quarta-feira, 30 de abril de 2008

Amores Possíveis I - Breno e Clara

* Do processo de conhecimento

Início de tarde, final de outono, Leblon, Rio de Janeiro. Clara rodava à toa pelo shopping com umas amigas, perdida de uma perdição muito menos mundana e cheia de humanidade, quando se deparou com o cartaz na livraria que anunciava o lançamento da mais recente publicação de Breno Cavalcante, "Ao piano". Divisou o literato sentado - sozinho/solitário/abandonado - através da vitrine e encheu-se de uma histeria adolescente.

__ É verdade que o Breno Cavalcante tá lançando o livro dele aquihojeagora?
__ Sim, senhora.
__ E ele está autografando?
__ Exatamente, senhora.
__ Me vê um exemplar. Agora.

Com seu exemplar em mãos, Clara caminhou insegura até a mesa onde o escritor estava - entediado/desligado/desamado.

__ Boa tarde.
__ Oi.

Ele sorriu com um esforço sobre-humano, ainda assim lhe faltando humanidade.

__ O sr. é meu escritor preferido.
__ Que tragédia. Sinto muito por isso. Mas, por favor, não me chame de senhor.
__ Ah, perdão. Será que você pode autografar meu exemplar?
__ Claro. Já leu?
__ Ainda não, acabei de comprar.
__ Se acaso eu autografá-lo, vai valer menos ainda quando você tentar se livrar dele.

Clara sorriu, em êxtase.

__ Isso não vai acontecer, sabe? Leio "O homem no espelho" pelo menos uma vez por mês. Amo o seu trabalho, de verdade. Dos escritores da nova geração, é com quem mais me identifico.
__ Não sou um escritor da nova geração. Conta comigo: tenho a alma envelhecida, me falta espírito aventureiro e nunca usei drogas. Eu não me encaixo.
__ Não faz diferença. Continua sendo o meu preferido.
__ Nem me preocupo. Você é jovem, há tempo pra mudar. O livro?
__ Aqui está.
__ Seu nome?
__ Clara. Clara Monteiro. Eu também escrevo.
__ Mesmo? Alguma publicação?
__ Ainda não. Encaminhei uns originais para algumas editoras mas ainda não obtive resposta.
__ Essas cousas tomam tempo. Pronto, aqui está seu livro devidamente autografado. Caso não consiga vendê-lo, dá um excelente peso de papel.

Ele sorriu novamente, agora com um pouco mais de humanidade. Um desavisado poderia até jurar ter sentido um certo tipo de calor, tímido porém vivo.
Clara tomou seu exemplar com carinho e delicadeza tão extremos que chegavam a ser palpáveis. Retribuiu o sorriso de Breno com um calor incandescente que lhe subia a nuca e quase cegava.

__ Posso te convidar pra um café?
__ Clara, Clara, não se arrisque. Sou uma companhia desagradabilíssima.
__ Me deixe ao menos tentar. Assumo o risco.

Ele não sorriu, apenas aquiesceu com a cabeça, usando de uma gravidade que derramava charme impunemente. Clara mal conseguia esconder sua excitação ensopada quando dispensou as amigas sem maiores explicações, usando apenas um "vamos tomar um café!!!!" desesperado.
Ela voltou à livraria e se sentou a um canto para ler seu exemplar autografado, mas não pôde se concentrar na leitura por não conseguir tirar os olhos dele. E assim foi durante toda a tarde movimentada. Já passava das seis quando ele se levantou - cansado/desimportado/desempolgado - e se dirigiu até ela.

__ Vamos. Hora da tortura atípica.


* Da leitura - Café, cigarro e sal.


