terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Retrato do fim de semana

__ E então? Que nome vamos dar para o texto?
__ Não faço idéia.
__ Memórias do cárcere?

Risadas.

__ Quem foi que escreveu Memórias do cárcere mesmo?
__ Graciliano Ramos.
__ Ah, eu me confundi. Pensei que tivesse sido o Dostoiévski.

Mais risadas.

__ Mas o Dostoiévski escreveu um livro quando esteve preso.
__ Foi.
__ Qual o nome mesmo?
__ Orgulho e preconceito.

Muitas risadas. Muitas.

****

Preparativos para o Esbórnia Urbana.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

História suja

Cheguei ao bar do Rubens debaixo de chuva torrencial e logo percebi que Ana não estava em sua cadeira cativa. Senti falta da Coca sobre a mesa e do caderninho vermelho em que ela escrevia seus apontamentos. Acendi um cigarro e caminhei até o balcão. Rubens parecia um doido com uma espátula de cozinha na mão, tentando matar uma mosca. Estava realmente concentrado, a língua entre os lábios, suando.Tanto que não me percebeu. Finalmente matou o inseto incômodo e voltou para a chapa para terminar o frango a passarinho.

__ Rubens...

__ Oi.

__ Cadê a Ana?

__ Sei não.

__ Ela já esteve por aqui hoje?

__ Sei lá. Tava ocupado, não reparei.

__ Matando moscas?

__ Não é você que está desse lado do balcão.

__ Fala sério. São apenas moscas.

__ Não enche, Miguel.

__ Ok. Cadê os jovens em puberdade?

__ Quer perder no pôquer de novo?

__ Eles me embriagaram. E com um uísque vagabundo.

__ Sempre um ardil, Miguel. Sempre um ardil.

__ Não enche, Rubens.

__ Perdeu quanto da última vez?

__ Por que o interesse?

__ Apenas curiosidade.

__ Sabe que às vezes eu acho que eles agem a mando seu?

__ Bebe, Miguel. Bebe.

Ele apanhou um copo embaixo do balcão e me ofereceu uma dose de cachaça vagabunda, fabricação do próprio, que tinha a coragem de dizer que era material de qualidade. Nunca recusei um copo e ainda estou vivo. Conheci abstêmios que morreram aos 30. Pobres coitados.

Foi então que a Ana entrou no bar, de súbito, esbaforida e ligeiramente pálida. Ela sempre foi um tanto quanto elétrica, mas a forma como ela dizia frases sem nexo me deixou assustado.

__ Ei. Aconteceu alguma coisa? Está tudo bem?

__ Acabei de arranjar briga com um cara.

__ Que cara? Por quê? Diz!

__ Porra, eu tava entrando no bar e o cara me chamou de princesa. Você sabe que eu detesto isso.

__ Hum. E aí?

__ Aí eu respondi que princesa de cu é rola. E arremessei minha latinha na cabeça dele.

__ Ana, pelo amor de Deus. E aí?

__ E aí eu saí correndo, ué!

__ E ele?

__ Tá entrando. Atrás de você.

Ana deu a volta e se escondeu sob o balcão. Rubens pressentiu o perigo, alarmado, e segurou a espátula nas mãos. Mas não ia adiantar muito. O cara era um dos maiores homens que eu já havia visto, e tinha uma cara de psicótico que me fez rever toda a minha vida em câmera lenta.

__ Cadê aquela vaca?

Ele estava encharcado de cerveja, e apesar de me ver em meus últimos momentos, não pude evitar me lamentar pelo desperdício. Sei, sei. Mas é melhor morrer de uma forma espirituosa.

__ Ei. Não fale assim – eu disse para o trasgo, num ato inédito de coragem idiota.

__ E o que você tem a ver com isso?

__ Não te interessa. Só não permito que você se refira a ela e a mais ninguém nesse recinto dessa maneira.

Os acontecimentos se seguiram de maneira muito rápida. Ele sacou uma garrafa vazia da mesa ao lado, eu corri feito um idiota e o Rubens levantou a espátula de um jeito pateticamente ameaçador. Eu caí, e antes de cair ainda pude sentir o sangue quente na minha nuca. E então eu apaguei.

*

Ouvi uma voz distante.

__ Miguel? Miguel?

A vista foi esclarecendo aos poucos...

__ Miguel?

Quando consegui recobrar a consciência, me deparei com uma enfermeira debruçada sobre mim no que seria, certamente, uma cama de hospital.

__ Puta que pariu, de novo?

__ Ahn?

__ Nada...esquece. Quem me trouxe aqui?

__ Foi um tal de Rubens. Ele está no quarto ao lado.

__ Cara, o que aconteceu com ele?

__ Bem...vocês chegaram aqui há uns dois dias. Você estava desmaiado e ele tinha um buraco enorme na barriga, aqui assim, do lado.

__ Meu Deus!!! Ele está bem?

__ Sim, sim...ele estacionou uma Belina aqui na frente do hospital, buzinou e desmaiou. Fizemos a sutura, mas ele já tinha perdido muito sangue. Mas já está bem agora.

__ Posso falar com ele?

__ Está dormindo. E você não deve sair da cama, não por enquanto, levou uma pancada muito forte na cabeça.

__ E a Ana?

__ Que Ana?

__ A Ana. Estava conosco no bar do Rubens, entrou aquele ogro querendo bater nela e...

__ Miguel, ainda não sabemos o que aconteceu. O tal do Rubens acordou perguntando por uma espátula e desde então não diz coisa com coisa.

Me levantei apressado, mas a enfermeira me deu um mata-leão e eu voltei a deitar, resignado e dolorido, olhando o teto estrelado e me perguntando se a morte estaria próxima novamente.

__ Miguel, você não deve se levantar.

__ Mas eu preciso saber da Ana.

__ Mas não tem nenhuma Ana aqui, eu já disse! Quer me contar o que houve?

__ Não, obrigado.

Fiz cara de emburrado, mas dei a entender que não me levantaria de novo. Ela pareceu aceitar, pois me deixou sozinho no quarto, fechando a porta atrás de si. Esperei cinco minutos pra me levantar. Meio tonto, tirei aquele pijama verde ridículo e vesti minhas roupas ensangüentadas. Já estava com a mão na maçaneta quando esta girou e Rubens entrou, ainda de pijama e com uma expressão conspiratória no rosto.

__ Miguel, eles roubaram minha espátula.

__ Rubens, eu...eles o quê?

__ Roubaram minha espátula, a minha espátula! Meu Deus, onde você conseguiu tanto sangue?

__ Rubens, tá tudo bem?

__ E o que você acha? Você tá todo ensangüentado, eu não tenho mais a minha espátula e não estamos no meu bar! Quer me dizer o que aconteceu?

__ Não temos tempo. Vamos. Temos de sair daqui, e agora.

__ Não vou a lugar algum sem minha espátula.

__ Ah, Rubens, não fode. Anda logo.

Puxei o Rubens pelo braço, impaciente. Ele ofereceu resistência, então fui arrastando aquele imbecil pelos corredores. Conseguimos passar despercebidos pela maioria dos funcionários, e foi aí que constatei, com desgosto, que estávamos em um hospital público. Não consegui disfarçar meu nojo e terror, e julguei que por isso uma mão me puxou para trás com violência. Dei o combate, me embolei com ele no chão e o Rubens saiu gritando pela espátula. Só depois de socar meu oponente repetidamente me dei conta de que era o Fernando.

__ Seu imbecil! O que você pretendia?

__ Eu tava te gritando! Você nem me olhou!

__ Mas eu não ouvi meu nome nenhuma vez!

__ Mas eu tava te gritando! Gritei “pai” feito um condenado.

__ Ah, claro. Às vezes esqueço que tenho um filho. Tá de carro?

__ A Belina do Rubens tá aí no estacionamento.

__ Vem. Vamos sair daqui.

Fernando vestiu Rubens com sua jaqueta, disfarçando o pijama verde horrendo. Saímos os três naquela atitude furtiva, como se tivéssemos roubado algo além da nossa própria liberdade, tão toscamente usurpada naquele açougue mantido pelo Estado. Fernando ia caminhando à frente pelos corredores, nos avisando sobre funcionários e, quando necessário, os distraindo. Eu seguia logo atrás, tapando a boca do Rubens enquanto ele tentava, em vão, reclamar a maldita espátula.

Alcançamos a entrada. Atendentes mal humorados protelavam o serviço, enquanto cidadãos contribuintes e, de um modo geral, bem trouxas, imploravam pelo atendimento que necessitavam. Mas não havia como garantir que não prestariam atenção na gente, até porque o Rubens continuava agindo feito doente.

__ Fernando!

__ Oi, pai.

__ Para com essa porra de “pai”, eu já disse. É o seguinte. Você vai ter que inventar alguma distração pra eu poder sair daqui com o Rubens.

__ E eu faço o quê?
__ Se vira. Você não nasceu quadrado.

__ Tá, né! Não tem outro jeito.

Ele saiu correndo e passou direto pela porta de entrada. Ninguém prestou atenção nele. “Filho da puta”, eu pensei...

E de repente ele voltou correndo, alarmando a todos para o fato de um segurança estar batendo no Dr. Almerindo. Todo mundo correu para fora, inclusive Rubens e eu. Fernando apontava para a parede lateral do hospital, gritando a plenos pulmões:

__ Já estamos indo, Dr. Almerindo!!! Já estamos chegando, já consegui o socorro!!!

Correu, e todos o seguiram. Aproveitei o ensejo para correr desabalado até a Belina cor de goiaba do Rubens, tentando convencê-lo de que haveria uma espátula lá dentro. Nunca achei que um carro pudesse estar tão distante, e enquanto corria agradecia a Deus por ter dado um tantinho de cérebro ao Fernando, e não aquela noz ressecada que a mãe dele tinha na caixa craniana e nunca usava.

Mas...ouvi um tropel de passos em nossa direção e olhei instintivamente para trás. Fernando fugia desesperado dos funcionários do hospital, que gritavam “não tem nenhum Dr. Almerindo nesse hospital, filho da puta!!!”. Fiquei parado, sem reação. Rubens despiu a jaqueta e correu de volta ao hospital, o pijama balançando de maneira tão patética que quase me fez rir. Mas não tinha como ser espirituoso num momento como aquele. Eu só consegui ficar parado, pensando tristemente: “puta merda...”.

__ Quem de vocês roubou minha espátula?

__ Ele! Foi ele que fugiu! Cadê o outro que tava com ele?

__ Eu quero a minha espátula, seus usurpadores! Ela é minha, eu paguei por ela!

Três seguranças arremessaram o Rubens no chão, que ainda bradava pela espátula infeliz. Registrei nota mental de, em uma próxima oportunidade, amaldiçoar Rubens e todas suas gerações vindouras por ele estar agindo de maneira tão estúpida. Olhei para a Belina goiaba, desejoso, e para o Rubens, furioso. Me debati num duelo interior sangrento, e a amizade de Rubens falou mais alto. Maldito.

Corri em direção a eles, tentando apaziguar a situação. Algum funcionário descerebrado do hospital achou que eu ainda sangrava e deu o alarme, ao que dois ogros enfatiotados em ternos mal cortados tentaram me agarrar. Fernando pulou nas costas de um deles e foi arremessado ao chão, tal qual um saco de batatas. Por um momento a chama da paternidade queimou em meu peito, mas eu fiz questão de mandá-la às favas e tratar de me proteger. Não sei quando, nem como, mas antes de apagar pela 2ª vez consegui ver Ana e cinco policiais fortemente armados correndo em nossa direção. Olhei para o telhado do hospital e vi dois franco-atiradores. Uma luzinha vermelha piscou nos meus olhos. Achei que fosse o laser dos snipers, mas era só sangue. Em um último esforço contra a escuridão que descia, ainda pude ouvir Rubens urrar de dor, e vi Fernando socar um dos funcionários.

