terça-feira, 2 de outubro de 2007

Metatexto

“Ela tinha esse sorriso assim, que tomava qualquer coisa minha. Ela tinha esse cheiro assim, que ficava comigo por todo o dia, trazendo assim a lembrança dela em todos os meus momentos. Ela não parava de falar nunca, e sua voz era como um sopro em meus ouvidos tão necessitados dos sons dela. Ela era toda assim, era toda minha, e sendo toda minha eu era todo dela”.
Não, não é um bom início. Um pouco menos de romance e um pouco mais de drama, talvez? Ah, detesto escrever.
Não, não detesto escrever. O que eu detesto é essa cobrança, esse prazo estúpido, como se eu tivesse um conta-gotas de criatividade que pinga incessantemente, dia após dia. Hoje, por exemplo. Hoje começou ontem pra mim, porque ainda não dormi, feito idiota na frente desse computador, tentando iniciar um romance que eu devia ter terminado há uns dois meses. Já abri minha segunda carteira de cigarros, já ouvi Bob Dylan e nada da inspiração aparecer por aqui. Talvez tenha tirado férias, ou licença médica, talvez tenha enjoado da minha cara. Talvez seja um complô das editoras que me recusaram anteriormente, não é fácil transformar dois livros em best-sellers em apenas três anos.
Ah, não posso dizer também que me orgulho de ser um boom editorial. Não era isso que eu queria. Queria só escrever. Porque isso sempre foi minha salvação, minha terapia particular, minha sessão de exorcismo com meus deuses e demônios. Cada letrinha no papel era um fantasma a menos. Era uma gota de sangue a menos. Agora é só o telefone que não pára e aquela mulher absurdamente insuportável perguntando quantas palavras já tenho escritas. E eu só queria falar do garoto que conhece a garota, se apaixona e casa e morre feliz, mas não pode falar disso, quem quer casar e morrer feliz? O universo é um saco.
Ao mesmo tempo me sinto um hipócrita de primeira grandeza por reclamar tanto. Ora, minha obra está aí, qualquer um tem acesso a ela, baixe da internet se você quiser. Não, não era isso que eu queria. Então por quê? Por que causa, motivo, razão ou circunstância assinei aquele contrato megalomaníaco? Por que me dispus a ir de livraria em livraria desse país, com aquele uísque vagabundo, pra dar autógrafos pra milhares de pessoas que eu sei que não passariam da metade do livro? Eu sou uma farsa, um caso perdido, devia me envergonhar de envergonhar a classe dessa forma. Mas, olhando bem para meus companheiros escritores profissionais, somos todos parte da mesma latrina.
Nossa, isso soou muito Bukowski.
O telefone tocou sete vezes durante a madrugada. Sete. Dá pra acreditar nisso? Rosana, o ser humano maldito que merece tortura selvagem, querendo saber se já passei do 34º capítulo. A vontade que dá é dizer que ainda nem escrevi o epílogo, sequer tenho um título. A vontade que dá é ir até a editora e dizer que rasguem o contrato e façam uma fogueira numa noite fria, eu pago a rescisão, ou fico sem os lucros das próximas vendas, a vontade que dá é de voltar a ser um peso para minha mãe e para o Estado e escrever uma obra por dia, mas pra ficar guardada no porão, onde ninguém terá acesso e ninguém haverá de me cobrar por ela. Onde esteja a salvo inclusive das sanguessugas que tenho chamado de amigos.
Dia desses tive que agüentar uma discussão acalorada no bar porque o Rubens se parecia muito com um dos meus personagens e o Fernando nunca esteve em uma linha dos meus escritos. Fiquei até feliz por isso, cheguei em casa e escrevi um texto enorme sobre aquele recalcado de merda. Mas aí o texto voltou da editora porque eu tinha usado a palavra “merda”, como se ninguém fizesse merda ou lesse merda ou comesse merda, como se o mundo não fosse uma merda. Ai, tão bom escrever merda merda merda. Odeio minha editora.
Minha mãe não pode nem sonhar com isso, pobre mulher. Não me agüenta mais, está louca pra que eu vá embora da casa dela, agora que estou ganhando rios de dinheiro, talvez até mais do que o Paulo Coelho. Será que vou ter de fazer pactos demoníacos e aparecer na tevê também? Se assim for, peço demissão, não quero mais ser escritor profissional traduzido em 5.678 línguas, quero ser só o Miguel que bebe e joga pôquer e escreve umas besteiras aqui e acolá, de vez em quando, pra fingir que sabe fazer alguma coisa.
Ranzinza. Ando muito ranzinza esses dias, a falta de inspiração me corrói. Bebi litros e litros de uísque essa semana e não saiu nada lível. Ah, essa maldita palavra nem existe, vê a que ponto cheguei? Era pra ser legível, mas escrevi lível, que coisa horrível, estou em decadência, sou um grande escritor em decadência, com dois livros publicados e tiragem que ultrapassa cinco milhões de cópias vendidas. Já estou em qual edição? 3ª, 4ª? De nada importa, não faz diferença, sou um escritorzinho de merda. Merda merda merda. E a desgraçada da Rosana volta a ligar, vou escrever um livro sobre uma revisora mal comida. Ah, não posso escrever coisas como essas, a editora não publica, tenho que fingir que sou o Machado de Assis. Com todo respeito a ele, claro, adoro. Mas prefiro ser Nelson Rodrigues, prefiro ser Bukowski, prefiro ser politicamente incorreto. Prefiro, mais uma vez, ser só o Miguel, um bêbado meio poético.
Minha pequena Ana acordou. Vou preparar um café para ela, com margaridas e Roberto Carlos. Por Deus, como posso ser um bom escritor sendo desesperadamente brega assim?
E esse texto, esse texto vou postar num blog. É isso. Vou criar um blog e postar todos os textos que contenham palavras e expressões como merda e mal comida. Os pseudo-intelectuais adoram.

2 comentários:

Anônimo disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkk...

Adorei, ahn... ops... quer dizer nõ, eu não sou um pseudo-intelectual de merda, portanto não posso gostar...
rs

EXCELENTE!!! EXCELENTE!!! EXCELENTE!!!

Dany Lynn disse...

concordo com o paullus..tb não me enquadro nesse grupinho de psedo-intelectuais.
hauahauhauahau
ahhhhhhhhhhhhhhhh mas eu amei , adorei tantas merdas....\o/
Vc é d+ sumida
te amo
=*