segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

História suja

Cheguei ao bar do Rubens debaixo de chuva torrencial e logo percebi que Ana não estava em sua cadeira cativa. Senti falta da Coca sobre a mesa e do caderninho vermelho em que ela escrevia seus apontamentos. Acendi um cigarro e caminhei até o balcão. Rubens parecia um doido com uma espátula de cozinha na mão, tentando matar uma mosca. Estava realmente concentrado, a língua entre os lábios, suando.Tanto que não me percebeu. Finalmente matou o inseto incômodo e voltou para a chapa para terminar o frango a passarinho.

__ Rubens...

__ Oi.

__ Cadê a Ana?

__ Sei não.

__ Ela já esteve por aqui hoje?

__ Sei lá. Tava ocupado, não reparei.

__ Matando moscas?

__ Não é você que está desse lado do balcão.

__ Fala sério. São apenas moscas.

__ Não enche, Miguel.

__ Ok. Cadê os jovens em puberdade?

__ Quer perder no pôquer de novo?

__ Eles me embriagaram. E com um uísque vagabundo.

__ Sempre um ardil, Miguel. Sempre um ardil.

__ Não enche, Rubens.

__ Perdeu quanto da última vez?

__ Por que o interesse?

__ Apenas curiosidade.

__ Sabe que às vezes eu acho que eles agem a mando seu?

__ Bebe, Miguel. Bebe.

Ele apanhou um copo embaixo do balcão e me ofereceu uma dose de cachaça vagabunda, fabricação do próprio, que tinha a coragem de dizer que era material de qualidade. Nunca recusei um copo e ainda estou vivo. Conheci abstêmios que morreram aos 30. Pobres coitados.

Foi então que a Ana entrou no bar, de súbito, esbaforida e ligeiramente pálida. Ela sempre foi um tanto quanto elétrica, mas a forma como ela dizia frases sem nexo me deixou assustado.

__ Ei. Aconteceu alguma coisa? Está tudo bem?

__ Acabei de arranjar briga com um cara.

__ Que cara? Por quê? Diz!

__ Porra, eu tava entrando no bar e o cara me chamou de princesa. Você sabe que eu detesto isso.

__ Hum. E aí?

__ Aí eu respondi que princesa de cu é rola. E arremessei minha latinha na cabeça dele.

__ Ana, pelo amor de Deus. E aí?

__ E aí eu saí correndo, ué!

__ E ele?

__ Tá entrando. Atrás de você.

Ana deu a volta e se escondeu sob o balcão. Rubens pressentiu o perigo, alarmado, e segurou a espátula nas mãos. Mas não ia adiantar muito. O cara era um dos maiores homens que eu já havia visto, e tinha uma cara de psicótico que me fez rever toda a minha vida em câmera lenta.

__ Cadê aquela vaca?

Ele estava encharcado de cerveja, e apesar de me ver em meus últimos momentos, não pude evitar me lamentar pelo desperdício. Sei, sei. Mas é melhor morrer de uma forma espirituosa.

__ Ei. Não fale assim – eu disse para o trasgo, num ato inédito de coragem idiota.

__ E o que você tem a ver com isso?

__ Não te interessa. Só não permito que você se refira a ela e a mais ninguém nesse recinto dessa maneira.

Os acontecimentos se seguiram de maneira muito rápida. Ele sacou uma garrafa vazia da mesa ao lado, eu corri feito um idiota e o Rubens levantou a espátula de um jeito pateticamente ameaçador. Eu caí, e antes de cair ainda pude sentir o sangue quente na minha nuca. E então eu apaguei.

*

Ouvi uma voz distante.

__ Miguel? Miguel?

A vista foi esclarecendo aos poucos...

__ Miguel?

Quando consegui recobrar a consciência, me deparei com uma enfermeira debruçada sobre mim no que seria, certamente, uma cama de hospital.

__ Puta que pariu, de novo?

__ Ahn?

__ Nada...esquece. Quem me trouxe aqui?

__ Foi um tal de Rubens. Ele está no quarto ao lado.

__ Cara, o que aconteceu com ele?

__ Bem...vocês chegaram aqui há uns dois dias. Você estava desmaiado e ele tinha um buraco enorme na barriga, aqui assim, do lado.

__ Meu Deus!!! Ele está bem?

__ Sim, sim...ele estacionou uma Belina aqui na frente do hospital, buzinou e desmaiou. Fizemos a sutura, mas ele já tinha perdido muito sangue. Mas já está bem agora.

