de capuccino forte, que dorme de meias brancas e limpas quando chove ou faz frio, pede pra ela tirar o pó da sua casa todos os dias, cuida dessa sua alergia. E avisa, antes de tudo, que você não quer ser pai, não vai decepcionar a menina quando ela já puder odiá-lo. Anda sempre com um casaco na mochila, ninguém sabe quando vai chover. Incrível como continuo a tomar conta de ti, não acha? Não esqueça o aniversário dela, ou o aniversário de namoro, faça com que ela se sinta a mulher mais amada do mundo todos os dias. Do jeito que você fazia comigo. Do que você está rindo? Você fazia isso, não se lembra? Costumava deixar bilhetes pela casa, ou uma orquídea na minha mesa de trabalho sem motivo aparente, só porque me amava muito. Ainda tenho uns bilhetes guardados, olha que coisa. Tenho todos guardados, na verdade. Do primeiro ao último, uns cinco anos de história que vão para um baú. O que foi que eu fiz da gente, por Deus do céu? Como pude me forçar a me lanhar sem ti? Como pude te forçar a me deixar assim, feito nau à deriva? Não, não te preocupes, não vou chorar mais. É certo que vai doer, de uma dor diária e sem tamanho, mas a gente sobrevive, não se morre mais dessas coisas. E talvez eu não me acostume ao silêncio angustiante que produz o som de uma casa vazia de ti, mas posso colocar nossa música sempre que for preciso. Lembra dela, né? Você cantou pra mim depois daquele show, o bar vazio, não consigo tirar o retrato daquela noite da minha cabeça. Também acho que você não vai esquecer, mas parece presunçoso dizer isso, por ora devo silenciar meus pensamentos e deixar você ir. Desculpa, não dá, parece que vem tudo contra mim, em ondas, e nada conspira. Por Deus, não consigo me calar. Deixa eu te dizer que eu ainda te amo, muito mesmo, talvez agora mais do que sempre, e não é por estar te perdendo, é por saber que é irremediável. Deixa eu te pedir perdão por tudo e por isso, será que você consegue me olhar sem me odiar? Será que você pode amenizar esse peso, só um pouquinho assim, pra ver se eu consigo respirar? Isso, senta aqui do meu lado assim, não me deixa morrer agora, não sem antes saber que você me perdoa. Me perdoa então? Ah, que bom, isso muda um pouco a perspectiva. Acho que você já pode ir agora, agora que já falei tudo e você ouviu direitinho. Ou pode ficar, se quiser, claro, ia me fazer muito feliz. Você não quer ir agora? Não? Então fica aqui, fica assim, fica mais, fica pra sempre se não for incômodo. Quer me dizer alguma coisa, falei feito doida, não te dei espaço pra nada. Quer tentar mais uma vez? Só uma mísera vez, assim? Juro que te deixo ir quando quiser. Posso ficar perto de ti assim, só pra sentir teu calor? Tá frio, faz tanto frio hoje, deita aqui, assim, do teu lado da cama. Deixa eu ficar do teu lado pra sempre, deixa? Tudo bem, agora estou eufórica, deixa eu ir até ali apagar a luz.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Vitórias no casamento

- Vamos?
- Calma, deixa terminar o jornal.
- Ah, não. Toda vez é isso.
- É... toda vez é isso. Você me chama pra fazer alguma coisa na hora do jornal, eu digo "Tudo bem, deixa terminar o jornal". Você se arruma e fica me apressando! Espera aí, agora.
- Seu grosso.

Resolveu ignorar. Aprendera finalmente a melhor maneira de acabar com uma briga: calar-se. Deixá-la gastar toda sua munição oral e simplesmente ignorá-la. Às vezes ela parecia notar e enchia-se de ar para começar um segundo round.

- Alô? Você está me escutando? Você está ouvindo o que eu estou falando com você?

Também aprendera como superar esta nova etapa de uma discussão.

- Tá bom.
- Tá bom o quê?
- É, eu acho que você está certa.
- É? Mas por quê?
- Porque você tem razão. Acho que estou errado mesmo.