*

Acordei sem companhia dessa vez. Estava em um cômodo ligeiramente escuro, quente, deitado e amarrado em um catre duro. Uma mistura de sons invadia minha cabeça e não me deixava pensar direito. Tentei me acalmar, esperar o zunido constante passar. Um tempo depois, consegui distinguir os sons. Eram dois caras conversando.

__ Aquela galega do plantão noturno?

__ Não, a outra. A que entra depois dela, de manhã.

__ A Márcia?!

__ Essa mesma. Fode bem pra caralho.

A esta altura, e considerando todos os fatos bizarros acontecidos, ouvir falar de sexo finalmente me trouxe um pouco de razão: eu ainda estava vivo e o mundo ainda era o mesmo.

__ ÔÔÔÔÔÔUUU!

Silêncio.

__ Eu sei que vocês tão aí fora, caralho!

__ O Miguel acordou...

__ Vai lá.

__ Por que eu?

__ Anda logo.

Um rapaz franzino, de uns vinte e poucos anos, meteu a cara na porta.

__ Boa tarde, Miguel.

__ Boa tarde...boa tarde é o caralho! Diz aí, que porra é essa? Tou amarrado por quê?

__ Olha, a culpa foi sua – ele foi entrando, cauteloso e inseguro – porque quando o enfermeiro foi aplicar o analgésico, você deu um soco nele e quebrou a agulha dentro da veia. Deu um trabalho absurdo pra tirar.

__ Ah...não me lembro disso...

__ Normal. Me admira que ainda esteja vivo, com esse galo na cabeça!

__ Mas...onde você disse que eu estou mesmo? Cadê a Ana, o Fernando e o Rubens?

__ Cadê quem?

__ O Rubens. O cara da espátula.

__ Ah. Não sabemos. Foi o único resgatado pela doida que chegou com os federais.

__ A Ana.

__ Deve ser essa aí. Ela é gostosona?
__ Quem?

__ A Ana. Porque a que veio com os federais era gostosona.

__ Sorte sua eu estar amarrado.

__ Ai, valentão.

__ Me diz onde eu estou.

__ Na ala psiquiátrica do hospital.

__ Mentira.

__ Juro por Deus.

__ E como foi que eu vim parar aqui?

__ É uma longa história. Escuta...você esteve desacordado os últimos dois dias, e não deu trabalho nenhum pra gente. O esquema é o seguinte: conseguimos contrabandear umas cervejas pra dentro do hospital, mas eu preciso de garantias de que você não vai nos dedurar. Pra isso, vamos deixar você beber. Mas sem tentativa de fuga, ouviu bem?

__ E como é que eu vou beber, ficar bêbado e fugir se eu tou amarrado, filho da puta?

__ A gente vai te desamarrar. Isso não é óbvio? Quer dizer, não desamarrar de verdade, só um braço, o suficiente pra você segurar a lata. Pode ser?

__ Porra, claro. Nem sei quanto tempo tem que eu não bebo.

__ Então tá certo. Agüenta aí.

__ Ei. Espera. E o Fernando?

__ Quem, o chato? Ele é seu filho, né?

__ Nem adianta me olhar assim, a culpa não é minha, foi criado pela mãe.

__ Tá. Enfim. Tudo que sei é que ele não conseguiu fugir. Tinha uns quatro seguranças em cima dele.

__ Hum.

Um assomo de remorso invadiu meu peito. Meu filho tentou me ajudar e eu não fiz porra nenhuma por ele. Mas o remorso não demorou a dar lugar a uma excitação juvenil quando o outro enfermeiro, gordo e de bigode, entrou com uma caixa de isopor no quarto.

__ Deus seja louvado. Nunca quis tanto uma cerveja na minha vida.

__ Espera, filhote. Vou desamarrar o braço direito. Se comporta.

__ Ei, alguém tem cigarro?

__ Isso aqui é um hospital, porra.

Olhei incrédulo para o enfermeiro. Depois parei pra pensar na situação e tentei me lembrar com clareza de todas as coisas esdrúxulas que me aconteceram desde que a Ana entrou no bar, dias atrás, nem sei mais quantos. Puta merda. Sempre sobra pra mim, sempre. O enfermeiro gorducho que apelidei carinhosamente de El Bigodón desamarrou meu braço e me deu uma cerveja. Aquele gole gelado me pareceu irreal. Bebi a latinha em pouquíssimo tempo, e fique tonto de uma maneira tão absurda que me recusei a acreditar. Nem quando eu tinha 15 anos e tava começando a beber eu ficava bêbado tão rápido.

__ Seus desgraçados. Me entupiram de remédio e depois me oferecem álcool. Isso é perverso. Doentio.

__ E você tá reclamando? Aquela puta te deixa apanhando, duas vezes pelo que tou sabendo, a gente te dá uma cerveja geladinha e você ainda reclama?

__ E quem é a puta mesmo?

__ A tal da Ana. Ou alguma outra puta te deixou apanhando esses dias?

Joguei a latinha de lado e dei um soco gostoso naquele bigodudo desgraçado. O enfermeiro magricela me olhou assustado.

__ Eu avisei, seu filho da puta. Agora me tira daqui.

Os enfermeiros se olharam, avaliando a situação. Resolvi partir para a linguagem universal, o esperanto do funcionalismo público: apelei para o suborno.

__ O negócio é o seguinte: o Rubens, da espátula, é meu melhor amigo. E tem um bar. Tenho acesso livre, a hora que eu quiser. Vocês me liberam, em segurança, e eu arrumo uma ou duas garrafas de Red Label pra vocês. Johnnie Walker, original.

O argumento final, preciso e certeiro. Eles me desamarraram e me deram outra cerveja. Mas o bigodudo parou de chofre, me olhando desconfiado.

__ E como sabemos que você não mente? Como sabemos que você é confiável?

__ Amigo, você bebe. Eu bebo. Não confie em alguém que NÃO bebe.

__ Você é cheio de argumentos, hein.

__ Tá, só me tira daqui.

__ Só um minuto. Vou pegar suas roupas no armário.


*


El Bigodón trouxe meus trapos. Nunca fiquei tão feliz em vestir uma roupa tão imunda. Exceto, é claro, naquele dia bizarro em que concebi o Fernando. Outra história.

Vestido, tomei mais uma latinha e saí andando pelos corredores, tonto feito helicóptero com hélice quebrada, escoltado pelos dois enfermeiros. Parei na porta do hospital e rabisquei meu endereço atrás de uma receita de remédio que teoricamente era pra mim. Disse a eles que contassem uns dois dias pra aparecer, e que levassem uma espátula. Eu precisava ressarcir o Rubens.

Saí andando pelas ruas, me perguntando aonde eu deveria ir primeiro: à minha casa, à casa da Ana, ao bar do Rubens ou ao primeiro boteco que aparecesse. Tendo em vista minha condição ligeiramente bêbada e a ausência de dinheiro, optei por ir até a casa da Ana. Uma caminhada de aproximadamente uma hora e meia.

Caminhar me fez melhorar. Tudo bem que vi um cachorro de três patas passeando com sua dona, mas tomei como resultado da mistura bebida + remédio, que bombeava meu cérebro, e não dei muita importância.

Cheguei à praça em frente à casa da Ana e um mal estar percorreu meu corpo. Onde estavam os mendigos de sempre? Estranho. O Alegria não estava lá. Alegria, o flanelinha que sempre estava lá, não estava lá. E ele não saía daquela praça nunca.

Decidi refazer meu plano, aquela situação era muito incomum. Não ia entrar de uma vez na praça. A lembrança dos snipers e daquele bando de agentes armados ainda estava vívida em minha cabeça. Dei a volta por trás de um bloco comercial e parei numa esquina, perto da padaria.

De longe eu reconheci um dos agentes que acompanharam Ana ao hospital, aquela cicatriz tosca que ia da boca até a orelha era inconfundível. Ele estava à paisana, mas parecia em estado de alerta. E todo agente à paisana fica de óculos escuros e aquela pose de tira do FBI.

Revirei o lixo da padaria e encontrei um pedaço de pau, grande até, acho que armação de cama. “Quem não tem cão, caça com Deus”, dizia meu avô, abençoado seja. Segurei o pedaço de pau nas costas, gargalhando internamente com a excelente piada que isso daria no balcão do bar do Rubens, me enchi de coragem e atravessei a praça. Já estava quase no centro quando o agente me abordou.

__ Ei, você.

__ Fala, Tripa Seca.

__ Como é que é?

__ Nada. Nada não. Posso ajudar?

__ Tá indo aonde?

Fingi indignação, e ele percebeu que a abordagem não tinha sido das melhores. Acho que isso explicava a cicatriz na cara dele.

__ Me sentar num banquinho! Pensar na vida! Refletir!

__ Ah, não me diga.

__ É sério. Quer conversar?

O agente titubeou, mas aceitou o convite. Eu enchi o saco dele, coitado, e não sabia como me livrar. Falei do meu pai e como ele queria que eu fosse regente de orquestra, como ele. Falei da minha mãe e de como ela ainda me abrigava em casa, mesmo eu tendo mais de 40 anos. Falei de meu filho nascido aos meus quinze anos e de como a mãe dele, aquela riponga doida, levou o moleque pra uma sociedade alternativa e só me voltou agora, 18 anos depois, pra deixar um completo estranho sob meus precários cuidados. Falei de como eu não o suportava, de como eu odiava a mãe dele, de como eu odiava meu pai e de como minha mãe não me suportava. Falei do meu melhor amigo, que ele podia ter sido bem sucedido se não fosse tão conivente com os bebuns folgados que penduravam a conta há anos, eu inclusive, que nunca paguei um único copo de cerveja que bebi no Rubens. Falei da mulher que eu amava, de como ela tinha uns 20 anos a menos e não me amava, nem queria saber de mim. Falei, falei, falei. Falei tanto que o agente foi atrás de umas cervejas pra gente, e sentou e bebeu e falou. Falou, falou, falou. Ele era fraco pra bebida, logo vi, pendurou a cabeça no meu ombro e reclamou horrores do superintendente.

__ Mas o pior de tudo é aquela filha dele. Meu Deus, eu não suporto aquela mulher.

__ Por quê?

__ Porra! Ela pensa que é a Polícia Federal! Dia desses ela destacou um aparato completo da PF, com snipers e tudo, só porque um amigo dela tava virtualmente preso num hospital público. E agora eu tenho que ficar aqui, zumbizando a casa dela.

__ Sério?

__ Tou falando! Parece que o cara é o amor da vida dela, mas é só um velho desocupado. Isso foi o que o pessoal comentou depois.

__ Ah, não. Eu tenho certeza que ele tem um bom coração.

__ Pode até ser. Ou não. O cara é dono de boteco, pelo amor de Deus! E passou os últimos dias perturbando Deus e o mundo por causa de uma espátula.

__ Como é que é, amigão?

Meu estômago revirou, deu voltas. Ana e Rubens? Seria possível? Não, o Rubens jamais faria isso comigo, sabia que eu a amava, sempre soube.

Foi aí que vi Rubens sair da casa dela, acompanhado dela. Caminharam felizes e quase saltitantes, as mãos dadas, até a padaria. Me levantei num impulso absurdo, como se o banco estivesse em brasa, e corri até eles, brandindo o pedaço de pau tal qual espada. Rubens me olhou estupefato, sacou a espátula do bolso do jeans, mas não ofereceu resistência alguma.

Dias depois, acordei num lugar que parecia uma cela, suja e mal cheirosa. “Vazia, Deus é bom, Deus é justo”, eu pensei. Me levantei com alguma dificuldade e divisei Fernando, ladeado por um carcereiro e com uma marmita nas mãos, do outro lado das grades.

__ Oi, pai.

__ Lá vamos nós de novo. Puta que o pariu.



***

O primeiro post realmente escrito a quatro mãos, enquanto bebíamos idéias e trocávamos cervejas. Escrito dia 09/12/2007, numa das mesas da Adega da Cachaça.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Psicanálise

__ Então...Sr. Miguel Leal, é isso?

__ Isso, doutor. Miguel Leal. Não precisa me chamar de senhor. Só Miguel. Só Leal. Miguelito, como diz o pessoal do bar. Enfim.