__ Preliminarmente: sou um cara verdadeiramente enfadonho, portanto durma ou fuja se lhe der vontade. Justamente por ser miseravelmente enfadonho é que quase nunca me ofendo. E muito embora seja lisonjeiro me ter em seu rol da fama, não me agrada falar dos meus livros, soa deveras presunçoso. Podemos conversar amenidades, caso as minhas a interessem, sou ameno da forma menos empolgante possível.
__ Não custa deixar acontecer, vejamos até onde vai. Podemos começar com o óbvio?
__ Tentemos.
__ Ainda mora em Brasília?
__ Não. Passei dois anos em São Paulo, tratamento, sabe como é. Me dei alta e mudei para o Rio, porque odeio o sol mas amo a praia, então escolhi morrer junto ao mar. E vim parar no Leblon porque sou tão clichê que chega a doer. E você?
__ Sou nascida no interior do Rio, Resende. Vim pra capital aos dezoito, ou seja, há seis anos. Moro em Ipanema, morei um tempo na Lapa mas estava me tornando alcoólatra. Em Ipanema não é assim tão diferente, mas quando fico bêbada pelas calçadas os garçons do Garota dão aquela força.
__ E você tem sido feliz aqui?
__ Quase o tempo todo. Não dá pra ser infeliz no Rio, não de verdade, especialmente nessa época do ano. O outono aqui é mais bonito que em outros lugares.

Breno sorriu com tanta humanidade que até o dia se deu por satisfeito.

__ É bom ouvir isso de outra pessoa. E em voz alta.
__ E você? Tem sido feliz aqui?
__ Ah, não. Sou uma pessoa infelicíssima, sabe? O que não me impede de apreciar a beleza das coisas, em absoluto. Mas de um jeito meio mórbido. Ao invés de ver o tom dourado que todo mundo diz que o Rio tem, especialmente nessa época do ano, costumo observar como as noites são mais negras e menos estreladas. Sou um caso perdido, Clara.

Ela também sorriu, e seu calor já abrasava os passantes, era visível, límpido, brilhante.

__ Podemos comprar nosso café e caminhar até a praia, assim ficamos junto ao mar e ainda podemos fumar, inclusive. Você fuma, não é?
__ Parei há algum tempo. Mas não me incomoda.
__ Então você realmente tem câncer?
__ Realmente tenho câncer.

Clara mordeu o lábio. Cruzamento/entroncamento/encruzilhada.

__ Então Nina realmente existiu. Não é errado pensar assim, é?
__ Não, não é errado.

O calor de Breno se dissipou rapidamente, dando lugar mais uma vez àquela gravidade sombria que, embora ainda charmosa, começava a assustar.

__ Não precisamos falar disso.
__ Não há o que falar. Nina nasceu, cresceu, viveu e morreu em mim. Fim.
__ Ela se matou.
__ Não. Ela só morreu.
__ Me desculpe.
__ Não carece de desculpa. Vamos. Nosso café, seu e pseudo-meu cigarro. Depois se aparam as arestas.


* A possibilidade de amor


__ Sempre amei escrever. Mas era tudo tão pessoal, nunca tinha imaginado a possibilidade de me publicar antes. Não me vejo como escritora profissional porque é tudo tão exorcismo, sabe como? E não me é fácil, por Deus, nunca foi, sempre teve sangue jorrando.
__ Gosto das suas metáforas. Emprego forte e certeiro. Você deve ser uma mulher difícil, Clara. Encantadora, mas de um jeito difícil.
__ Obrigada. Sempre me achei bem simples, na verdade. Muita paixão, muito sentimento, muita verdade, muito suor.
__ E eu aprecio tudo isso. Talvez por nunca ter sido assim.
__ Não consigo acreditar nisso. Se seus personagens são mesmo cópias suas, são cheios de paixão.
__ E medo.
__ Normal. Sinal que há um coração pulsando.

Ele a olhou com uma profundidade quase radiográfica, sentindo no peito a alteração do pulsar das obviedades. Era isso, o que Caio Fernando chamava de possibilidade de amor. Era estar com ela à beira do mar, café numa mão, cigarro na outra - depois de quanto tempo? matando aquilo que o matava suavemente. E aquela coisa de possibilidade de amor, depois de quantos anos? Depois de tanta solidão - mastigada/revolvida/regurgitada -, cá estava ele vislumbrando uma possibilidade rica e serena.

