quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Baixo Rio

__ Mas olhar pra você é muito mais fácil que olhar pra mim. Porque o máximo que sei de mim é o que o nível de normalidade permite. E esse nível tem estado bem baixo. Por isso eu digo, é mais fácil olhar pra você e te conhecer inteirinho, saber que gesto você faz quando sente que vai chover, saber que sorriso você dá quando vê alguma notícia ruim envolvendo os Estados Unidos na TV. Conhecer seus segredos de frente e de reverso, porque eu vejo você. Mas não vejo a mim. E ver a mim é difícil, é quase impossível. Não porque eu seja um mistério a ser decifrado. É porque só tenho ao espelho, e espelhos sempre mentem.
__ Então essa é a sua desculpa?
__ Não é desculpa. Mas que caralho. Tou sendo honesta contigo. Eu acho.
__ E como você sabe que isso é ser honesta se você não conhece seus conceitos? Se, como você mesma diz, não pode olhar pra si?
__ Não faz isso. Sabe, é feio. Pegar minhas palavras e transformá-las numa navalha, e apontar essa navalha afiada pra mim.
__ Mas você não disse isso, Clara, minha querida? Não disse que não consegue olhar pra si, que tem facilidade de conhecer qualquer defeito meu mas não consegue assumir as merdas que você faz?
__ Paulo, eu não sei! Me diz se você consegue se definir com clareza, então. Me diz se você consegue falar mais de mim ou de você. Bora. Quero ver você tentar. Vai ser prazeroso.
__ Não seja idiota.
__ Não estou sendo. Tou fazendo o que você faz. Pegando suas palavras e afiando e apontando pra você pra ver você se cortar e sangrar. Até morrer.
__ Você é uma escrota.

Ele saiu. Foi pegar fumo, algo nesse sentido. Fiquei sentada na frente do computador tentando dar seguimento ao trabalho, não consegui. Outono no Rio e eu trancada em casa depois de discutir com meu namorado, que saiu pra pegar maconha, a maconha que eu nem vou fumar porque tou me entupindo de remédios pra ver se sinto menos as coisas. E meu terapeuta cerebral (haha!) foi pra uma conferência na Europa e não deve voltar antes do meu suicídio.

O sol se pôs e ele não voltou. Fiz uma dúzia de telefonemas, todos em vão, e desci pra Lapa. Liguei pro meu editor e pedi pra dar uma esticada no meu prazo, ele reclamou horrores, mas aceitou, eu sabia que ele me amava. Encontrei com o pessoal de sempre no Arco Íris e rodamos os bares, eles bêbados e eu sóbria, contemplando tudo aquilo, tão imersa em mim mesma que nem me incomodei por não estar bebendo. Só a latinha vermelha na mão, o líquido negro gelado queimando a garganta e o estômago. E perguntei pra Júlia, aquele ser humano sem noção, se ela concordava com os termos da conversa que tive com o Paulo. Ela sorriu, ébria, e disse que dela sabia muito pouco, mas que sabia mais de qualquer um outro. Porque, como eu havia dito, sentar a bunda e olhar pra qualquer um é muito mais fácil que parar na frente do espelho e aceitar o que aquele filadaputa desqualificado costumava dizer pra gente de vez em quando, aquelas coisas que vinham feito ponta de lança e causavam estragos irreparáveis em corações como os nossos, o meu e o dela, sentimentais ao extremo. Sorri, ciente da vitória, mesmo sabendo que o Paulo jamais aceitaria o discurso da Júlia como válido. O importante era saber que alguém pensava o que eu pensava, e em voz alta, e nada havia de invalidar aquele depoimento. Ele ligou, a voz tão áspera que cortou meus tímpanos.