__ Bom...primeiro vamos definir o porquê da sua presença aqui. Recebi um relatório de uma moça da editora que diz...

__ Foi a Rosana, não foi? Pode dizer, doutor, eu sei que foi aquela vaca mal comida.

__ Perdão. Não vou estimular esse palavreado dentro do consultório.

__ Ah, então o senhor é outro desses psicanalistas de merda que nem deixam a gente dizer o que pensa? Deus, como eu odeio aquela editora.

__ Voltando ao que interessa...o senhor foi encaminhado até aqui por “bloqueio literário”. E pelo que me parece, andou publicando material ofensivo na internet.

__ Foi só um textinho no blog. Besteira, doutor, besteira. A editora quis me processar, a Rosana quis me processar, não falei nem fiz nada demais.

__ O senhor tem um contrato de dez publicações em cinco anos. Por que fez isso?

__ Porque eu sou louco! Que outra explicação há de haver? Quem escreve dois livros por ano? Só o Paulo Coelho, e eu duvido que seja ele que escreva de fato, agora que está até aparecendo em novela. Sei lá porque eu fiz isso. Doutor, eu amo escrever. Amo. Mais que tudo. Não, não mais que tudo. Amo minha mãe e minha namorada. Aliás, só consegui ser publicado depois que a Ana entrou na minha vida, ela é uma maravilha de pessoa, o senhor precisa ver, doutor. Então. Mas depois da Ana e da minha mãe, eu amo escrever. E eu nunca tinha publicado porra nenhuma na vida, nem carta em matéria de revista semanal, sempre fui frustrado, sempre. Sempre. Mas aí conheci a Ana e meu estômago se encheu de borboletas e eu comecei a escrever de um jeito que desse certo e essa editora gostou e me contratou, não por obra, mas por período, o que é bom, mas dois livros por ano? Só um louco assinaria embaixo, concorda? O problema é que não consigo mais escrever, porque só quero falar de amor, mas não sei falar de amor sem ser brega, porque as pessoas são ridículas quando amam, são bregas, eu acordo ouvindo Roberto Carlos! O senhor acredita nisso?

__ E por que não escrever sobre amor?

__ Porque a editora não quer! Porque a Rosana é uma mal amada que não quer que as pessoas sejam felizes com seus amores bem resolvidos. Eu tentei, doutor, eu juro que tentei. Mandei mais de cinco rascunhos por semana. Todos com o mesmo tema, é claro. O amor e a felicidade de amar e ser amado e como o dia é mais azul e feliz quando o amor dá certo. Mas eles não querem. Querem que eu fale sobre maldade e doenças radioativas e bombas de hidrogênio.

__ Miguel...o que foi que você escreveu no blog?

__ Só umas coisinhas, nada demais. Foi desabafo, doutor, desabafo, coisa de pseudo-intelectual desocupado. Tá, xinguei a Rosana uma ou duas vezes, falei que ia rescindir o contrato e fazer fogueira dele. Mas é besteira. Eles que levaram muito a sério. O blog teve muitas visitas, vê bem, todo mundo na editora se amarrou porque finalmente alguém estava desmascarando a Rosana.

__ Aqui diz que ela entrou de licença médica. Você não se sente responsável?

__ Eu não. Acho até que vou escrever algo sobre isso. Ela é uma neurastênica.

__ E sobre essa visita? Vai escrever algo no blog sobre essa sessão?

__ Claro! E qual é o pseudo-intelectual que não se amarra em análise?

domingo, 25 de novembro de 2007

Post-it

A chuva vem fustigando a janela há alguns dias, e tem aquele silêncio morno que invade as persianas. E tem também aquele cobertor bem grosso. Tem o lençol que eu troquei ontem, aquele outro eu já deixei na lavanderia. Tem uma rotina, tem um dia-dia, tem um ser ou não ser que não é de fato. Tem um acordar diário bem cedo, levantar preguiçosamente junto com o sol. Tem um adormecer muito tarde, dormir cansada junto com a lua, que varou a noite no azul. Tem um trabalhar que cansa, e que é bom. Tem um ter você de novo. Tem a nossa música e a nossa cor, na janela, na persiana e no dia inteiro. No teu olho e no meu brinco. Tem tudo aqui, amor.

Cê precisa de outra coisa que não seja só isso?

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Catálogo de erros III

Ah, não adianta, você não entenderia mesmo. Eu me cansei de dizer, eu falei tantas e tantas vezes, você ignorou solenemente, ou foi um retardado de primeira grandeza, você nunca entendeu, puta que o pariu, eu detesto isso. Detesto falar com a sensação horrenda de conversar com paredes, ou com seres humanos tão sensíveis quanto, seu caso, seu sofrível caso. Sério. Só na última semana, que se Deus quiser vai ser a última mesmo, eu falei umas trinta vezes. Tudo, eu repeti mais de trinta vezes. Não, eu não fico contando, não seja idiota. Mas a impressão que tenho é essa. Troca a porra da chave que vai quebrar, e quebrou, e eu do lado de fora debaixo de chuva esperando o chaveiro. Troca a água das plantas que você insiste em manter e alimenta o seu cachorro, prestes a morrer de inanição, não fosse por mim, que mesmo detestando aquele bicho maldito ainda o alimentei nesses últimos dez anos. É, eu podia tê-lo deixado morrer, e daí? E daí que não sou você, sua ameba. É, eu detesto cachorro, mas não vou matar só porque você é um completo inútil e não cuida do que é seu. E aquele vazamento do banheiro??? Você viu o resultado, não viu? E você quase quebrou suas costelas escorregando lá, aquela água toda, só pra me dar o trabalho de te levar pro hospital e cuidar de você. Pára de fumar, eu venho te pedindo isso há quantos anos? Aliás, por que diabos eu estou com você há tantos anos, me diz? Me diz, se o amor acabou perto do terceiro mês, é essa minha mania de lutar, de conquistar, de mudar as coisas. Eu pensei que você fosse crescer, pelo menos um pouco, aceitar que a faculdade acabou e que a vida tava aí pra ser vivida de um jeito digno, minimamente decente. Mas eu me cansei. E olha que fui fiel, e fui imbecil, perdoei quando você me traiu com aquela vaca desgraçada que se dizia minha amiga. Na minha cama...você é um boçal e eu sou uma retardada, não tem outra explicação, não é possível, isso não está certo, nunca esteve.

Chega de reclamar. Suas coisas já estão separadas, eu não arrumei, você entende. Sua mãe vem te pegar daqui a pouco, e vê se leva essas flores ridículas. Já passa da hora de você perceber que eu detesto rosas.

domingo, 18 de novembro de 2007

Catálogo de Erros II

Aquele sapato cor-de-burro-quando-foge.
Ele só combina com o meu sorrisinho amarelo.

5 cocadas numa tarde.
Nem a TPM perdoa tamanha gula. Olho grande. Elas jamais sairão das minhas coxas.

As passagens da BRA.
Erro, mas eu não tinha como adivinha que aquela porcaria ia falir semanas depois... ou tinha?

Você.
Um erro gostoso, confesso. Mas um erro do tipo que eu adoro cometer só pra falar mal por um tempo...

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Eterno

Ah, minha amada rainha. Minha mulher. Eu não podia, simplesmente não podia te deixar partir. Eu, que te amei toda a minha vida, desde o início imemoriável dos tempos, desde que éramos apenas crianças e eu te dedicava toda a minha atenção. Não, rainha amada, não havia como permitir sua fuga. Eu, que não me vejo sem você. Você, mulher minha, que nunca conseguiu vislumbrar todo o amor que sempre tive por ti. Não, amada rainha, não me queira mal. Apenas me queira pra sempre, assim como eu sempre te quis. Por isso, amada minha, entenda. Foi só por isso que te matei.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

eu tô com tanta raiva de mim que eu queria só passar a raiva pra ti e te bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater bater tanto porque te espancar ia ser bem melhor do que qualquer coisa que eu pudesse fazer por mim

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

A fórmula mágica

Procuro não olhar enquanto ela fala. Essas acusações sem sentido me irritam, e quando eu me irrito as coisas sempre pioram pra mim. A mente feminina e os caminhos tortuosos que ela percorre quando uma mulher raciocina são coisas inexplicáveis. Neste exato momento estou sendo acusado de ser "insensível" e um "porco capitalista", porque não quis almoçar em casa esse final de semana. Pelo amor de Deus, não me perguntem como ela conseguiu chegar à essa conclusão, acho que nem ela sabe quais foram as conexões de raciocínio que a levaram até aí, o importante nessas horas é que ela me ofenda.

- Amor, eu só queria fazer algo diferente.
- Deixa de ser cínico, Cláudio. Você está dizendo isso agora pra tentar contornar a situação.

Ah, sim, claro. Eu causei a situação toda, como sempre. Eu adoro restaurante e ela sabe disso, só queria saber porque cargas d'água justo hoje ela montou toda essa tragédia grega por causa de um simples almoço. A vontade de arrancar alguns dentes dela está crescendo. Pego a chave do carro e começo a caminhar em direção à porta.

- Isso, foge mesmo, seu covarde. Medroso! Covarde!

Chega, essa foi a gota d'água. Eu volto, dou um tapa na cara dela, aponto-lhe o dedo em riste e declaro solenemente:

- Acabou a palhaçada! Estou indo almoçar fora, se quiser venha comigo, se não quiser fique aqui. Na volta eu quero dar uma trepada e se você não quiser eu vou conseguir uma na rua. Fui claro?

Ela ficou parada com a mão na cara me olhando com aquele ar de incredulidade. Então eu pergunto:

- Vamos?

Ela levanta pega a bolsa e sai caminhando à minha frente, tão silenciosa quanto se estivesse indo a um velório. Acho que encontrei a fórmula mágica.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

A Fé Solúvel

Ajoelhada Roberta reza novamente, agora sem esperanças, para um Deus que nunca a ouve. Seus joelhos machucados pela fé que nunca a ajudou em nada já não suportam mais o mutismo intransigente e a passividade de um ser superior que vive a ignorá-la. Suas lágrimas já secaram e até mesmo a dor passou.
Roberta sempre fora um exemplo de fé inabalável dentro de sua comunidade, até o dia em que cruzara com Klaus. Um jovem modesto e cheio de ambições que levava a vida da maneira mais objetiva possível. Dir-se-ia dele uma dessas pessoas práticas para quem o tempo vale muito e não pode ser desperdiçado com algo que não gere retorno imediato.
Conheceram-se e se apaixonaram. Ela, sempre firme em sua fé, pedia-lhe somente os domingos, reservados única e exclusivamente para Deus. Todos os outros dias da semana seriam dele. Ele de início aceitou, achou até bonita aquela celebração semanal de uma fé tão fervorosa, coisa que até então desconhecia. Porém o tempo, como sempre, revelou-se o formidável combustível para incendiar o fogo da destruição causado pelas diferenças.
Klaus trabalhava de sol a sol, sempre pragmático e objetivo na construção daquilo que ele dizia ser seu império, e nessa ganância de sempre obter mais para comprar mais e desejar mais começou a aceitar trabalhos noturnos. "O dinheiro é o ópio dos homens sábios" dizia ele, e considerando a si mesmo um homem sábio, fazia jus à própria afirmação. Nesses acasos que constituem a vida, Klaus e Roberta foram se distanciando um do outro pelo trabalho que agora o consumia, acabando por restar somente o dia de domingo livre para se verem.
Roberta, que era realmente apaixonada por Klaus, encontrava-se dividida entre o amor a Deus e o amor ao namorado. Não queria abrir mão de nenhum dos dois, pois amava a ambos intensamente. Até que, dividindo-se da maneira que podia, recebeu o ultimato:

__ Roberta, larga dessa história de Igreja. O único dia que temos é o domingo. Eu não agüento mais ir à missa.
__ Ah, amor, não me peça isso. Ia ser muito mais fácil se você diminuísse sua carga de trabalho.
__ Diminuir meu trabalho? Nunca! Absolutamente tudo que conquistei foi devido a ele. E ainda tenho muito mais a conquistar.
__ Eu sei, eu entendo...mas desde que você começou a trabalhar tanto a gente quase não se vê mais. E eu não posso abandonar a Igreja. É o único dia que tenho reservado a Deus, não posso abrir mão dele.
__ Mas, Roberta...isso funcionava antes, quando tínhamos tempo suficiente pra nos vermos durante a semana. Agora, com o meu trabalho, não faz mais sentido. Vá à Igreja durante a semana, se quer tanto. Deixe o domingo pra gente.
__ Não posso! Tenho trabalho, tenho faculdade durante a semana. Além disso, tenho compromissos nas missas dominicais, o Padre João conta comigo. Não posso, Klaus, não posso!
__ E o que vamos fazer então?
__ Ora...já lhe propus isso, mais de uma vez...trabalhe menos.
__ Não vou, Roberta. Você sabe que posso crescer mais e mais na minha área, e pra isso preciso de total dedicação.
__ Só o que estou te pedindo é que se dedique a nós também.
__ E eu estou te pedindo a mesma coisa, Roberta. Exatamente a mesma coisa.