__ Sabe. Deu vontade de escrever agora.
__ Sério? Deve ser de um prazer imenso acompanhar teu processo de criação.
__ Nada tão fantástico. Quer escrever comigo?
__ Não, não poderia. Jamais. Querer eu quero, claro, mas não poderia.
__ Eu quero. Você quer. Vamos escrever juntos. Podemos caminhar até a minha casa.
__ Ou a minha.
__ E tomar mais um café.
__ Ou um vinho.
__ E podemos ouvir um jazz.
__ Ou bossa nova.
__ Suas sugestões vencem as minhas, fácil.
__ E daí podemos, com vinho e bossa nova, escrever.
__ E todas as outras cousas que poderemos. Se quisermos.
__ Eu quero.
__ Então vamos. Hora da tortura atípica, parte II.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Descoberta, ou A constatação da dúvida.

"Eu já sabia", eu disse a ela, a constatação lacrimosa de uma dor infinda que eu realmente já previa, como uma dessas previsibilidades mais banais que a gente só não enxerga por ainda acreditar em algo. "Não tinha como saber", ela tentou me demover dessa certeza dolorida e sangrenta, como fazem os bons amigos, tentando negar o óbvio. E todas as desculpas que eu sabia que ela daria por ser amiga dele, e todas as tentativas de amenizar o crime, por ser minha amiga. "Não se desculpe por ele", eu pedi, já sabendo que viria uma explicação que não explicaria nada. Nem da parte dela e muito menos da parte dele. E depois eu me senti mal por colocá-la na linha de tiro, entre minha dor e a culpa dele, amiga que era dos dois. Mas não havia outro jeito, porque da minha solidão ela havia tomado conta e não me deixaria desfrutá-la, não da forma ideal, aquela coisa de cigarro e silêncio e solidão, mezzo deprê mezzo "tenho pena de mim mesma". Mas eu queria fazê-la entender que eu já sabia, desde o início dos tempos, que eu sabia que ele me macularia, me lanharia, e que se isso ocorreu foi tão somente por negligência minha, porque eu quis me negacear, por acolher essa oportunidade de amor com pouquíssimo zelo. Mas eu sabia que a grata surpresa haveria de ser ingrata criatura mais cedo ou mais tarde, e saber disso já fazia com que metade do caminho para a cura chegasse mais rápido e até com menos dor. E depois eu ligaria pra ele assim como quem não quer nada, como fiz no dia seguinte, na esperança de que ele colhesse a decepção na minha voz e fizesse algo, qualquer coisa, pra consertar o erro, pra fechar o buraco de bala que ele abriu no meu peito. E talvez ele tenha até percebido, mas esconde tudo tão bem e de maneira tão competente que não demonstra nada, nunca. Então não há certeza de que ele também sentiu o reflexo de ter agido como estúpido e de ter-me feito agir feito estúpida nesses últimos dois meses. E dias depois ela, a amiga de ambos, viria conversar comigo pra saber se eu havia conversado com ele, se as coisas já estavam resolvidas, como se muito pouco ou até mesmo nada tivesse acontecido, e eu sorriria com amargura e afirmaria com uma convicção tamanha que ele não vai me procurar, eu sei disso, eu sei de tudo com relação a nós dois porque conheço a nós dois como desconheço a todo o resto. "Ele vai te procurar", ela afirma com uma segurança precária. E eu volto a sorrir com amargura, saudosa da minha solidão, até penso em alugar um quarto num hotel durante um final de semana só pra me ver sozinha, pensando, como fiz daquela vez em que fui pra Goiânia pra fazer nada, só pensar. "Não adianta, eu sei como tudo acaba, eu sei quando e onde acaba. Sei que ele não vem conversar, mas sei que não conseguirei negar, então vamos nos lanhando como gato e rato, até o momento em que um dos dois não tiver mais sangue pra derramar. E esse que terá a hemorragia parcamente estancada será eu. Eu sei". "Não tem como saber disso", ela ainda tentará repetir. "Tem sim. Eu sei. Eu nunca me engano".