__ Onde diabos você está?
__ Na Lapa, com o povo.
__ Clara, pelo amor de Deus, temos que terminar um livro. Temos que terminar um livro, você tem noção disso? Estamos sem dinheiro, se não entregarmos a porra do livro vamos ficar sem ter o que comer.
__ O editor esticou o prazo.
__ Foda-se o prazo, tou falando de dinheiro. Precisamos entregar o livro, precisamos receber. Eu preciso de dinheiro.
__ Não tá dando pra escrever. Não tá saindo.
__ Você é escritora ou não é?
__ Ser escritora não é ser bancária, seu boçal. Você é escritor e devia saber disso.
__ E também sou responsável, tenho contas a pagar, se não der pra escrever eu me viro.
__ Tudo bem. Tou indo pra casa. Mas se sair uma merda, nem adianta reclamar comigo.

Peguei um taxi e pedi pra ir pela Atlântica. Parei perto do Drummond, fiz minha prece e de lá fui caminhando. Cheguei em Ipanema consideravelmente rápido, comprei um café no Garota e fui pra casa. Paulo estava na frente do computador dele, absurdamente concentrado em algo, pornografia, só pode ser.

__ A noite tá linda. O trânsito tá tranquilo, deu até pra vir andando do Drummond pra cá.
__ Senta aí. Tou com umas idéias, queria te falar um pouco.

Estávamos no fim do romance. Paulo andava trabalhando bem mais que eu esses últimos dias, o que não me fazia me sentir mal, em absoluto, mas parecia injusto pra ele. Beberiquei meu café e acendi um Marlboro, ouvindo as idéias dele sobre o fim trágico que queríamos dar praquilo tudo. E de repente veio a pequena epifania, e finalmente pude olhar pra mim, e não gostei do que vi. Rapidamente desviei minha atenção de volta pra ele, mas já tinha um gosto de mofo na garganta, o café não descia mais. Traguei o cigarro com força, quase como se estivesse soprando vida, eu vivia de metáforas bizarras.

__ Paulo, eu acho que entendi.
__ Entendeu o quê?
__ O que conversávamos mais cedo. Aquilo de eu não conseguir olhar pra mim.

Ele parou o que estava fazendo e olhou pra mim. Nunca senti tanta intensidade da parte dele.

__ E a que conclusão você chegou?
__ Eu não queria olhar pra mim. Conseguir até consigo. Só nunca quis. E sempre achei poético esconder de mim quem eu sou. Porque aí eu fingia que não sabia o que andava fazendo, e se alguém viesse questionar, eu podia mentir. Porque se eu tivesse observado antes, e com um pouco mais de atenção, jamais teria achado isso poético.

Ele deu um meio sorriso, que pra mim sempre significou perdão.

__ Clara, você é a mulher mais poética que eu conheço. Agora será que dá pra gente trabalhar?

Também sorri, e as idéias voltaram a fluir, e varamos a madrugada escrevendo. Choveu durante a madrugada, de manhãzinha descemos até a padaria e compramos café e suco de laranja, caminhamos até a praia, acendemos Marlboros e fumamos na areia até parar de chover.

Naquele dia, à tarde, ele ficou de pegar fumo e deixar o livro na editora depois. Fui até o consultório pra pegar meu receituário e pedi pra secretária cancelar minha consulta, não queria mais saber de terapeuta cerebral (haha!). Comprei uma garrafa de vinho caríssima com o dinheiro que nos restava e voltei pra casa feliz, pensando em embriaguez e sexo pra comemorar nossa mais recente obra.

__ A editora odiou o livro.
__ Ahn?
__ A editora odiou o livro. Disse pra gente aproveitar a extensão de prazo pra reescrever tudo.
__ Cê tá brincando?
__ Não, Clara.
__ E agora?
__ Sei lá. Falei com um pessoal de outra editora, em Sampa City. Daí que a gente podia dar um pulo lá hoje à noite. E falar com esse pessoal.
__ Com que dinheiro, amor?
__ Ainda tinha um dinheirinho na conta.

Empunhei a garrafa de vinho francês da safra de 59, que ele adoraria em ocasião outra.

__ Meu Deus, eu juro que te mato, Clara.
__ Eu não sabia. Onde eu ia imaginar que o editor ia odiar o livro? Se na minha cabeça ele estava perfeito?
__ Bom. Agora é reescrever.
__ Não, vou pedir uma grana pro meu pai e a gente vai pra Sampa. Vai de ônibus mesmo, economiza combustível e tudo. Vou ver se consigo falar com alguém de lá, pra ver se a gente consegue hospedagem, acho que a Sílvia ainda tem aquele apartamentinho na Augusta. E então?
__ Tá, pode ser.
__ Certo. Agora, será que dá pra gente beber esse vinho?