Simples assim. Era tudo o que elas queriam: razão. Acreditar que alguém as ouve e se importa com seus problemas pessoais como a amiga que não teve tempo (ou não quis) ouvir suas lamúrias ou aquela perua invejosa do trabalho que comprou um perfume igual ao seu. Os problemas femininos tornariam o planeta Terra em algo cor de rosa com cheiro de lírios. Talvez devessemos dar mesmo razão a elas, mas não somente razão, também poder, decisões e as contas de casa. Assim quem sabe veríamos a Terceira Guerra Mundial acontecer porque a primeira ministra alemã copiou o penteado da moderníssima e chiquetérrima presidente americana. A bomba atômica seria feita de purpurina enriquecida.

O jornal acabou, era hora de se levantar e enfrentar o terrível momento de companhia. Como a solidão lhe era solidária. Sentia muitas saudades disso. Tomou banho e se arrumou.

- Pronto?
- Pronto.
- Ah... agora eu perdi a vontade de ir.
- Acorda pra vida, minha filha. Decide o que você quer, eu podia estar assistindo o Discovery agora.
- Às vezes eu me pergunto porque estamos casados.

"Essa é uma pergunta que eu sempre me faço!", pensou. Mas resolveu calar-se, o alarme da discussão soara. Decidiu ir ao banheiro para quebrar o clima. Entrou, urinou e ao sair dirigiu-se diretamente ao chaveiro pendurado na parede. As chaves do carro seriam as chaves do paraíso, a discussão não ocorreria.

- Ei, não vai me esperar não?
- Então vamos, eu já te chamei.

Saíram, entraram no carro e dirigiram-se para o mercado. O momento mágico da dominação feminina. Poucas vezes precisou intervir nas compras de casa. Isso sempre quando o orçamento estava apertado, o que, infelizmente, era o caso desta vez.

Arroz... feijão... carne... macarrão... produtos de limpeza... essa era a parte perigosa, quase tão perigosa quanto a sessão de produtos de beleza. Toda mulher adora pensar que sua casa é uma fortaleza contra as bactérias, não é à tôa que quase todos os produtos de limpeza são bactericidas. Recentemente enquanto estava reinando absoluto no banheiro decidiu ler o rótulo do Bom Ar (ele sempre lia alguma coisa): "O produto em contato com a superfície inibe o crescimento das bactérias *Staphylococus aureus *Salmonella cholerausuis * Tricophyton mentagrophytes". "Talvez os produtos de beleza femininos também sejam bactericidas.", e achou graça da ingenuidade feminina.

Ela pegou uma embalagem de um produto verde com cores chamativas. Era um alvejante de segunda categoria que contratara um bom designer para desenhar a embalagem. O preço era bom, bem abaixo do preço do produto mais badalado do mercado e fazia a mesma coisa. Ela sabia que tinham restrições orçamentárias este mês, e ele sabia que ela iria querer levar o produto mais caro. Resolveu a estratégia de sempre.

- Não, querida, vamos levar este aqui. - disse mostrando o produto mais caro.
- Mas este é mais caro, você sabe que estamos sem dinheiro e agora quer gastar à tôa.
- Eu não perguntei se é mais caro, eu estou falando para levarmos este aqui!
- Seu ignorante! Grosso! Será que nada do que eu escolho serve pra você?

Conseguira o objetivo. Agora ela iria querer contráriá-lo. Bastava ignorar sua diarréia verbal, aquele mesmo discurso chato de sempre. Ignorá-la até ela se irritar.

- Você está me entendendo?
- Tudo bem então, você tem razão. Vamos levar esse daí.
- Você nunca me escuta!
- Estou escutando agora. Você está certa, vamos levar este.
- Se você tivesse me ouvido desde o começo a gente não estaria discutindo.
- Tudo bem, amor. Agora vamos.

Ela pôs o alvejante vagabundo no carrinho e continuaram a fazer as compras. A técnica seria aplicada mais algumas vezes e eles iriam embora felizes, ambos vitoriosos a seu modo.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

E ela me obrigava a ler aqueles poemas grotescos, horrorosamente mal escritos, cheios de futilidades, banalidades, irrisórias causalidades circunstaciais as quais não eram extraordinárias para serem escritas, eternizadas, transformadas em versos e rimas.

E ela me obrigava a ler! E eu olhava com meu jeito desdenhoso. Não sorria. Não xingava. Não movia um músculo a favor ou contra. Era um crime escrever daquele jeito. Era um crime gastar papel, tinta, pele, cognição para tamanha desgraça.