Roberta perdeu dias e dias tentando encontrar uma solução para seu caso, crente na sua fé inabalável que Deus acabaria por dar respostas. Tentou conversar com a mãe, a quem considerava uma mulher sensata e ponderada, mas só o que ouviu foram palavras de desânimo, pois tanto ela quanto seu pai desaprovavam Klaus veementemente. Achavam sua ambição negativa e um péssimo exemplo para a filha, sempre tão dedicada e subserviente. Suas amigas também não simpatizavam muito com ele, por não ser da Igreja, sequer tinha feito a Primeira Eucaristia. Padre João, porém, costumava ser seu bastão de tranqüilidade, e foi ter com ele dias após a última conversa com o namorado.

__ Padre, me perdoe, pois eu pequei.
__ Quando foi sua última confissão, minha filha?
__ Há duas semanas, padre.
__ Sim...o que houve?
__ Padre...o senhor sabe que namoro esse rapaz, Klaus, há coisa de seis meses. Mesmo ele não sendo uma pessoa de fé, aceitou a minha prontamente, por me amar e me respeitar. Mas logo isso se tornou um problema. Não a minha fé, exatamente. Ele começou a trabalhar demais e ficamos sem tempo para que pudéssemos nos ver. Na verdade, padre, o único dia em que podemos nos ver é o domingo.
__ Mas aos domingos tem a Igreja, Roberta.
__ Sim, padre, eu sei. Eu argumentei isso com ele. Pedi a ele que continuasse a compreender e aceitar, mas ele está irredutível. Pedi a ele que trabalhasse menos, pois assim eu não precisaria abandonar a Igreja, mas ele sequer considera essa possibilidade.
__ E quais são as razões dele para trabalhar tanto?
__ Ele é uma pessoa prática, padre. Além disso, bastante ambiciosa. Costuma esperar por resultados imediatos às suas ações, e sempre acha que há mais por se conquistar. Mas não é uma ambição negativa, padre, de forma alguma. Ele jamais faria mal a alguém ou a si mesmo pra alcançar seus objetivos.
__ Mas não é exatamente isso que ele está fazendo, Roberta? Abrindo mão do amor que você tem por ele, que vejo ser verdadeiro, pra conseguir tudo o que quer? Colocando você contra a parede? Responda-me...você acha isso justo, Roberta?
__ Padre, eu o amo, e sei que ele me ama. Não quero que ele perca nada por mim. Mas não quero perder nada, também. Não quero me afastar da Igreja ou abalar minha fé, por um único momento, por causa dele.
__ Sua fé já está abalada, minha filha. Do contrário, você rechaçaria de pronto qualquer chantagem nesse sentido. Lembre-se, Roberta, o amor de Deus é o único verdadeiro. É o único que vai seguir contigo por toda a vida, é o único que tem como recompensa a verdadeira felicidade.
__ Mas, padre...
__ Você tem que fazer uma escolha, Roberta. É o único caminho que lhe resta. Agora eu te repasso essa penitência, para que se arrependa por questionar o amor de Deus.
__ Amém, padre. Amém.

No domingo seguinte Roberta não foi à missa pela manhã, passando na casa de Klaus logo cedo. Quando chegou o viu sentando na varanda, com uma caneca do que provavelmente seria café, um meio sorriso nos lábios. Seu cachorro corria freneticamente de um lado para o outro.
__ Bom-dia, Klaus.
__ Roberta...você não me avisou que vinha.
__ Pensei em conversar. Precisamos conversar.
__ Tudo bem. Estou ouvindo.
__ O que há com esse cachorro?
__ Nada. Só dei um pouco de café pra ele.
Roberta ficou chocada. Sabia que Klaus tinha umas idéias bastante perturbadoras, mas nunca o tinha visto colocar nenhuma delas em prática.
__ Você deu café para o cachorro? Isso é perverso!
__ Eu nunca me diverti tanto.
__ Meu Deus, Klaus, eu...enfim. Não importa. Vim para falar sobre a situação do nosso namoro. Quero saber se você vai continuar irredutível.
__ Roberta, de uma vez por todas, entenda. Eu não vou abrir mão do meu trabalho por causa do seu capricho.
__ Não é capricho, Klaus, isso é minha fé! É a única coisa na qual acredito, é a minha vida!
__ Meu trabalho é a minha vida. Eu vim do nada, Roberta. Olha pra mim agora. Será que você não percebe? Como você espera ter tranqüilidade, segurança, conforto, se eu não trabalhar pra conquistar tudo isso? Diga-me, Roberta, com sinceridade, do que vamos viver? Da sua fé? Vamos viver de amor e fé? Isso é ilusório.
__ Deus nos concede tudo.
__ E você por acaso tem uma conta bancária onde Ele, o Todo Poderoso, deposita a pensão mensal pra você pagar suas contas? Ele te alimenta?
__ Alimenta minha alma.
__ Chega, Roberta. Honestamente, me encanta que uma mulher sensata e inteligente como você tenha cegado à realidade.
__ O que me encanta é que você tenha se transformado nesse monstro egoísta e mesquinho. Você só pensa em dinheiro, Klaus.
__ E vou pensar em quê? Preciso viver, Roberta. E o seu Deus não vai me prover, disso eu tenho certeza.
Klaus tomou o café de um gole só e atirou a ponta apagada do cigarro no cinzeiro.
__ Eu te amo, Roberta. Mas acho melhor passarmos um tempo distantes um do outro. Reorganize suas prioridades.
__ Você está terminando comigo, é isso? Está terminando comigo porque eu tenho a minha fé?
__ Não, Roberta. Estou terminando com você porque não sei quem você é.
__ E você, quem é? Veja como o dinheiro talhou você, Klaus. Você costumava ser carinhoso e sonhador. Agora é um arrogante ambicioso que só espera benefícios. O Padre João estava certo.
__ Você falou com o padre sobre mim?
__ Falei com ele sobre nós. E sabe o que ele me disse? Disse que se você fosse realmente uma boa pessoa jamais me pediria pra abandonar a Igreja só porque você não pode fazer um sacrifício mínimo por mim.
__ Ah, não? E todas as manhãs que acordei mais cedo pra te acompanhar à missa? E todas as tardes que perdi ouvindo o mesmo sermão o dia inteiro? E o tanto que eu deixei de lado por você, Roberta? Não seja injusta. Eu te amo, Roberta. E fiz isso porque eu te amo. Só não posso fazer mais.
__ E por que não?
__ Porque você não me ama.
Klaus assoviou para o cachorro, que continuava sua corrida frenética sem demonstrar sinais de cansaço e sequer lhe deu atenção. Deu as costas à Roberta e entrou em casa sem dizer palavra, batendo a porta atrás de si.
Ele realmente amava Roberta. Realmente queria aquela mulher em sua vida, por sua dedicação, sua inteligência e por todo o amor que ele achava que ela sentia. Sem contar-lhe nada, Klaus fez planos para os dois, deixando um pouco de lado seu comedimento natural, pois acreditava que seria feliz ao lado dela. Tencionava lhe pedir a mão em casamento quando um ano de namoro se completasse, mesmo sabendo que os pais dela o detestavam. E por isso vinha trabalhando tanto...além de sua satisfação pessoal, queria dar à Roberta e aos seus filhos o que ele nunca teve.
Porém Klaus era, acima de tudo, uma pessoa realista. Não perdia tempo em devaneios e nem acreditava que o sobrenatural viesse resolver o que competia a ele próprio. Por isso, perdeu um compasso quando entrou em casa, deixando uma Roberta chocada do lado de fora. Mas, passados poucos minutos, ligou o computador do escritório e deu início ao seu processo pessoal de limpeza: excluiu fotos, e-mails e o projeto de cinco anos que havia estabelecido para ambos. Depois, abriu a pasta do trabalho e adiantou todo o serviço da semana. Na certa, ganharia uma excelente bonificação por isso.
Roberta, por sua vez, dedicou-se completamente à Igreja, freqüentando todas as missas e grupos que seus horários permitiam. Condenou a si mesma por ter acreditado em Klaus e no amor que ele dizia sentir, aplicando a si mesma uma pena severa que seguia à risca. Seus pais ficaram extremamente preocupados e solicitaram a intervenção do Padre João, mas Roberta estava irredutível. E acreditava que Deus iria recompensá-la por tanto esforço, aceitando seu sincero pedido de perdão e seu arrependimento.

Dedicando-se integralmente à Igreja, Roberta acabou deixando de lado o trabalho e a faculdade, acabou negligenciando a família e os amigos, e em pouco tempo se viu completamente sozinha.
Sem perspectiva, Roberta resolveu procurar por Klaus, depois de meses sem nenhum contato, nenhuma notícia. Descobriu que ele havia sido transferido para a sede da empresa, em outro estado, para ocupar um cargo de alto prestígio e alto salário. Descobriu que ele ainda podia alçar vôos maiores, por sua dedicação, competência e ambição. E até pôde imaginar Klaus feliz, por ser isso tudo que ele sempre quis, tudo pelo que ele sempre lutou. E ela, o que exatamente tinha? Pelo que havia lutado? Quais eram as suas conquistas? Pela primeira vez em sua vida, Roberta sentiu revolta e cansaço. Roberta pôde ver a si mesma completamente abandonada, porque o Deus em quem ela tanto acreditava parecia ignorá-la completamente. Pela primeira vez ela se permitiu a questionar se esse Deus realmente existia, se realmente era bom e misericordioso...e se existia, qual seria a verdadeira razão para que Ele permitisse que isso tivesse acontecido a ela. E se lembrou de uma frase que ouviu de Klaus, há meses, assim que começaram a brigar: “Deus é perverso a maior parte do tempo. Nos joga aqui e ainda espera que nos arrependamos pelos atos que ele diz que podemos tomar. E enquanto nos deixa aqui, sequer se digna a nos ouvir ou atender nossas preces”. “Mas podemos conversar com Ele. Pra isso existe a confissão, Klaus. Nós falamos e Ele nos ouve. Depois Ele nos responde, seja pela Eucaristia, seja pelo sermão do padre. Nós falamos, um de cada vez. E ouvimos, um de cada vez”, retrucou Roberta. Klaus, incrédulo, apenas respondeu: “dois monólogos não fazem um diálogo”.