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Timidez Subserviente

Era um rapaz bem apessoado, como diziam por aí antigamente. Dir-se-ia até mesmo bonito. Alto, porte atlético, dentes alvos e de um cuidado com a aparência beirando o exagero. Distinto, bem arrumado, inteligente, atlético; Fernandinho tinha apenas um problema: era extremamente tímido. Conquistava qualquer garota com um olhar ou um sorriso, mas bastava que uma pequena se aproximasse dele para que tudo ruísse.

Seu péssimo desempenho com as palavras quando enfrentando a situação do galanteio rendeu-lhe a fama de sangue de barata. Fernandinho engolia seco e nada dizia, porque no fundo sabia que merecia a indesejada alcunha. Incomodava-o o apelido quase tanto quanto o embaraço no trato com as mulheres.

Certo dia, em casa, resolveu tomar uma atitude e por-se a galantear todas que aparecessem em sua frente, até sentir que tinha naturalidade suficiente durante uma conversa banal sobre um assunto qualquer, tendo como meta a conquista. Treinava o cortejo, gestos e ensaiava diálogos dos mais desbaratados. Quando sentiu-se seguro seguiu para a rua e tentou colocar em prática o que havia treinado.

Desengonçado e acanhado, Fernandinho abordava as transeuntes. As faces ruborizadas ardiam num fogo de pudor e cautela inimagináveis em qualquer outra pessoa. Essa atitude defensiva e subserviente servia de pedestal para as mulheres que prontamente o ignoravam, isso quando não o destratavam. Essa onda avassaladora de negativas e humilhações fez com que no peito de Fernandinho crescesse uma revolta hedionda para com a vida.

Triste, ultrajado e macambúzio, Fernandinho retirou-se para a proteção de seu lar, sem imaginar que levaria consigo as ofensas recebidas na rua. Essas manifestações indignas do poder feminino ante um homem de atitude condescendente acumularam-se e cresceram a tal ponto que dominavam agora os pensamentos do pobre rapaz. Desesperado ante a rejeição geral e desejoso de um dia conseguir ter um relacionamento qualquer que fosse com uma garota, perdeu o controle de suas faculdades mentais e mergulhou em um estado de morbidez obtuso.

Passou horas largado sobre o sofá, olhando para um ponto fixo. Quase uma estátua. Subitamente num estalo recobrou a consciência, levantou-se afoitamente e dirigiu-se ao quarto. Lá dentro, abriu o criado-mudo de onde tirou o revólver. Encostou-o em sua fronte e puxou o gatilho.

Um disparo seco, seguido de um baque. A queda de um corpo inerte. Fernandinho, 21 anos, morrera virgem.

Beira de estrada

Exausto. Eu não tenho outra escolha, deveria parar o carro em algum lugar e dormir. O problema é que não vi sinal de civilização nos últimos 100Km. Decisões. Odeio tomar decisões. Continuar até encontrar algum lugar habitado, ou parar na beira da estrada e dormir dentro do carro? As duas opções têm riscos: ambas são perigosas. Posso dormir no volante enquanto procuro algum lugar pra dormir, assim como posso parar o carro e dormir para nunca mais acordar se algum carro me acertar a 120Km/h.

Indeciso sobre que decisão tomar, consulto o relógio e o odômetro. 23:47h, 423.5Km. Não sei se penso que estou há 5 horas sentado e com os braços esticados, ou se penso que estou há 400Km do último posto onde abasteci o carro. Não sei se penso que ainda falta praticamente um dia até chegar em Brasília, ou se penso já faz quase dois dias que deixei Rio Branco. Não sei se penso na vida que deixei pra trás, ou se penso no maldito futuro que me espera quando chegar ao meu destino. Os reencontros: as pessoas que perdi, as pessoas que me perderam, as pessoas que amei e que odiei, e as pessoas que me amaram e me odiaram. Tanta coisa, tantos pensamentos, um cansaço absurdo e eu preciso tomar outra maldita decisão. As coisas nunca foram fáceis. Na verdade nunca são e se algum dia estiverem prestes a se tornarem fáceis, sempre vai aparecer um filho da puta pra fuder com tudo e dificultá-las novamente.