E ela me perguntava: tá, tio! diz logo o que achou! E eu não sorria, não falava, não queria. Eu apenas entregava os papéis, afagava sua cabeça, e saía. Tal qual faria qualquer um que ainda por cima escrevesse pior do que ela.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Dudi e o chá

Dudi era um cara legal. Legal mesmo. Desses que a gente conhece a vida inteira, tipo um vizinho que empresta açúcar e não cobra, ou um colega de trabalho que não te manda correntes via e-mail, ou ainda aquele tio que mora longe e a gente só vê no natal. Dudi estudava administração, morava com os pais, não usava drogas [lícitas ou ilícitas], estagiava em uma empresa prestadora de serviços e tinha um amigo de infância com quem jogava futebol de botão.

Ele não era necessariamente virgem, mas ainda não tinha feito sexo com nenhuma universitária [não sei bem o porquê, mas aparentemente a universidade é um período de atividade sexual intensa – e de estudos também, claro]. O amigo do futebol de botão tinha dito a ele que as universitárias eram experientes e dispostas a tudo, e Dudi lembrou com um peso no estômago dos carinhos afobados que recebia da namorada no colegial. Queria uma noite de sexo selvagem, se possível com duas ou mais universitárias, pra se sentir menos fracassado.

E tinha aquelas festas para as quais ele nunca era convidado, e aconteceu de o convidarem para uma. Ele sempre ouvia falar que tais festas eram regadas a álcool, drogas e sexo, e nunca esteve tão empolgado. Nem quando foi consultor junior da empresa do colégio. Ficou meio deslocado no começo, não viu nenhuma menina, quis ligar para o pai pra que ele fosse buscá-lo, até que alguém finalmente se aproximou dele e puxou assunto.

__ Você é calouro?
__ Não, já estou no quinto período. E você?
__ Nunca vou me formar. Não há vida após a universidade.
__ Hum.
__ Quer um chá?
__ Chá? Chá de quê? Achei que vocês bebessem cerveja.
__ É chá de cevada, dá na mesma, até mais saudável. Bebe aí.
__ Acho que não vou aceitar, muito obrigado.
__ Deixa de ser fresco. Bebe isso logo.

E Dudi bebeu o tal chá de cevada. Tinha um gosto horrível e uma cor de embrulhar o estômago, mas ele bebeu. Bebeu pra se sentir mais universitário. Bebeu pra se sentir homem, como aquele cidadão que falara com ele espontaneamente.

Pouco a pouco Dudi foi mudando, sentindo várias coisas ao mesmo tempo. Inicialmente ficou assustado, mas as percepções sensoriais dele indicavam que tinha algo novo e bom acontecendo. De repente ele quis cumprimentar a todos, de repente ele gostava da música que tocava, e podia sentir cada instrumento ritmado com os movimentos de seu próprio corpo. Se aproximou de uma garota que aparecera do nada e perguntou se ela também bebeu o tal chá.

__ Chá de cogumelo? Eu não, é nojento.
__ Não, eu falo do chá de cevada.
__ Não é chá de cevada, calouro. É chá de cogumelo.

Dudi lembrou-se com certa dificuldade das aulas sobre drogas alucinógenas que tinha com o pai, delegado da polícia civil. E sabia que chá de cogumelo não era coisa boa. A menina olhou pra ele com pena e o encaminhou até um quarto. Deitou Dudi na cama e foi atrás de água para ele.

__ Toma, calouro.
__ Não sou calouro. Sou um xamã.
__ Eu sei. Agora bebe a água.
__ E como vou saber se é água de verdade?
__ Bebendo, xamã.
__ Você me acha um idiota.
__ Cala a boca e bebe logo. Vai demorar a passar. Mas vai ser bom. Eu não bebo, mas meus amigos bebem e acham o máximo.
__ Você quer fazer sexo comigo? Eu nunca fiz sexo com uma universitária.
__ Você já fez sexo com alguém?
__ Já. Mas faz tempo. E ela não era universitária.
__ E qual é o lance com as universitárias?
__ Elas são quentes.
__ Ah. E como você sabe, se nunca fez sexo com uma?
__ Meu melhor amigo disse. Ele também é um xamã. E já fez sexo com um monte delas. Quero dizer, de vocês.
__ Tá bom. Fica um tempinho aí, já volto pra gente fazer sexo.