No dia seguinte liguei cedinho pro meu pai e consegui a grana. Comprei as passagens e parei no Leblon pra almoçar, e acabei dando de cara com o Breno. Passava do meio-dia e ele já estava completamente embriagado.

__ Ei, escritor. Já?
__ Ei, escritora. Como estás?
__ Vou bem. Mais tarde tou indo pra Sampa, tentar publicar um livro.
__ Junto com o Paulo, seu muso e co-autor?
__ É.
__ Todas as mulheres que amo acabam me deixando. Isso é terrível.
__ Nina não te deixou porque quis. Nina morreu.
__ Nina se matou.
__ E eu não te deixei. Você que nunca quis me ter.
__ Isso é uma mentira, Clara.
__ Não, não é. Eu tentei, Breno. Mas o fantasma dela naquela tua casa sombria era triste demais.
__ Aí você veio para o ensolarado Rio de Janeiro e conseguiu ser feliz para sempre.
__ Você costumava ser menos ácido.
__ E você costumava dormir comigo, não com aquele boçal que você chama de namorado.
__ O Paulo me ama.
__ Sei. E o tratamento?
__ Me dei alta.
__ Você é uma piada, Clara.
__ E você é uma mortalha, Breno.

Me senti horrível por deixá-lo daquele jeito, mas era ele ou eu. Meu instinto de sobrevivência gritava toda vez que o Breno cruzava meu caminho. Caminhei até chegar na Atlântica, depois peguei um ônibus pro centro, pensando o tempo todo no Breno. Ele era um dos melhores escritores de que tinha conhecimento, e ainda estava vivo, e durante um tempo foi meu namorado. O primeiro livro que publiquei foi em co-autoria com ele, e foi graças a isso que consegui ser publicada outras três vezes, dessas junto com o Paulo. Breno tinha câncer, apesar de muito jovem, mas tinha morrido de verdade quando a Nina morreu. E depois disso, nunca mais amou ninguém, nem a mim. A mim, que ainda o amava.

Voltei pra casa debaixo de chuva. O Paulo tinha saído pra comprar fumo, meu namorado é um viciado. Liguei pro Breno, caiu na secretária, pedi desculpas pelo que havia dito mais cedo, me senti um pouco melhor, não o suficiente. Paulo voltou e fumamos um juntos, depois acendi um Marlboro e fiquei na varanda, vendo o sol engolir o Rio junto com o mar.

__ Hein, Clara. O que você tem?
__ Nada. Só pensando algumas cousas.
__ Detesto quando você fala cousas. É coisas.
__ Eu sei. Breno falava...
__ Breno falava cousas. Eu também sei.
__ Eu o vi hoje, lá no Leblon. Tava acabadíssimo.
__ E quando foi que ele esteve bem?
__ É. Faz um tempo.

Ele parou do meu lado na varanda. Roubou meu cigarro e tragou profundamente. Ele também tragava como se quisesse se sentir vivo.

__ Sabe, Clara. Eu te amo.
__ Eu também te amo.
__ E não importa se você ama o Breno mais do que a mim. Eu sei lidar com isso.
__ Paulo, olha...
__ Não, Clara, eu sei. Eu sempre soube que você ainda o amava, mas isso nunca me doeu. A única coisa que tento fazer é que não doa pra você também. Entende? Você me faz feliz.
__ Você me faz feliz, Paulo. Se não fosse você ter me tirado daquele fosso escuro onde o Breno tinha me enfiado, não sei o que teria sido de mim.

Ele me abraçou e acarinhou daquele jeito meio esquisito que ele costumava fazer, me chacoalhando toda. A noite já tinha caído, ventava daquele jeito que só ventava no Rio. Nosso ônibus saía em duas horas, corremos para ajeitar as malas, liguei pra Sílvia pra confirmar o horário de chegada e pegamos a estrada. Fui escrevendo no caminho, Paulo dormia e Breno ainda estava grudado na minha memória.