Imerso em meus pensamentos quase não notei que ao longe surge uma cidade. Bem, pela quantidade de luzes eu imagino um amontoado de casebres com pessoas feias, fedidas e que se acham infelizes. Se elas morassem numa cidade grande saberiam o que é ser realmente infeliz, talvez algum dia eu escreva sobre isso.

Continuo dirigindo e divagando até chegar à cidade: Reidinópolis. Ruas desertas, um bêbado dormindo na praça. Engraçado, eles têm até uma praça. Cachorros, gatos, grilos e sapos fazem sua sinfonia noturna. Como eu bem esperava o lugar não tem um hotel onde passar a noite, se tem fica muito bem escondido. Rodando pela cidade eu encontro um posto policial, ou uma delegacia, ou o que quer que seja da polícia e decido descer e bater pra tentar obter alguma informação.

Tudo escuro. Os policiais estão dormindo. Engraçado pensar que eles deveriam estar acordados e estão dormindo, enquanto eu deveria estar dormindo e estou aqui acordado tentado desinverter os papéis. Bato insistentemente até que uma luz se acende. Um sujeito abre a porta e eu tenho a ligeira impressão que pegaram o Severino Cavalcante e colocaram uma roupa de policial nele.

- Boa noite.
- Quê que foi, aconteceu alguma coisa?
- Não, senhor, eu só quero uma informação.
- Nossa, isso é hora de pedir informação.
- Bem, eu vinha pela estrada e estou precisando descansar um pouco. Tem algum hotel na cidade?
- Não, não tem hotel aqui não.
- Poxa, onde é que eu posso passar a noite?
- Dorme dentro do carro embaixo de alguma árvore. A cidade é tranqüila, não vai acontecer nada.
- ...
- Boa noite.
- Ahn... será que não tem como eu dormir aí dentro não.
- Só se for no xilindró, rapaz! Agora xispa que eu tô querendo dormir.
- ...
- Anda, anda... circulando.

Me viro, entro no carro e estaciono na árvore em frente à delegacia, ou posto, ou sei lá que diabos que é. Espero uns trinta minutos, desço do carro e esvazio os pneus da viatura. Cago na porta, volto pro meu carro, o ligo e vou-me embora. Melhor dormir na estrada, ficar perto de certas pessoas me cansa.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Livros

Andei pensando em você, sabe. Na verdade, andei pensando em nós. Sei que ainda não existe um "nós", e sei muito bem que poderá não existir, mas é como eu digo aos quatro cantos do mundo "eu sou um idiota romântico". Pensar em "eu e você" sem um "nós" me deixa meio confuso das idéias, então por isso me atrevo a declarar que estive pensando em nós, e pensando em nós pensei na dissintonia, na desarmonia, no destom, na disparidade, ou qualquer outra palavra que você prefira para definir nossas diferenças. Sei que sou diferente de você, sei que sou diferente das pessoas que você conhece, na verdade sei que sou diferente de muita gente. Estou acostumado com minhas diferenças e aprendi a lidar com as diferenças alheias, do contrário não teríamos nos conhecido, eu teria virado um eremita. A verdade é que com o passar dos anos, vivendo intensamente minhas decepções, assim como eu vivo intensamente tudo que há para se viver, eu aprendi que as pessoas são como livros. É possível ler as pessoas, e cada uma delas tem uma história pra contar. Ouso até dizer que cada uma delas tem histórias para contar, e cada história tem sua própria história. Somos um emaranhado complexo de divagações, experiências, vontades e frustrações, e cada mistura dessas sensações, em proporções mesmo que ligeiramente diferentes, nos dá uma nova história. O prazer de nos relacionarmos com as outras pessoas é confuso, porque ao mesmo tempo em que queremos saber, viver e sentir intensamente cada história contada nesse livro queremos também nos tornar co-autores e ajudar a escrever a história que ainda não aconteceu. Queremos escrever a história da vida das outras pessoas, e ao mesmo tempo queremos que essas pessoas nos ajudem a escrever a história das nossas vidas. Parceria e companheirismo. Sincronia. Para mim você tem se mostrado um livro fechado, lacrado, inatingível, inalcançável. Você me permite ver a sua capa, apenas, enquanto eu me abro por inteiro e me deixo ser folheado. Se quisesse entregaria agora mesmo uma caneta e permitiria que você escrevesse seus capítulos na minha vida, mas só faria isso se deixasse eu ler um pouquinho que fosse da tua história.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Futuro pretérito