Dudi permaneceu deitado, olhando para o teto, sentindo-se capaz de tudo aquela noite. Pouco depois a menina voltou para o quarto, tirou a roupa e se deitou ao lado dele. Conversaram sobre o sistema solar, horóscopo e Ângela Rorô.

__ Quando a gente vai fazer sexo?
__ Já fizemos sexo. Acho que três vezes.
__ Você também tomou chá?
__ Não. Só fumo maconha.
__ Ah. Posso te ver nua?
__ Já estou nua.
__ Eu sei. Mas eu posso ver?
__ Pode.

Dudi olhou e nunca viu tanto pêlo pubiano na vida. A menina não devia ter feito uma única depilação.

__ Você não se depila?
__ Não. Por quê? Você não gosta?
__ Não faz diferença. Mas por que você não se depila?
__ Dá trabalho. Você já se depilou?
__ Não. Mas eu imagino. Deve dar trabalho mesmo.
__ Dá. Dá muito trabalho.

Dudi fixou o teto, mas a toda hora desviava o olhar para os pelos pubianos da menina que ele sequer sabia o nome. Aquilo o intrigara. Devia haver alguma forma de otimizar a depilação, para que não desse tanto trabalho para as meninas, e para que os rapazes não tivessem que se deparar com aquela visão minimamente grotesca. Porque Dudi não achou nada poético aquela profusão de pelo pubiano entre as belas pernas da moça.

O efeito do chá não passava nunca. Ele continuava se sentindo um xamã, e sabia que podia resolver o problema da sua nova amiga. Levantou-se com alguma dificuldade e foi até o banheiro. Pra conversar consigo mesmo.

__ Fala, Dudão.
__ Só meu pai me chama assim.
__ Pois é. Faz de conta que sou teu pai e ouve. Eu sei que você tá querendo arranjar uma solução pra isso aí. Isso aí que você viu e não gostou.
__ É feio. E anti-higiênico.
__ Então. Pensa num jeito. Eu tenho um jeito, quer ouvir?
__ Quero. Me conta aí.
__ Mas você tem que fazer tudo que eu disser, Dudão. Do jeitinho que eu disser.

Dudi saiu do banheiro horas depois com uma idéia completamente revolucionária na cabeça. Nem se preocupou com o fato de seu pai ter percebido que ele tomara o tal chá de cogumelo. Nem se preocupou por ter voltado ao quarto e sua colega não estar mais lá, e sim ter dois caras vomitando na cama que ele estivera deitado. Nada mais o preocupava. Dudi tinha encontrado uma solução.

Saiu da faculdade, montou seu negócio, ficou rico e fez sexo com todo tipo de mulher.

Dudi, o cara legal, criou o conceito de fast-depil enquanto estava sob o efeito do chá de cogumelo. Era simples. Tempos modernos. Uma funcionária depila, a outra higieniza e uma última hidrata. Tudo em quinze minutos, modo de produção industrial. Dudi conquistou o mundo com sua cadeia de depilação. E ainda servia cafezinho de graça. Ou chá, caso preferisse.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Brincadeira do copo

Certo dia vou à casa de um amigo, tomo umas cervejas, falo sobre coisas diversas. Alguém acende um baseado por perto, não fumo, mas também não me incomodo, cada um faz a cabeça do seu jeito. Então do nada algum idiota resolve se aproveitar da situação para se divertir. Todo mundo doidão e um maldito filho-da-puta inventa de contar histórias assustadoras e fazer a brincadeira do copo. Almas, fantasmas, espíritos, etc... o de sempre.

Seria mais uma noite normal como todas as outras, um monte de adolescentes fodidos e sem dinheiro na casa de alguém enchendo a cara, ficando doidões e fazendo a brincadeira do copo. Sim, seria só mais uma noite até aquela cadeira maldita começar a se mexer sozinha. Até a porta do quarto começar a tremer. Todos rindo ao mesmo tempo, menos eu. Eu não fumei aquela desgraça, eu sabia que estava tudo acontecendo DE VERDADE.

