terça-feira, 25 de agosto de 2009

Da fome

Tem gente que se alimenta de comida. De música. De amor. De luz. Ela se alimentava de mágoa. Deixava acumular, fingia que perdoava, chorava sozinha e mordia a ponta dos dedos, sentindo toda a mágoa do mundo de uma vez só. E somente quando se cansava muito é que ela conseguia sair da letargia e, por fim, se recuperar. Mas só pelo excesso de mágoa que deixava juntar no peito. Como se no fundo do fundo do poço sem fundo houvesse uma mola que se alimentasse também das dores dela, e somente muito pesada pudesse impulsioná-la para fora. Alimentada de mágoa ela conseguia levantar da cama e organizar a casa, tirar dois quadros da parede, arrumar o banheiro que está há dias esperando o conserto, somente alimentada de mágoa ela sentia que tinha que se reencontrar e, sabe? Viver. Porque sem isso era como se não houvesse fome. E sem fome era como se não houvesse porque levantar da cama depois de dois dias. Ela se enchia de mágoa pra comer o próprio coração.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Devaneio

Ele vinha caminhando rua abaixo imerso em pensamentos. Em meio a seus pensamentos rápidos e atropelados divagava sobre tudo e sobre nada enquanto seu corpo caminhava automaticamente para lugar algum. Era como se o mundo ao seu redor não existisse até o instante em que chocou-se com outra criatura tão distraída quanto ele.

- Desculpa
- Eu que peço desculpa estava aqui viajando e nem te vi.

Despediram-se e seguiram seus caminhos confusos de destinos incertos. Ele sentou-se num banco e pôs-se a tentar devanear como já fazia antes da brusca interrupção que sofrera, foi quando deu-se conta de que não pensava em nada antes de interromperem-no. Quanto mais pensava menos conseguia lembrar de seus pensamentos anteriores.

Começou então a ser tomado por um sentimento incômodo de não ter em que pensar. Todo mundo tem no que pensar, oras. Por que justamente ele não conseguia pensar em outra coisa além da incômoda sensação de não conseguir pensar? A dúvida o torturava: teria ele algo em que pensar?

Levantou-se e pôs-se a observar os transeuntes. Todos sisudos, estariam eles imersos em seus mundos de problemas inexistentes e medos injustificáveis? Não tendo no que pensar começou a pensar sobre o que estariam os outros pensando.

Uma senhora caminhando do outro lado da rua tinha um olhar despreocupado, enquanto aquele homem de meia-idade que passava por ela naquele exato instante tinha um caminhar apressado. De cabeça baixa e cara amarrada facilmente seria comparado a um touro pronto para atacar.

Foi quando deu-se conta de que estava observando as pessoas então pensou consigo se alguém o estaria assistindo naquele exato instante. Deu um giro sobre si mesmo procurando seus possíveis observadores e nada encontrando voltou a observar os outros e tentar descobrir sobre o que eles pensavam.

Tomado por grande curiosidade decidiu que teria que decifrar o mistério. Uma jovem de uns vinte anos de idade vinha subindo a rua. Cabisbaixa, usava toca e cachecol para se proteger do frio e enquanto respirava soltava aquela fumaça resultado da diferença da temperatura corporal para o ambiente frio que a circundava. Resolveu perguntar o que ela pensava e imaginou grandes respostas sobre trabalho, família ou faculdade. Talvez o término de um relacionamento ou o início de um novo.


Assim sendo, quando ela ultrapassou-o ele soltou um grito:

- Hey!

Ela parou de andar e voltou a cabeça para ele, por sobre os ombros:

- Você está pensando no quê agora?

Ela voltou a caminhar com um passo ainda mais apressado e saiu balançando a cabeça, deixando-o na dúvida.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Dos excessos

Assim como veio foi, e quase como num daqueles blues antigos, o que me sobrou foi muito tão pouco que considero nada. Havia tanta fome um dia, havia tanta sede um dia, havia tanta de tanta coisa que hoje em dia nem sei dizer se era enfim real o que havia. Era tanto sentir. Assim como veio foi, aquela necessidade de sangrar por todos os poros pra ver se ainda havia vida, porque de tudo que havia, a vida é o que menos preenchia os espaços. E de todas as lacunas vazias, a tua presença não preenchia as mais severas do peito, disso eu sabia, mas não sentia porque teu olhar me dizia coisas outras. "E de te amar assim muito e amiúde", dizia o Poetinha e eu repetia aos brados pelos cantos do peito porque eu acreditava nisso. Ah, eu te amava demais. Hoje em dia só ficou o café de requentar, o pão com manteiga do café que me olha quando chego à noite em casa. Hoje em dia só ficou o ficar, porque de tudo que havia, constato, nada aconteceu de continuar a existir, como se de mim uma parte você tivesse transformado em todo e assim levado contigo o todo que sou eu. E um dia aconteceu de você me perguntar "por que você me ama assim, hein? nesse exagero todo de quem vai morrer?". E aconteceu de responder "porque se eu não te amar eu morro, oras". Oras, não era claro? Mas, olha só, nem morri. Chorei, sequei, mas nem morri.