Klaus estava sentado na varanda de sua nova casa. Seu irmão estava em casa, para uma visita. O cachorro, mais uma vez, corria freneticamente.
__ Você deu café para o cachorro de novo? Meu Deus, Klaus, você é doente.
Klaus sorriu, satisfeito. Acendeu um bom charuto cubano, deu uma golada no excelente Johnny Black que ganhou por ajudar um amigo e suspirou:
__ Ah...isso sim é que é vida.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Carta para Clariana

Clariana,

Sei que as coisas têm sido difíceis entre nós, se é que eu ainda posso dizer que existe "nós". Essa situação esquisita em que o nosso relacionamento se encontra tem me deixado louco! Tenho pensado noite e dia em todos os acontecimentos de que posso me recordar, lembrando-me dos mínimos detalhes em busca de uma pista qualquer que me indique onde foi que eu errei. Sim, penso desta maneira, que o erro foi meu, porque é fato que eu não vejo nenhum erro de tua parte.

Sempre dedicou-se a mim de corpo e alma, com essa devoção fervorosa quase impossível de se ver nos dias de hoje, e isso conquistou-me e deixou-me mal acostumado. Onde estão as ligações perguntando como estou, onde estou ou o que tenho feito? Teu cuidado me faz falta, assim como faz uma falta imensa aquele brilho especial que eu via em teus olhos sempre que nos encontrávamos, e aquele sentimento de que o peito estava prestes a explodir de saudade, antes mesmo de terminarmos nosso beijo de despedida. Onde está essa Clariana que me conquistou?

Hoje mal me liga, quando nos vemos está sempre dispersa, sempre distante, e quando nos despedimos parece que estou te tirando um peso enorme dos ombros? Por favor, não agüento mais essa situação! Eu pergunto todo santo dia o que está acontecendo e esse teu silêncio me fere mais do que se uma adaga em brasa tivesse sido transpassada em meu coração! Ao menos me dê uma resposta! Tenha ao menos a dignidade de falar que não me quer mais, que eu não sou mais o homem da sua vida, que não quer mais ter filhos e um futuro comigo e todas as outras coisas que sempre disse, mas não me torture mais com a tua indiferença e esse teu silêncio. Se há algo que me fere mais que as tuas palavras é a total ausência delas.

Esta carta é meu último recurso em busca de uma resposta para tudo o que tem acontecido. Quem sabe escrevendo não se solte mais e me conte o que está acontecendo. Por favor, não me negue uma resposta a esta carta. É tudo o que eu te peço: as coisas como elas realmente são, preto no branco.

Beijos,
Marcos Aurélio Damasceno

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Pequena epifania

"Aliás, se o presente só surge para virar passado, não daria para dizer que o tempo é uma caminhada rumo à não-existência?"
Santo Agostinho

Estava a pensar nisso, confusa e desesperançosa. E se isso é realmente inevitável? Porém, via de regra, desviei meus pensamentos. Minha cabeça pensa o que quer, coisa mais incômoda, estou sempre a pensar em outras coisas. A velha questão nova: quanto perco? De que vale essa caminhada se tudo se acaba num não-existir infinito? Sendo assim, não há mais o que se conquistar, perder ou temer, pois tudo vira "pó, cinza e nada". E me escondendo atrás de falsas premissas vou negando meus desejos, silenciando minhas vontades e negligenciando vivências a mim mesma. Pronto. Acabo de criar o conceito de auto-embargo.
Lógico, existe uma motivação para essa cadeia melancólica de conclusões apressadas. Se não existe pena, o pecado não tem valia. Se o pecado nada vale, nada vale te querer, pois ainda que me seja concedido o gratificante direito de te provar, cedo ou tarde isso há de ser relegado ao esquecimento, e nada mais saboroso que o usufruto da memória. De outra feita, me satisfaço com o eterno benefício da dúvida. Se hei de prová-lo, mais dia menos dia? Não sei...E como sou covarde, prefiro não saber, por não saber quem és nem o que esperar de ti. Prefiro permanecer neutra, vendo teus exércitos invadirem meu país, sem querer lutar pela posse de mim mesma. A velha pretensão falha de sair na chuva sem me molhar. Quero dizer, de que adianta te querer, te ter, se hei de ter perder, invariavelmente?
Então vou me guardando nessa redoma pouco nítida, onde meu mundo tem dias de 50 horas que não passam, e até o Sol faz seu percurso num ritmo mais lento que o de costume. Uma sensação? Frio. Um sabor? Amargo. Uma cor? Preta. Um desejo? A inércia completa. Uma saudade? Você.
Aliás, por onde andas enquanto te procuro?






Escrito em março de 2006.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Idealização

Angustiado. Assim me sinto agora. Consegui em pouco tempo estragar tudo, como sempre, mas não é culpa minha, pelo menos não diretamente. Sou dessas criaturas sensíveis que se deixam levar pelo arrebatamento de uma paixão repentina e põem-se a fantasiar o futuro e as diversas possibilidades que existem entre o agora e o porvir. Dentro desses devaneios sou capaz de criar as mais diversas probabilidades de um relacionamento feliz, porque assim sou: dedicado de corpo e alma ao bem-estar de ambas as partes dentro de uma relação. Em minha imaginação, eu vejo o teu sorriso e os teus olhos olhando dentro dos meus, como se não fosse capaz de conter sozinha toda a paixão que sente e precisasse de alguma maneira comunicar-me que eu faço parte de tudo isso, como se toda a tua felicidade estivesse contida apenas na minha existência. Imagino-te ao meu lado fazendo todas essas coisas que ninguém mais faz porque estão todos tão ocupados vivendo suas vidas corridas e sem emoção, que acabam se esquecendo que a companhia de quem amamos é a melhor em qualquer momento, até mesmo nos mais simples: vejo estrelas, vejo a lua em todas as suas fases, vejo o sol poente, vejo o sol nascente, vejo o céu limpo e nós dois caminhando lado a lado em um gramado, assim como vejo o céu nublado e nós dois deitados juntinhos assistindo um filme. Sinto tua cabeça deitada em meu peito, e sinto teu cheiro, o cheiro de teus cabelos, a textura de tua tez, o gosto de teus lábios e me perco nessa imensidão toda do teu ser. Um ser que idealizei, e que agora trago aqui comigo corroendo meu peito, por não saber se existirá sequer uma parte ínfima de tudo aquilo que eu criei. Eis a razão da minha angústia. Por quem estou apaixonado? Por você ou pela pessoa que a minha paixão criou?

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Carta de Carlos para Carolina (parte I)

Belo Horizonte, 25 de maio de 2007

Carolina,

Escrevo para nos aproximarmos um pouco mais um do outro. As coisas têm sido difíceis entre nós dois devido a essa maldita distância que, ao mesmo tempo em que enleva e potencializa meu amor por você, tem me deixado cada vez mais doente de saudade. Não sei nem ao certo como começar, tendo em vista que esta é a primeira carta que eu escrevo de punho próprio. Acho melhor começar explicando porque estou escrevendo uma carta ao invés de enviar um e-mail. Aliás, vou falar de como anda a minha vida. E logo você vai entender o porquê da carta.

Essa semana parece que todas as forças que regem o mundo resolveram conspirar contra minha pessoa. Segunda-feira eu acordei passando muito mal. No domingo eu estava com muita preguiça de cozinhar e resolvi jantar fora de casa, mas acho que eu ainda não me acostumei a essa cozinha mineira tão cheia de temperos. O resultado foi que eu só consegui chegar no trabalho no meio da tarde.

Na terça, por causa do trabalho acumulado, em função da segunda mal trabalhada, eu tive que levar trabalho pra casa. Recebi um e-mail de um colega do trabalho que estava com vírus e meu computador foi pro espaço. Então, resolvi me acalmar dando uma volta. Lembra que na terça você ficou de me ligar? Então, durante a volta caiu uma chuva torrencial e eu estava sem guarda-chuva no meio de um descampado. Cheguei vivo em casa, mas meu celular vai precisar de uma missa de sétimo dia, porque ele não quer mais ligar. O coitado ficou todo encharcado!

Quarta-feira eu cheguei atrasado no trabalho porque eu usava o maldito celular como despertador pra acordar. O chefe me passou um pito daqueles por ter chegado atrasado duas vezes na semana, e o pior de tudo, por estar com o trabalho atrasado. Ele me falou coisas horríveis e eu, já muito puto com a minha semana de azar, acabei respondendo a altura. Não fui demitido, mas acabei recebendo uma advertência... se eu receber mais uma volto pra Brasília antes do esperado. Ah, isso seria realmente ótimo. Só que se eu voltar é sem emprego e com alguma dificuldade de ser contratado em qualquer lugar que seja, porque o homem é cheio de contatos.

Na quinta-feira as coisas começaram a andar melhor, porque eu recebi como pagamento de uma dívida uma garrafa de uísque bem carinha. O cara me devia R$ 50,00 e a garrafa valia R$ 89,00 (eu fui ver o preço pra saber se eu não tinha sido enganado, né). Eu achei que a sorte estava começando a mudar, então chamei o Klaus pra consertar meu computador. Aquele bêbado só veio porque prometi dar o uísque a ele. Eis que chegando aqui, terminando de arrumar o micro, ele abre a garrafa e dá um gole: o uísque era falsificado. Ele ficou puto e me obrigou a comprar outra garrafa pra ele "porque ele tinha saído de casa só pra isso". Acho que ele não deixou a internet funcionando por vingança.

Hoje é sexta-feira e graças a Deus não é dia 13. No trabalho tudo correu bem, apesar do chefe ter passado o dia me olhando meio atravessado. Ainda assim eu consegui colocar o trabalho em dia. Saí de lá e passei na Vó Dita, aquela benzedeira que mora na esquina aqui da rua. Amanhã eu compro outro celular e poderemos pelo menos nos comunicar através de mensagens. O Klaus me deixou sem internet, e enquanto eu não arranjar outro uísque, sei que ele não vai dar a mínima.

Queria muito que você estivesse comigo. Apesar de saber que problemas assim vão surgir, penso que estar com você facilitaria o processo, porque tua presença me acalma. Mal posso esperar pela hora de te ver, te abraçar, mal posso esperar pela hora de esquecer esses dias só por estar perto de você.

Me dê notícias suas, amor meu. Como se não bastasse a distância, o silêncio só aumenta a ausência. E me diz o que achou da letra. Se for o caso, te escrevo uma carta por semana.

Não se esqueça que te amo, e sempre que puder, me deseje boas vibrações. Essa semana foi um completo pesadelo. Chego a ter medo do que está por vir.

Beijos,

Carlos Cavalcante Neto








O primeiro de uma série de posts em dupla.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Amar é para os loucos

Sábado à noite, eu estou tentando terminar de me arrumar e fico aguardando um telefonema que eu sei que não vou receber de uma pessoa por quem estou apaixonado mas que só sabe da minha existência por mero acaso do destino. Onde diabos eu estava com a cabeça quando dei meu telefone a ela assim, sem mais nem menos?! Ela deve ter aceitado por pena. Não que eu seja uma criatura feia horrendamente grotesca e digna de pena por possuir uma aparência miserável, muito pelo contrário, sou até bem-apessoado, ás vezes até acusado de ser bonito, mas o fato é que entregar assim, de maneira tão subserviente, o meu telefone com aquele maldito olhar-de-cachorro-sem-dono, que eu luto para não fazer, mas minha personalidade patética e humilde insiste em manter, é uma coisa de realmente dar pena em qualquer ser humano que tenha um bom coração, imagine então em pessoas como Madalena, que possui a fama de ser a mulher mais cruel com quem um homem pode cruzar em sua patética vida.

Madalena... Madalena... ruiva de olhos azuis, corpo esguio, busto farto e um quadril de deixar louco o mais sério dos homens. Foi criada com a melhor embalagem e o pior conteúdo. E enquanto eu termino de me arrumar para sair e ver se me encontro com essa mulher que é a minha doença, a minha paixão e o meu desespero, não deixo de pensar no quanto eu sou ridículo, talvez até mais ridículo que meus predecessores porque eles foram humilhados sem nem saber com quem lidavam, ao passo que eu já conheço toda a história de Madalena. Sou uma ovelha procurando pelo lobo.