Eu tentei avisar, todos riram da minha cara, aquele deve ter sido o cigarro de maconha mais bem feito da história. Me levantei comecei a puxar o primeiro que vi por perto para se levantar e empurra-lo porta afora. Estavam todos gargalhando a esta altura, os corpos moles como minhocas. Foi quando o meu copo de vinho estourou em cima da mesa. Eu corri para a porta. O ventilador de teto caiu na cabeça do dono da casa, a porta bateu e estourou meu nariz. SÓ ENTÃO ELES SE TOCARAM DA GRAVIDADE DA SITUAÇÃO, e começaram a gritar.
Quanto a mim iniciei a maior corrida da minha vida. As portas batiam e as janelas estouravam ao meu redor, por toda a casa.

Eu corro para a porta dos fundos, a que dá para o quintal. Enquanto isso as luzes começam a falhar pela casa. Chegando na área de serviço a porta dos fundos está trancada. Eu ouço meus amigos gritando no quarto, por incrível que pareça eu considero isso um bom sinal, nunca vi um morto gritando, na verdade talvez o primeiro morto que eu tenha visto na vida pode ter sido produzido a menos de um minuto na minha frente.

Dou um chute na porta, e caio para trás. As janelas começam a estourar. Me levanto, dou outro chute e caio novamente, o portal começa a ceder, meus amigos gritam. Ouço a televisão ligando sozinha e desligando em seguida, ergo-me como um raio e chuto a porta que finalmente se abre. E pensar que nós ríamos do pai do dono porque ele tinha colocado a porta ao contrário.

Ganho o quintal, pulo o muro e caio no quintal vizinho. Saio correndo por entre as roupas dependuradas no varal, fico preso em um lençol, começo a lutar contra o nada, o lençol me abraça ainda mais. Então saio correndo e gritando e derrubando o varal e as roupas, por fim consigo me libertar, chego à frente da casa, pulo o muro e começo a descer a rua. Correndo rápido como uma bala... volta e meia olho para trás.

Eu desço a rua correndo como se tivesse todos os diabos do mundo nos meus calcanhares. Olho para trás e não vejo nada, nenhum sinal de vida, não sei se é o caso de me sentir aliviado ou de me apavorar ainda mais. De repente acho graça disso tudo, deve ser nesses momentos que a gente se dá conta da loucura que é a vida ou de que somos todos loucos.

Viro a esquina e encontro um posto de gasolina aberto lá adiante. Chegando perto, já exausto, diminuo o passo e entro na loja de conveniência, o atendente fica me olhando com uma cara esquisita. É aí então que eu me dou conta de que meu nariz está jorrando sangue, como se fosse uma torneira. Me apresso em pegar uns guardanapos de papel e tampar as narinas.

- Tu tá bem, cara.
- Tô sim.
- Que foi isso? Assalto?
- Uma brincadeira de mau gosto.
- Que brincadeira?
- Deixa pra lá. Me dá um cigarro aí.
- Qual?
- Qualquer um, eu PRECISO fumar.
- Toma, fica por minha conta, tu tá mal cara.
- Fogo...
- Aqui...
- AAAAAH GLÓRIA! Eu precisava disso. Valeu...
- De nada.
- Telefone?
- Quebrado.
- Merda...
- Meu celular tá funcionando quer que eu chame a polícia?
- Faz o seguinte, amigo...
- Hum...
- Me deixa quieto aqui um pouquinho, minha noite foi uma merda.
- OK.

Ele entra em uma porta atrás do balcão e me deixa sozinho, fumando meu cigarro. Posso ouvir o zumbido da televisão ligada. Esta foi uma noite dos diabos, literalmente. Se eu contar ninguém vai acreditar.

terça-feira, 8 de maio de 2007

Anódino Adendo Misantropo

morar com os outros, ter visitas, enfim, viver em uma sociedade comunitária é ter sua pasta de dente desorganizada pelo apertão no meio de seu conviva desatencioso...

sábado, 5 de maio de 2007

Desesperança

Chovia torrencialmente. Ele parecia não se importar com o fato. Apenas caminhava calmamente pela chuva, como se estivesse passeando pelo parque em uma bela manhã de domingo. Estava à procura de um lugar qualquer onde pudesse se sentar e beber sossegadamente. Queria beber para esquecer o passado que o assombrava durante a lucidez da sobriedade.