E se eu tivesse coragem, te chamaria pra ver o filme que milagrosamente está em cartaz na sala de cinema fria. E compraríamos pipocas e cocacola e até ficaríamos meio sem jeito no início, mas depois as coisas tenderiam a se acertar e estaríamos de novo à vontade, como é de costume. E depois caminharíamos até um bar, ou uma sorveteria, ou um lanche (como diz o pessoal daqui) conversando sobre o filme, nossas impressões sobre o roteiro, a fotografia, a direção, quase sempre deixando a atuação de lado, fora de foco, porque somos assim e realmente temos isso em comum. E durante a caminhada iríamos vislumbrando mais e mais quanto de cada um tem no outro, e sentiríamos aquela ânsia na boca do estômago, ainda sem saber se boa ou ruim, sabendo apenas que é ânsia e se é ânsia tem uma razão de existir, talvez oculta ou clara demais, mas sempre a ponto de cegar. E depois de umas cervejas e uns cigarros a conversa já estaria solta e falaríamos sobre projetos e música e cinema e sentimentalidades e todos os assuntos sobre os quais costumamos conversar quando somos somente nós, deixando os outros nós e todos os outros seres viventes em suspenso, à deriva. E novamente a sensação incômoda de espelho, assim como tenho com ela e você deve ter com mais alguém, e novamente a sensação de medo de estar se mostrando a alguém que, embora grata surpresa, é um ilustre desconhecido. E ao chegar em casa, na sua ou na minha, iríamos sorrir daquele jeito que as pessoas sorriem quando estão sem-graça e tentando disfarçar o quanto aquela situação, por mais constrangedora que seja, é exatamente a situação que você esperava. E quase como num romance você me beijaria devagar, relembrando meu gosto, e me apertaria contra o peito como se fosse morrer se me soltasse. E eu me faria completamente sua, sem cerimônia, porque não há razão alguma em lutar contra isso, eu acredito nisso, eu me diria isso repetidas vezes em silêncio e no escuro, só a brasa do cigarro por companhia. E por acreditar nisso eu sentiria toda a intensidade do teu toque e conseguiria definir o desenho perfeito da tua língua entre os meus dentes. E você me sorriria e perguntaria, quase num sussurro, que mistério é esse que há entre nós que nos fez tão próximos em tão pouco tempo. E eu te responderia que também ando me perguntando isso, a cabeça irrequieta e o coração pateticamente exposto. E você tentaria fingir que as coisas não são assim, e eu pensaria na ingrata criatura que tu me serás futuramente, e já até sinto o gosto de cinzeiro de tantos cigarros comidos quando você findar por me machucar. Mas àquela hora, àquela hora em que estaríamos somente nós na escuridão quente do teu quarto ou do meu quarto, eu me esqueceria da ingrata criatura que tu me serás e só pensaria na grata surpresa que tu me seria naquele momento de mel e suor. E pensaríamos em todas as coisas que haveriam de ocorrer dali em diante, de como estaríamos mais próximos porém mais distantes quando todos juntos, naquelas noites de cerveja e divertimentos mundanos. E tentaríamos fingir que somos imunes a isso, melhores que isso, somos adultos e maduros, ninguém acreditaria nas ânsias que sentíamos se não disséssemos aos outros. Mas findaríamos por seguir, com medo e possíveis dores, porque haveria essa vontade soberana e inexplicável de nos sentirmos vivos. Porque seríamos esse tipo de gente assim, que sangra pra se sentir vivo. E deixaríamos sangrar.