O telefone toca, eu corro feito um louco para atender. Retiro o telefone do gancho, tento me recompor, afinal de contas correr 3 metros com obstáculos é uma tarefa que tira o fôlego de qualquer fumante. Regulo a respiração, coisa que infelizmente não consigo fazer com meu coração que bate de maneira louca e desordenada ante a expectativa de ouvir a voz dessa mulher que para mim é ao mesmo tempo maravilhosa e obscura.

- Alô?
- Oi, quem fala?
- É o Jorge.
- Jorge é Madalena, tudo bem?
- Tudo.
- Então, meu bem, eu estava pensando em passar no Hell'o'rama hoje, aquela boate nova que abriu na Independência.
- Tudo bem pode ser.
- Compra uma carteira de cigarros pra mim, eu estou sem dinheiro.
- Claro, meu anjo. O que você quiser.
- Te pego que horas?
- Me encontra lá eu vou de carona com o Zé Luiz, meu ex-namorado.
- Tudo... tudo bem.
- Algum problema?
- Não de forma alguma, até logo.
- Até mais.

Desligo o telefone, em meio ao deslumbramento do telefonema, que foi tão esperado quanto inesperado, e à decepção de saber que ela não será somente minha nunca. Ela praticamente me avisou que eu não sou único na sua vida. Essa história de amizade com ex-namorado recente é conversa fiada. Ninguém mantém amizade com um parceiro de um relacionamento recém terminado a não ser que ainda haja sexo e cumplicidade. Agora estou indeciso entre a realização de um desejo voraz que me consome e me atormenta e a manutenção da minha dignidade, do meu amor-próprio. Ah, Madalena, não sei o que faria com você, mas tenho muito medo das coisas que eu faria sem você após tê-la possuído por um dia só que fosse.

Termino de me arrumar escovo os dentes e volto a me olhar no espelho me achando ainda mais patético que antes, talvez com um ar de homem humilhado, ultrajado por alguém que nem mesmo tem esse direito de ultrajar-me. Acho que estou ficando louco, dizem que amar é coisa de louco e eu concordo plenamente que as coisas se passam na minha cabeça em um turbilhão de sentimentos, lembranças, desejos e saudades de coisas que eu ainda não vivi de verdade, mas que minha mente, fantasiosa e infantil, criou e que no íntimo do meu ser eu acredito que foram cenas reais, que me renderam sensações carnais reais e das quais possuo até mesmo as cicatrizes que ninguém além de mim consegue ver.

Saio de casa, sigo direto para a Independência, lá chegando eu lembro que me esqueci de abastecer o carro e procuro o posto de gasolina mais próximo. Paro o carro e instruo o frentista:

- Completa, por favor.

Desço e vou á loja de conveniência comprar a carteira de cigarros e imaginem a minha surpresa ao encontrar Madalena aos amassos com o ex-namorado. E eu juro, por tudo que há de mais sagrado, não há sentimento mais humilhante para um homem do que ver outro concretizando o desejo mais íntimo que possui. Antes de ir ao balcão comprar o maldito cigarro eu caminho até o casal de pombinhos que está quase se comendo em público dentro da loja e mal nota a minha chegada, acendo o isqueiro e ponho fogo nos cabelos de Madalena. Ela demora a notar, mas quando dá por si já é tarde demais para salvar um fio de cabelo que seja. Então ela se põe a gritar e não sabe se chora se tenta me socar ou joga alguma coisa na própria cabeça para diminuir a dor das queimaduras no couro cabeludo. O pateta do ex-namorado ficou lá atônito sem saber o que fazer, olhava para Madalena, depois olhava para mim e permanecia imóvel com aquele olhar vidrado de quem não sabe o que está acontecendo ou às vezes até sabe o que se passa, mas não sabe como reagir à situação.

Eu avanço em sua direção, empurro Madalena em cima de uma estante de salgadinhos Elma Chips, o outro me olha com aquela expressão de medo. Ah... como eu adoro esse olhar de medo, ele nos torna mais fortes, mais destemidos, mais obstinados. Seguro o canalha pela gola da camisa e começo a socá-lo repetidamente. O primeiro soco pega logo abaixo da boca, ele tentou desviar. Eu bato a sua cabeça na parede com força, ele parece atordoado. O segundo soco é preciso: quebrei-lhe o nariz. Eu continuo a socá-lo e ele parece estar perdendo a consciência. Madalena se levanta e tenta me agredir. Eu a chuto, jogo o pateta do ex em cima dela e saio da loja de conveniência sob o olhar amedrontado de todos os presentes. Ninguém se atreveu a tentar me parar.

Volto para o carro pago o frentista e deixo uma gorjeta generosa. Ligo o carro e volto para casa, onde uma caixa de havanas e um Jack Daniels me aguardam. Amar é para os loucos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Catálogo de erros

Café.
Parei pra pensar nos eventos recentes e nunca me senti tão cansada. Porque nunca penso no que quero exatamente, e minha mente caprichosa e treinada me boicota, procurando sempre pelos lances futuros. Nunca nada acaba pra mim.
Cigarro.
Dia desses até considerei a possibilidade de voltar para a casa da minha mãe. Pude me ver tirando meus livros das caixas e tentando reconquistar meu espaço, com aquela sensação tardia de que a casa da sua mãe, por pior que seja, é melhor que a casa de seu marido. Certo, não é bem isso que penso verdadeiramente. Tampouco quero senti-lo. Prefiro acreditar que a casa do meu marido vai ser boa um dia. Afinal de contas ela também é minha.
Água.
São quase três. Dentro em breve ele vai se levantar para o duo água-banheiro, vai me ver no sofá, me olhar com pena e perguntar “ainda acordada, amor?”. Vou olhá-lo com resignação e dar um meio-sorriso, cheio de significação, que vai passar despercebido ao coração simples dele.
Simples, não simplório.
Simplória sou eu. Vou reclamar de enxaqueca todos os dias, e ainda assim vou tomar café de madrugada.

*****

O Gabriel vai viajar de novo. Vai passar duas semanas longe, de novo. Posso até ver a nossa cama vazia. E a dele, num hotel luxuoso, certamente preenchida com uma vagabunda desqualificada. De novo.
Por Deus, quando vou pôr um fim nisso? Até quando vou manter essa relação doentia com alguém que não me ama, só porque eu pretensamente o amo? Como eu pude permitir que ele destruísse um casamento perfeito? Aliás, como eu pude destruir um casamento perfeito? Porque certamente ele não encontrou aqui, em mim, aquilo que ele sente falta, e talvez por isso procure por aí. Ou não. Vai saber.
Sim, já pensei em vingança, milhares de vezes, cada viagem é um plano novo. Já pensei no irmão, no melhor amigo, no pior inimigo. Mas são todos fiéis, por incrível que pareça. Ou seriam, não sei verdadeiramente, nunca tive coragem pra tentar, sou um caminhão de barbaridades sim, mas meio covarde. Além do mais, Gabriel já deve tê-los alertado, existe alguma maneira de se proteger de mim, eu sei.

*****

Terapia.
E remédios, e crise, e choros. Minha cama vazia. O ódio do Gabriel assolando meu peito. Minha mãe alcoólatra tentando destruir o pedaço que resta. O melhor amigo a salvo.
Preciso de um exorcista.
[Muito fácil culpar o capeta].

****

Na rua, um dia qualquer, fui abordada por uma criança, que me sorria como se me amasse. Como se eu fosse sua mãe. A Bia disse que é um sinal divino, algo está por vir. Mas deixei de acreditar nessa baboseira espiritualista. Nada acontece. Além do pavor absoluto que tenho por crianças. Nesse dia, nada de remédios. Hard rock e tequila pra dormir.

*****

Voltei agora da casa do Gabriel, aquela que também era minha. Fui pegar uns itens que havia esquecido deliberadamente por lá, pra ter a desculpa de voltar. Gabriel estava sentado na rede da varanda, tomando um chimarrão. Uma mulher me atendeu, me foi solícita, por fim tive de mandá-la ao inferno, ninguém é educado assim de uma maneira não-proposital. Ele veio ter comigo, me levou ao quarto, fizemos sexo selvagem e eu me senti um lixo, pior que qualquer uma das desqualificadas com quem ele me traía costumeiramente.
Da próxima vez que eu voltar, vou pegar tudo de uma vez e parar com essa encenação ridícula.

*****

O melhor amigo me procurou. Queria conversar sobre tempos imemoriáveis, de antes mesmo da faculdade. O resultado final foi dizer que era apaixonado por mim desde sempre, que havia caído em depressão quando me casei com Gabriel, que agora não havia razão para que não ficássemos juntos. Excluindo o fato soberano que eu amava meu ex-marido desesperadamente, sobre todas as coisas, e que estava considerando a possibilidade urgente de perdoar. O melhor amigo pareceu se chatear, insinuou que eu o havia usado, me deu as costas com um profundo pesar que pude até sentir. Vê? Ninguém pode se proteger de mim, no fim das contas.

*****

A Bia ficou feliz de saber que eu estava grávida. Só ela, coitada. Jura que vai ser madrinha. Eu não posso ser mãe. Não tenho condições psicológicas pra parir um ser humano que futuramente, e num futuro breve, há de me trair. Sem contar o detalhe que eu não sei quem é o pai. Vou fazer exames na próxima semana. Porém, como sou sortuda, a contagem há de se iniciar justamente na semana em que meu ex-marido estava viajando.

*****

Gabriel não ficou feliz de saber que seria pai. E eu não precisei mentir, tampouco. Só disse a ele: você será pai. Disse pelo telefone, por Deus, eu sou muito esquisita. E agora nem posso tomar remédios, nem tequila, largo o cigarro no mais tardar até o fim da semana. E minha mãe alcoólatra não quer ser avó, julga não ter idade, por Deus, a mulher tem quase sessenta anos. Só a Bia, cara amiga, continua feliz com essa palhaçada. Acho que vou dar a criança pra ela. Não, não o faria! Já disse que sou uma covarde. Mas dá vontade.

*****

Perdi o filho. Caí da escada e perdi o filho. A Bia disse que foi não-proposital sendo o mais proposital possível. Não que eu tenha me jogado da escada, mas despendi tanta energia no processo de não amar essa gestação que a Divina Providência acabou por tomar providências, digamos assim.
Café.
Minha cabeça não pensa mais o que quer porque ela não pensa nada. Entrei num estado de letargia horrivelmente agradável. É como se um oco preenchesse todos os espaços, não sou feliz nem triste, só viva. E isso não é bom nem é ruim, é só vida. E vida, a gente sabe, é uma droga. Mas é vida.
Cigarro.
Voltei para os filtros vermelhos. Sei que estou morrendo aos poucos, mas a idéia de poluir meu pulmão é satisfatoriamente doentia, classificada como de baixo padrão diante das idéias verdadeiramente doentias que tenho. Gabriel se casou de novo, mas me visita toda semana, é sempre a mesma relação psicótica de amor e ódio. O melhor amigo também visita, bom sexo, sempre um bom sexo. Minha mãe foi pro interior, será que eu morro antes dela?
Água.
A Bia mora comigo e é até divertido, vê bem. Sempre tem um adolescente em fúria no quarto dela, vivo reclamando, vou denunciá-la por corrupção de menores, esses jovenzinhos a adoram. Um dia faço sexo a três, quem sabe?
Preciso de um exorcista.
[Ora, a culpa é do capeta mesmo].