Podia ver aquela tez que um dia fora tão delicada quanto a casca de um pêssego e que depois havia se tornado enrugada, ressecada e sem vida. Os lábios, outrora vivos e ardentes, tornaram-se ao mesmo tempo de um pálido sem vida e um roxo cor de morte. Ao se lembrar de como ela era bela, ele estancou na rua. Um verdadeiro dilúvio caia sobre sua cabeça. Se não estivesse chovendo seria possível ver as lágrimas que seus olhos vertiam, manifestação de seu coração destroçado pela saudade. Em alguns casos a saudade faz bem e inspira, em outros ela destrói uma pessoa, como se fosse uma onda na praia que vem com toda força e naturalidade fazendo ruir os castelos de areia.

Retornou à realidade e continuo caminhando, procurando um bar aberto. Já havia passado por três, mas ele queria um que fosse silencioso. Nada de som ambiente, nada de televisão, nada de conversas paralelas. Somente ele, a embriaguez e o silencioso som do esquecimento.

Encontrou finalmente um barzinho aberto que atendia às suas necessidades. Era um bar aparentemente bem família, e estava vazio. Ao chegar dirigiu-se ao dono sentado atrás do balcão e pediu uma dose de cachaça. Enquanto esperava ouvia a chuva desabando raivosa na rua, o som das gotas nas telhas de zinco do puxadinho do boteco e a água que descia das calhas das proximidades.

O dono deu-lhe a dose pedida, e ele pagou. Pegou o copo e sentou-se no fundo do bar, próximo aos sanitários, virado para a parede. As lembranças recomeçavam a surgir. Lembrava-se da última viagem que fizeram juntos para a praia. Meses de planejamento, outros tantos juntando dinheiro para a viagem tão desejada: lua-de-mel em uma praia o mais deserta e paradisíaca possível. Conseguiram juntar o dinheiro necessário e viajaram. Choveu tempestuosamente todos os dias, uma chuva parecida como a que caia agora.

Ele olhava fixamente a parede à sua frente, cheia de rabiscos e sujeira. Por mais vidrado que parecesse seu olhar ele não estava alheio à realidade. Ouvia à chuva, e chorava silenciosamente. Um choro imperceptível para quem o via de costas. As lágrimas simplesmente rolavam pelo rosto, sem emitir nenhum som. Sua dor era silenciosa e privativa.

Levantou-se, sem tocar no copo, foi ao balcão e pediu a garrafa toda ao dono do local. Pagou e retornou à mesa, na mesma posição em que estava. Sentou-se e começou a tomar a cachaça. Três copos seguidos. Ao perceber que as lembranças começavam a afogar-se no álcool, resolveu degustar o quarto copo. Agora permanecia somente uma pergunta: "por que ela"? A mesma pergunta de sempre, a única que nunca ia embora e que nunca era respondida. Talvez fosse essa pergunta que lhe causasse tantas lágrimas e tanto desgosto, ou ainda a causa de tanto sofrimento fosse a ausência de uma resposta lógica para ela. O peito ardia, o fôlego faltava, aquele nó na garganta nunca se desatava e as lágrimas desciam; silenciosas e cristalinas.

O amor que morre naturalmente merece as lágrimas da saudade, e da tristeza por ter se acabado. O amor que morre abruptamente arranca do peito as lágrimas pelas infinitas possibilidades dizimadas, pelo amanhã que nunca chegará, pela saudade que nunca há de cessar porque não houve um obstáculo que tornasse aquele amor, que era um mar de rosas, em um fardo a ser carregado por um caminho de espinhos.

Câncer. Em estágio avançado. Quimioterapia, sofrimento, dor e mais quimioterapia. Durante o tratamento a semente do sofrimento havia sido plantada junto com a semente da esperança em seu coração, e cada qual deveria ser devidamente regada para se desenvolver. A semente do sofrimento havia sido regada com morte, e germinara. A semente da esperança não tinha esperanças.