Chegamos em Sampa City e fomos direto pro apê da Sílvia. Tomamos um banho, comemos pizzas frias e depois nos encontramos com os caras da editora que o Paulo conhecia. Leram um texto meu, rapidamente, depois um do Paulo, com mais calma, e por fim um trecho do romance que a gente tinha escrito.

__ Clara, você não costumava escrever com o Breno?
__ Ah, vocês conhecem o Breno?
__ Claro. O Breno vende que nem água. A gente tem entrado em contato com ele, mas parece que ele não tá muito a fim de escrever por agora.
__ Hum.
__ Será que a gente pode fazer uma proposta?

Paulo se retraiu todo na cadeira. Eu já sabia o que vinha, ele também.

__ Ia ser ótimo ver um livro seu com o Breno de novo. Nada contra a tua literatura, Paulo, pelo contrário, é maravilhosa. Mas a gente nunca publicou algo parecido com o que a Clara e o Breno escreveram.
__ Não rola.
__ Rola sim. Ela vai escrever. A gente volta a falar com vocês.

Paulo saiu me arrastando pelas ruas até chegar num ponto de taxi.

__ Eu não quero escrever com o Breno!
__ Você vai!
__ Qual é a sua, Paulo?
__ Clara, você é escritora. Uma das melhores que conheço. Eu aprendi contigo. Mas não sou escritor, não como você é. E o Breno...tá, ele é um puta escritor, escreve pra caralho, o livro de vocês foi uma das coisas mais absurdas que já li, e ainda tá vendendo, e tem quantos anos que ele foi publicado? Pensa nisso, amor.

Eu soltei meu braço com violência.

__ Você tá me vendendo pro Breno, Paulo. É isso que você tá fazendo.
__ Não seja idiota, Clara, em nome dos deuses. Você é a mulher da minha vida. Mas se você tiver que caminhar longe de mim por um tempo, caminhe. Preciso do teu crescimento. Porque se você ficar estanque, nunca vou me perdoar por ter te fechado as portas.
__ Nunca ouvi tanta baboseira na minha vida. Será que dá pra gente voltar pra casa e reescrever nosso livro?
__ A gente vai voltar pro Rio e você vai procurar o Breno.
__ Vai se fuder, Paulo. Você é um escroto.

Peguei um taxi direto pra rodoviária, comprei umas cervejas, fumei uns marlboros e entrei no ônibus desejando a morte próxima. Capotamento. Sequestro. Qualquer coisa que me tirasse daquele pesadelo. Quando cheguei no Rio, ainda viva, quis morrer de novo. Breno estava na rodoviária me esperando. Seu aspecto ainda era lamentável, mas parecia sóbrio.

__ O pessoal de São Paulo me ligou. Perdão fazer você passar por isso. Eles vão te ligar de volta retirando a proposta.
__ Não precisa se desculpar. Você não fez nada.
__ De fato.
__ E eu pensei muito nisso, também. Da gente. Da gente voltar. A escrever, eu digo.
__ Não é boa idéia, Clara, mulher amada.
__ Tem tempo que não ouço isso.
__ E tem tempo que eu sinto. Estranho. Quer carona pra casa? A gente pega um taxi até o Drummond.
__ Do Drummond fica longe pro Leblon.
__ Pensei em parar em Ipanema. Assm, como quem não quer nada. Pensei em parar em Ipanema e te dar um beijo no portão. E depois te deixar ir.
__ Ou subir.
__ E ficar. E quem sabe até escrever. E ficar, Clara minha, mulher amada.

3 comentários:

Dany Lynn disse...

...[porque caminhos as vezes são tão bifurcados que quilometros adiante acabam se cruzando de novo]...

Belissimo texto, proporcional a sua blz linda dani

te amo

Anônimo disse...

Gostei muito do texto! Prende, não dá vontade de fazer mais nada além de ler!
Quem me dera saber escrever assim...
:)

Beijos!

Madamefala disse...

Adorei!
Leitura que prende, dá vontade de não terminar mais.
bjinhos!