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Metatexto

“Ela tinha esse sorriso assim, que tomava qualquer coisa minha. Ela tinha esse cheiro assim, que ficava comigo por todo o dia, trazendo assim a lembrança dela em todos os meus momentos. Ela não parava de falar nunca, e sua voz era como um sopro em meus ouvidos tão necessitados dos sons dela. Ela era toda assim, era toda minha, e sendo toda minha eu era todo dela”.
Não, não é um bom início. Um pouco menos de romance e um pouco mais de drama, talvez? Ah, detesto escrever.
Não, não detesto escrever. O que eu detesto é essa cobrança, esse prazo estúpido, como se eu tivesse um conta-gotas de criatividade que pinga incessantemente, dia após dia. Hoje, por exemplo. Hoje começou ontem pra mim, porque ainda não dormi, feito idiota na frente desse computador, tentando iniciar um romance que eu devia ter terminado há uns dois meses. Já abri minha segunda carteira de cigarros, já ouvi Bob Dylan e nada da inspiração aparecer por aqui. Talvez tenha tirado férias, ou licença médica, talvez tenha enjoado da minha cara. Talvez seja um complô das editoras que me recusaram anteriormente, não é fácil transformar dois livros em best-sellers em apenas três anos.
Ah, não posso dizer também que me orgulho de ser um boom editorial. Não era isso que eu queria. Queria só escrever. Porque isso sempre foi minha salvação, minha terapia particular, minha sessão de exorcismo com meus deuses e demônios. Cada letrinha no papel era um fantasma a menos. Era uma gota de sangue a menos. Agora é só o telefone que não pára e aquela mulher absurdamente insuportável perguntando quantas palavras já tenho escritas. E eu só queria falar do garoto que conhece a garota, se apaixona e casa e morre feliz, mas não pode falar disso, quem quer casar e morrer feliz? O universo é um saco.
Ao mesmo tempo me sinto um hipócrita de primeira grandeza por reclamar tanto. Ora, minha obra está aí, qualquer um tem acesso a ela, baixe da internet se você quiser. Não, não era isso que eu queria. Então por quê? Por que causa, motivo, razão ou circunstância assinei aquele contrato megalomaníaco? Por que me dispus a ir de livraria em livraria desse país, com aquele uísque vagabundo, pra dar autógrafos pra milhares de pessoas que eu sei que não passariam da metade do livro? Eu sou uma farsa, um caso perdido, devia me envergonhar de envergonhar a classe dessa forma. Mas, olhando bem para meus companheiros escritores profissionais, somos todos parte da mesma latrina.
Nossa, isso soou muito Bukowski.
O telefone tocou sete vezes durante a madrugada. Sete. Dá pra acreditar nisso? Rosana, o ser humano maldito que merece tortura selvagem, querendo saber se já passei do 34º capítulo. A vontade que dá é dizer que ainda nem escrevi o epílogo, sequer tenho um título. A vontade que dá é ir até a editora e dizer que rasguem o contrato e façam uma fogueira numa noite fria, eu pago a rescisão, ou fico sem os lucros das próximas vendas, a vontade que dá é de voltar a ser um peso para minha mãe e para o Estado e escrever uma obra por dia, mas pra ficar guardada no porão, onde ninguém terá acesso e ninguém haverá de me cobrar por ela. Onde esteja a salvo inclusive das sanguessugas que tenho chamado de amigos.
Dia desses tive que agüentar uma discussão acalorada no bar porque o Rubens se parecia muito com um dos meus personagens e o Fernando nunca esteve em uma linha dos meus escritos. Fiquei até feliz por isso, cheguei em casa e escrevi um texto enorme sobre aquele recalcado de merda. Mas aí o texto voltou da editora porque eu tinha usado a palavra “merda”, como se ninguém fizesse merda ou lesse merda ou comesse merda, como se o mundo não fosse uma merda. Ai, tão bom escrever merda merda merda. Odeio minha editora.
Minha mãe não pode nem sonhar com isso, pobre mulher. Não me agüenta mais, está louca pra que eu vá embora da casa dela, agora que estou ganhando rios de dinheiro, talvez até mais do que o Paulo Coelho. Será que vou ter de fazer pactos demoníacos e aparecer na tevê também? Se assim for, peço demissão, não quero mais ser escritor profissional traduzido em 5.678 línguas, quero ser só o Miguel que bebe e joga pôquer e escreve umas besteiras aqui e acolá, de vez em quando, pra fingir que sabe fazer alguma coisa.
Ranzinza. Ando muito ranzinza esses dias, a falta de inspiração me corrói. Bebi litros e litros de uísque essa semana e não saiu nada lível. Ah, essa maldita palavra nem existe, vê a que ponto cheguei? Era pra ser legível, mas escrevi lível, que coisa horrível, estou em decadência, sou um grande escritor em decadência, com dois livros publicados e tiragem que ultrapassa cinco milhões de cópias vendidas. Já estou em qual edição? 3ª, 4ª? De nada importa, não faz diferença, sou um escritorzinho de merda. Merda merda merda. E a desgraçada da Rosana volta a ligar, vou escrever um livro sobre uma revisora mal comida. Ah, não posso escrever coisas como essas, a editora não publica, tenho que fingir que sou o Machado de Assis. Com todo respeito a ele, claro, adoro. Mas prefiro ser Nelson Rodrigues, prefiro ser Bukowski, prefiro ser politicamente incorreto. Prefiro, mais uma vez, ser só o Miguel, um bêbado meio poético.
Minha pequena Ana acordou. Vou preparar um café para ela, com margaridas e Roberto Carlos. Por Deus, como posso ser um bom escritor sendo desesperadamente brega assim?
E esse texto, esse texto vou postar num blog. É isso. Vou criar um blog e postar todos os textos que contenham palavras e expressões como merda e mal comida. Os pseudo-intelectuais adoram.

Ponto final

Eu posso até me arrepender de estar te escrevendo, porque certas coisas são tão danosas que o simples fato de dedicarmos-lhes atenção já é uma coisa nociva ao nosso próprio bem-estar.

Aquele dia eu te fiz a pergunta errada com o sentimento certo. A verdade é que eu não consigo racionalizar meus sentimentos com muita facilidade, ainda mais quando a necessidade de fazê-lo se manifesta assim, de maneira tão repentina. Como eu disse, eu não sei “jogar” de outra maneira, sou sincero e espontâneo, mesmo quando isso me prejudica por ter a necessidade de manifestar urgentemente o que eu sinto e esta urgência não me permite formular corretamente uma pergunta ou uma afirmação que defina meus sentimentos com clareza. A pergunta correta a ser feita domingo seria: “Por que pra você estou sempre em segundo plano?”

A resposta eu já tenho (na verdade eu sempre tenho essas respostas, nem sei por qual motivo ainda pergunto). A resposta é: porque eu mesmo deixo. Eu me entrego com facilidade, talvez por viver o passado. Eu revivo a paixão de nove anos atrás e me entrego àquela menina que eu conheci quando ela ainda tinha quinze anos, andava de skate e parecia estar começando a gostar de alguém pela primeira vez na vida, e esse alguém aparentemente era eu.

E quando eu me entrego assim com facilidade, me torno cego para a pessoa que você se transformou nesse tempo, que eu não tenho direito algum de julgar, mas que eu desconheço quase completamente. Só conheço essa capacidade de aparecer de repente e causar estragos na minha cabeça e no meu coração. O mais hilário disso tudo é constatar que sou eu próprio que te outorgo esse direito, porque se você me faz tanto mal assim é pura e simplesmente porque eu mesmo deixo.

Eu poderia lutar contra tudo e contra todos. Poderia propor que fossemos contra todas as adversidades porque é assim que um relacionamento de verdade cresce e se transforma em algo que muda as nossas vidas e nos marca para sempre, mas por que falar isso tudo se eu sei que seria uma batalha em vão? Eu estaria te propondo algo que você poderia aceitar racionalmente, mas que você nunca pensou em fazer de verdade com seu coração. Basta olhar para trás e ver a facilidade com que me largou sempre, sem nem mesmo se dar a oportunidade de experimentar algo que poderia ser diferente e transformador em sua vida, mas que você tem medo de viver. Eu imagino que é desta maneira que as coisas se passam aí dentro de você.

Eu ainda procuro imaginar por qual motivo você às vezes me procura assim do nada, o que se passa na sua cabeça ou no seu coração: quando faz isso e também quando decide alçar vôo e me largar com um punhado de esperanças no coração e um monte de projetos na cabeça.

Sendo sincero, eu, atualmente, achava que estava imune a isso tudo, tendo em vista que há muito tempo esse tipo de coisa não me acontece de jeito nenhum, mesmo porque, como eu disse, não dou esse direito a ninguém, só me resta saber e entender porque ainda permito que especificamente você o faça.

Com base em tudo o que eu já vivi, nos meus sentimentos e no atual contexto da minha vida, só me resta desejar novamente que você consiga achar o seu caminho, se concentrar naquilo que realmente te importa e te deixar um conselho muito importante: não deixe que os outros ditem a forma como você deve viver, ou o que deve fazer para ser feliz. É a terceira vez que você vai embora contra a sua vontade e por causa de outras pessoas (ou então você mente para mim quanto às suas razões).

Eu finalizo a carta pedindo a você que realmente não me procure mais, porque dessa vez o estrago foi grande. Maior até do que você pode imaginar, e como você foi a causa direta, nada mais certo do que te informar.

Seja feliz.


Sem nomes e sem datas. É melhor que seja assim...

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Carta de agradecimento

Oi, Lisa, tudo bem? Desculpe-me o jeito assim, informal, de escrever, eu nunca fui muito de palavras e você sabe disso, assim como sabe que eu falo enquanto durmo, que eu gosto de leite com chocolate de manhã e assim como você sabe tudo mais que se possa saber a respeito de minha pessoa porque você, Lisa, você foi a única pessoa com quem eu convivi de verdade.

Por você eu abandonei todos os meus vícios e manias, adqüiridos ao longo de vinte anos de solidão e isolamento. Você foi a única pessoa que pôs fim à minha misantropia. Depois que você entrou em minha vida tudo mudou. Graças a você aprendi a tratar decentemente as pessoas, independentemente de quem elas sejam ou do que elas tenham feito no passado, porque a vida começa sempre agora e sua única direção é o futuro. Sua alegria de viver mudou meu humor e os planos que você tinha para o futuro eram deslumbrantes e contagiantes.

Lisa, você realmente foi a pessoa que apareceu na minha vida para me tirar do lamaçal fétido em que eu vivia, sempre sufocado pelos meus rancores, pelos meus desgostos e preso pela minha falta de fé e de esperança em um futuro decente para mim, ou para qualquer ser vivo da espécie humana. Hoje vivo meus dias com grandes planos e procuro sempre concretizá-los, como aquela viagem à Inglaterra que eu sempre te falei. Os pubs londrinos são indescritíveis.

Hoje faz um ano que nos separamos, e eu só achei que eu devia isso a você. Eu aprendi tanto com você a respeito da vida e a respeito do que é viver que seria, no mínimo, falta de respeito se eu voltasse a ser o homem de outrora. Eu queria dizer também que eu ainda te amo, e muito. E que você não faz idéia da falta que me faz o seu sorriso, o seu cheiro, os cafunés que você me fazia de manhã, as suas ligações ao cair da tarde sempre me pedindo para levar alguma coisa diferente para o jantar. A sua ausência, a princípio, quase me levou à loucura, tanto que eu quase voltei a ser aquela criatura sorumbática de antes, mas me apeguei firmemente a tudo que aprendi com você, às nossas lembranças e à alegria de viver que você me ensinou. Não valia a pena voltar ao buraco negro onde eu me escondia.

Prometo te escrever sempre, e te amar ainda mais com o passar dos anos, até o dia em que ela vier me buscar também. Aí então poderemos viver juntos novamente.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Pôr-do-sol

Ambos estávamos contemplando o pôr-do-sol na janela do meu apartamento. E após um longo tempo em silêncio ela diz:

- Sabe...
- Hum...
- O melhor de tudo é que a gente se entende: e isso é o que importa.

E voltou a contemplar o horizonte. Eu fiquei ali olhando aquele perfil dela, agora ainda mais maravilhoso por causa das luzes meio alaranjadas meio avermelhadas que davam a seu rosto traços ainda mais sensuais. Abracei-a, olhei para o horizonte e disse:

- Isso é porque a gente se ama: e isso basta.