"Etliches fiel unter die Dornen; und die Dornen wuchsen auf und erstickten's".
Matthöus 13:7

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Profissional

Sexta-feira, 17:49h. Começo a preparar a mesa para encerrar o expediente da semana. Este é na verdade um ritual que consiste em retirar da minha mesa embalagens e restos de comida que eu adotei após ser espezinhado numa segunda-feira porque meu chefe "encontrou" a minha mesa infestada de baratas. A empresa é limpa e organizada, não existiam baratas em nenhum outro lugar, somente na minha mesa. O problema maior não eram as baratas, já que quando eu chegava para trabalhar elas se escondiam. O maior problema das minhas baratas eram os colegas de trabalho, eles chegavam antes de mim e as viam passeando em minha mesa. Comecei a receber olhares de reprovação, alguns até de repúdia, e eu me orgulhava disso. A festa acabou quando meu chefe "viu" as baratas em minha mesa. Ele diz que viu, mas eu acredito que eu tenha sido dedurado pelos meus colegas.

Percebe-se que eu não sou um sujeito muito querido. Na verdade eu sou como a morte em meu ambiente de trabalho, quando eu chego as pessoas se calam, quando vou embora elas sorriem. Ninguém gosta de mim, somente os loucos, como o cara do almoxarifado. Ele tem uns parafusos a menos e gosta de mim. Resumindo eu sou completamente indesejado, porém absolutamente necessário. Sei disso porque já fui demitido e uma semana depois eles me procuraram desesperados precisando dos meus serviços, foi uma excelente oportunidade para dobrar o meu salário.

Às 17:57h o telefone toca.

- Suporte, boa tarde.
- Quem fala?
- É o Klaus.
- Ah... Klaus... er... tudo bem?
- Ahan...
- Olha, desculpa incomodar nesse horário. Eu sei que está quase na hora de ir embora, e...
- Fala logo, palerma. Se você ligou foi pra alguma coisa, diga logo o que é.
- O sistema de cadastro de clientes...
- Quê que tem?
- Ele está dando problema.
- Não, ele não está dando problema. Eu cuido dele há três anos e todos os chamados que eu recebi até hoje eram culpa do usuário ou defeito de equipamento.
- Mas eu estou fazendo tudo certinho.
- É o que todos dizem.
- Vem cá, você não quer me ajudar, não? É isso?
- Você quer uma resposta sincera ou quer uma resposta agradável?
- Agradável, por favor.
- Não.
- Sei... e se eu pedisse uma resposta sincera?
- Você iria reclamar à chefia.
- Imagino.
- Anda logo que eu não tenho o final de semana inteiro pra ficar papeando com você pelo telefone. O que você quer é urgente, ou posso resolver segunda-feira?
- Pode ser segunda.
- Se pode ser segunda por quê você ligou na sexta-feira às 18:00h?
- Porque eu achei que...
- O problema do usuário é achar as coisas. Usuário ACHA que pensa.
- ...
- Segunda-feira você liga novamente, vou mandar um estagiário aí.

Desliguei o telefone. Nada como ensinar ao usuário quem é que manda no pedaço. Talvez eu escreva um livro: como ser importante humilhando seus colaboradores. Quem sabe eu alcance o status de Maquiavel com seu "O Príncipe". Sempre criticado, porém seguido à risca por aqueles que o criticam. Arrumo a mesa, acendo um cigarro (com o departamento vazio eu faço o que eu quiser) e fico por ali acessando pornografia na internet.

O telefone toca. Deve ser o chefe do último rato que me ligou. Com certeza isso vai ser legal.

- Suporte, boa tarde.
- Klaus?
- Sim.
- Você por acaso sabe com quem está falando?
- Não faço a menor idéia, e também não me interessa.
- Ótimo. Estou ligando para avisar que fui ao estacionamento e dei um trato no seu carro.
- Seu, merdinha! Eu tenho acesso às gravações das câmeras de segurança a hora que eu quiser.
- Tente a sorte, palhaço.

Desligou o telefone. Eu apago o cigarro, desligo os computadores, subo as escadas e corro o mais rápido possível até o estacionamento. Meu carro continua no mesmo lugar e do mesmo jeito, aparentemente intocado. Dou uma volta ao seu redor, todos os pneus cheios, nenhum prego por perto. Olho o escapamento, nada entupindo-o. Saio de perto, me escondo e fico olhando procurando saber se o merdinha está por perto para ver sua obra. Aguardo uns 10 minutos. Deve ter sido um blefe.

Me aproximo do carro, retiro a chave do bolso e quando enfio a mão na maçaneta sinto uma coisa viscosa. Merda! Literalmente...