Medo do inferno

E o que mais você poderia esperar de um cara como eu? Amor, esperança e confiabilidade? Sim, eu te garanto que eu também sou feito desse tipo de material, mas a verdade é que depois de tanto tempo tomando tapas na cara, a vida me moldou de uma maneira diferente. Eu já fui ao inferno algumas vezes, todas elas por causa de pessoas como você. O problema é que eu sempre volto diferente, muito diferente, e quando volto tem sempre outra escrota como você pronta pra me mandar pra lá de novo. Chega, cansei!!! Quem quiser conhecer o miolo agora vai ter que romper a casca, e ela é dura e fria, eu poderia até dizer, de maneira poética (ou dramática), que ela foi forjada no inferno. O mesmo inferno aonde você com certeza me jogaria. Essa minha atitude tem uma simples razão de ser: apesar de ter sido tantas vezes jogado lá por causa de criaturas como você, eu nunca percebo quando estou caindo. Eu te garanto que a gente só percebe que está no inferno quando é tarde demais. O coração gela, as lágrimas queimam e nosso rosto se distorce de maneira quase irreconhecível. Não, não ouse abrir a boca agora. Você me acusou de ser insensível, quem fala o que quer, ouve o que não quer. Você me acha insensível mas eu quero que perceba o quanto eu já sofri. Você acha realmente que eu estou disposto a sofrer de novo? Não, eu não sou insensível, no máximo posso ser acusado de ser medroso. Sim, confesso que sou um tremendo medroso, um borra-botas, caso prefira assim, mas o fato é que ninguém vai me jogar de volta naquele abismo medonho. Ninguém! Isso!!! Vá embora!!! É melhor pra você do que pra mim, aproveite e leve suas alianças. Adeus!

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

À beira da morte

- Essa porra dessa máscara deveria me ajuda a respirar.
- Calma, Klaus... sua pressão não está boa.
- Vá pro inferno, eu sou um velho doente. Pra quê perder seu tempo comigo?
- É meu trabalho...
- Você é ridícula, todos nós somos...
- Olha, me deixa trabalhar em paz, por favor.
- Está vendo, você não se importa comigo. Só se importa com seu trabalho de merda pra receber seu dinheiro de merda. Sua vendida...
- Boa noite, Klaus...

Ela se despede apaga a luz e vai embora me deixando sozinho no apartamento. Agora eu só consigo ver as luzes dos aparelhos piscando. Cheio de tubos no corpo todo, eu sei que eu vou morrer em pouco tempo. E agora à beira da morte eu só consigo me lembrar de como foi a minha vida. Não me orgulho nem um pouco de nada que eu tenha feito, mas também não me envergonho, viver foi sacrificante para mim, assim como deveria ser para todo mundo.

Lembro de quando eu era um adolescente cheio de ideais e planos para um mundo melhor. Eu desejava tornar o planeta um lugar que valesse esse desejo imbecil que todas as pessoas têm de se manter vivas. Eu sentia em mim a chama da vida.

Agora deitado esperando a morte só consigo ver que aquele fogo todo que me impulsionava e ao mesmo tempo me consumia se extingüiu. Dizem que isso acontece porque o sistema te quebra no meio de um jeito ou de outro, pra mim o nome disso é envelhecer mesmo. Por quê se preocupar com o mundo e se fuder constantemente por pessoas que não vão nem mesmo saber quem você é, ou que nunca chegarão a ver o branco do seu olho?

A síndrome do adolescente que quer salvar o mundo passa rápido, porque o mundo não quer ser salvo e no final todos nós acabamos nos tornando pessoas medíocres com objetivos de vida tão medíocres quanto os que nós criticávamos no auge da nossa adolescência utópica: somos todos patéticos.

Cotidiano

Junho. Para ser mais preciso, noite de junho, fria e solitária, como todos os anos anteriores. Sentado na poltrona enrolado em um cobertor, o maldito cachorro que não para de latir e de correr de um lado para o outro não me deixa pensar direito, acho que vou seguir o conselho do meu irmão e vou parar de dar café pra ele. Nem eu tomo o tanto de café que ele toma.

Acendo um cigarro, e tento voltar a ler o livro. Gabriel Garcia Marquéz nunca foi meu predileto, mas é o único livro que sobrou pra ler. Já li e reli todos os outros, uns poucos que eu li uma única vez, diga-se de passagem os melhores, eu acabei emprestando e nunca mais recebi de volta. A verdade é que eu sou idiota o suficiente para continuar fazendo propaganda do que leio para as mesmas pessoas que nunca devolvem meus livros.

Cheiro de amêndoas estragadas: cianureto. Pronto, cheguei ao ponto do livro em que sempre paro, e é bem no começo. Como alguém pode ter cheirado cianureto, saber que tem cheiro de amêndoas estragadas e ainda assim continuar vivo pra falar pras pessoas que cianureto tem cheiro de amêndoas estragadas? Isso é coisa de gente doente, prefiro ler as esbórnias de Bukowski.

Fecho o livro e vou à cozinha colocar mais café pro cachorro, ele ficou quieto de novo, tremendo e olhando para o canto da parede da sala. Aproveito e coloco uma xícara para mim também. Bebo metade e completo novamente com conhaque. Ah... isso que é vida.

O telefone toca e eu atendo:

- Alô?
- Klaus...
- Eu.
- É o Carlos.
- Fala, viado...
- Cara, é o seguinte, meu computador deu pau aqui em casa, e eu preciso dele pra falar com a Carolina. Ela tá me esperando na Internet pra gente conversar. Talvez eu vá a Brasília esse final de semana, preciso marcar um local pra vê-la.
- Usa o telefone, filho-da-puta. Eu trabalho o dia inteiro com essa merda agüentando gente burra me perturbando e...
- Eu comprei um Johnny Black.
- Tô passando aí agora.

Desligo o telefone e calço meu coturno velho e surrado. O cachorro já tomou o café e voltou a correr. Ah... isso que é vida.

Breve despedida

Amado, amigo, amante. Amado amigo amante.

Já amanheceu aqui, nesta terra distante que é meu quarto. Nesse quarto vazio de ti. Já amanheceu e eu não durmo, por esperar esse amanhecer frio que me traz remotas lembranças de um tempo só teu.

Há tanta força aqui, não vê? Há carinho e cuidado, há o sopro eterno do amor que lhe dedico assim, à distância, essa distância breve e avassaladora que impus para não te perder em definitivo. Há o perdão pelas palavras duras que disseste, sei o que te assola, conheço teus caminhos. Como haveria de não perdoar? Há dores imensas, ora, aceito a condição humana. Mas há um bem-querer de sempre, a ti e a mim. Há sempre fé.

Pequenas magias, eu sempre disse, lembro-me com clareza. Sinto teu sorriso antigo como se fosse de ontem, por que te escondes? Sai desse canto obscuro, vem caminhar comigo em silêncio. Vem ver quanta vida tem lá fora e aqui dentro de mim. Não te prives de mim, é o que te peço em súplica rascante. Mas não me devaste o peito assim, sem reserva. Não te insurjas contra mim com o peito aberto à morte e a face aberta ao tapa. Não me venhas como animal sangrando de feridas velhas. Tampouco me julgues por buscar verdade na vastidão do meu coração. Sei a medida exata dele, aqui não há sobras.

Amor meu, deixemos de nos lanhar por alguns pequenos instantes, para que a Divina Providência me mostre que não lutei por guerras vencidas, de tempos imemoriáveis. Para que eu saiba que meu prêmio de consolação não há de ser o desapego. Não, não estou a abandonar-te, nem a mim mesma, estou deixando em suspenso aquilo que me é mais caro, o tempo nosso, paro o tempo no tempo em que ainda temos um ao outro, antes que a chuva termine por levar de nós o que é só nosso, antes que deixemos de ser só um...inelutavelmente.

Amado amigo amante...vou me deitar à sombra. Aceite essa breve despedida. Fecho as cortinas agora, mas deixo para ti uma fresta da minha alma. Deixo sobre o balcão a melhor parte de mim, com o aviso de sempre: manuseie com cuidado, existe vida aqui dentro.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O bilhete

"Linda...Não tinha outras palavras para descrevê-la. Achava-a simplesmente linda... a perfeição do gênero feminino.Ele, estudante de medicina, admirava-a todos os dias enquanto percorria o caminho que o levava à Universidade. Ela, uma garota de família simples, estava sempre auxiliando a mãe nos afazeres domésticos. Sua casa ficava à beira da rua que o jovem estudante percorria todos os dias.

O tempo foi passando e o rapaz alimentando cada vez mais aquela paixão, até que decidiu, enfim, tentar uma investida. No entanto precisava, de alguma forma, certificar-se de que a moça não tinha nenhum pretendente oficial.

De tanto passar em frente à casa, mesmo quando não havia necessidade, ele sabia qual a janela do seu quarto. Aguardando o anoitecer começou a percorrer o caminho sinuoso que levava à Universidade. Em uma curva, ao lado da pequena ruela adjacente à janela da moça, ele parou a charrete, temendo que o barulho dos cascos dos cavalos pudessem despertar a jovem amada ou, pior, a futura sogra.

Caminhando, escondendo-se atrás de árvores e outros objetos comuns nas ruas da época, ele acabou aproximando-se da janela da moça e enfiou o bilhete por uma fresta da janela de seu quarto escuro. Logo após afastou-se rapidamente e retornou para a charrete, com medo de que o simples barulho do papel esfregando na madeira da janela desbotada e descascada da jovem pudesse acordá-la.

O bilhete:
'Perdoe-me pela ousadia, mas não poderia deixar de expressar todo este amor tão puro e maravilhoso, que preenche o meu coração, simplesmente ao ver-te auxiliando tua mãe nos serviços do lar. Gostaria de apresentar-me, no entanto receio que já tenhas outro pretendente. Poderia deixar na tua janela esta noite um bilhete me dizendo se já és prometida a alguém?'

Naquela noite o jovem universitário não dormiu... no dia seguinte não foi à faculdade. Passou a noite e o dia pensando na mulher amada. Pensou em como se apresentaria à mãe da jovem, como seria seu casamento, pensou nos filhos; chegando até mesmo a batizá-los e imaginar a carreira de cada um. Sim, ele estava se deliciando com seu amor, que em breve deixaria de ser platônico... se tornaria real. Se concretizaria na carne e teria em seus filhos a representação viva de uma história de amor verdadeira, sublime, terna e amena, como todos os grandes verdadeiros amores.

Ele já havia lido bastante a respeito, e imaginava para seu futuro todas as histórias de amor que já havia devorado na adolescência. Inútil... era assim que seus pais chamavam todas as histórias de amor que lia. Pois bem, ele lia muito mais do que apenas romances, ele lia a história da própria vida, e agora era a oportunidade de provar isso aos pais. Sim, nada se oporia ao seu caminho de felicidade!!!

Ao anoitecer, começou a preparar-se para receber a resposta da mulher amada. Imaginou-a esperando por ele na janela, com um sorriso lindo e olhos curiosos aguardando aquele que declarava a ela um grande amor. Perto da grande hora, quando o hoje está prestes a se tornar amanhã, ele decidiu ir receber a resposta.

Repetiu o mesmo ritual da noite anterior. Não encontrando a jovem amada decepcionou-se, sua mente, obcecada pela idéia de ter a mulher amada à sua espera, quase o leva ao colapso. No entanto a ponta do papel estava visível na beira da janela. Subitamente uma onda de calor e alegria, palpitação e ofegância, um sorriso que insistia em permanecer no rosto; tudo ocorreu ao mesmo tempo.

Receoso de ler o bilhete ali, no local, voltou correndo à charrete e rumou para casa. Lá chegando, entrou correndo esbaforido para dentro de seu quarto. Jogou-se na cama de barriga pra baixo, um sorriso ardente em seu rosto; rapidamente retirou o bilhete do bolso e o abriu. Lá encontrou somente uma linha que dizia: VÁ TOMAR NO CÚ!"

Escrito por Paullus Castro em 12/05/2006