__ Posso falar com ele?

__ Está dormindo. E você não deve sair da cama, não por enquanto, levou uma pancada muito forte na cabeça.

__ E a Ana?

__ Que Ana?

__ A Ana. Estava conosco no bar do Rubens, entrou aquele ogro querendo bater nela e...

__ Miguel, ainda não sabemos o que aconteceu. O tal do Rubens acordou perguntando por uma espátula e desde então não diz coisa com coisa.

Me levantei apressado, mas a enfermeira me deu um mata-leão e eu voltei a deitar, resignado e dolorido, olhando o teto estrelado e me perguntando se a morte estaria próxima novamente.

__ Miguel, você não deve se levantar.

__ Mas eu preciso saber da Ana.

__ Mas não tem nenhuma Ana aqui, eu já disse! Quer me contar o que houve?

__ Não, obrigado.

Fiz cara de emburrado, mas dei a entender que não me levantaria de novo. Ela pareceu aceitar, pois me deixou sozinho no quarto, fechando a porta atrás de si. Esperei cinco minutos pra me levantar. Meio tonto, tirei aquele pijama verde ridículo e vesti minhas roupas ensangüentadas. Já estava com a mão na maçaneta quando esta girou e Rubens entrou, ainda de pijama e com uma expressão conspiratória no rosto.

__ Miguel, eles roubaram minha espátula.

__ Rubens, eu...eles o quê?

__ Roubaram minha espátula, a minha espátula! Meu Deus, onde você conseguiu tanto sangue?

__ Rubens, tá tudo bem?

__ E o que você acha? Você tá todo ensangüentado, eu não tenho mais a minha espátula e não estamos no meu bar! Quer me dizer o que aconteceu?

__ Não temos tempo. Vamos. Temos de sair daqui, e agora.

__ Não vou a lugar algum sem minha espátula.

__ Ah, Rubens, não fode. Anda logo.

Puxei o Rubens pelo braço, impaciente. Ele ofereceu resistência, então fui arrastando aquele imbecil pelos corredores. Conseguimos passar despercebidos pela maioria dos funcionários, e foi aí que constatei, com desgosto, que estávamos em um hospital público. Não consegui disfarçar meu nojo e terror, e julguei que por isso uma mão me puxou para trás com violência. Dei o combate, me embolei com ele no chão e o Rubens saiu gritando pela espátula. Só depois de socar meu oponente repetidamente me dei conta de que era o Fernando.

__ Seu imbecil! O que você pretendia?

__ Eu tava te gritando! Você nem me olhou!

__ Mas eu não ouvi meu nome nenhuma vez!

__ Mas eu tava te gritando! Gritei “pai” feito um condenado.

__ Ah, claro. Às vezes esqueço que tenho um filho. Tá de carro?

__ A Belina do Rubens tá aí no estacionamento.

__ Vem. Vamos sair daqui.

Fernando vestiu Rubens com sua jaqueta, disfarçando o pijama verde horrendo. Saímos os três naquela atitude furtiva, como se tivéssemos roubado algo além da nossa própria liberdade, tão toscamente usurpada naquele açougue mantido pelo Estado. Fernando ia caminhando à frente pelos corredores, nos avisando sobre funcionários e, quando necessário, os distraindo. Eu seguia logo atrás, tapando a boca do Rubens enquanto ele tentava, em vão, reclamar a maldita espátula.

Alcançamos a entrada. Atendentes mal humorados protelavam o serviço, enquanto cidadãos contribuintes e, de um modo geral, bem trouxas, imploravam pelo atendimento que necessitavam. Mas não havia como garantir que não prestariam atenção na gente, até porque o Rubens continuava agindo feito doente.

__ Fernando!

__ Oi, pai.

__ Para com essa porra de “pai”, eu já disse. É o seguinte. Você vai ter que inventar alguma distração pra eu poder sair daqui com o Rubens.

__ E eu faço o quê?
__ Se vira. Você não nasceu quadrado.

__ Tá, né! Não tem outro jeito.

Ele saiu correndo e passou direto pela porta de entrada. Ninguém prestou atenção nele. “Filho da puta”, eu pensei...

E de repente ele voltou correndo, alarmando a todos para o fato de um segurança estar batendo no Dr. Almerindo. Todo mundo correu para fora, inclusive Rubens e eu. Fernando apontava para a parede lateral do hospital, gritando a plenos pulmões:

__ Já estamos indo, Dr. Almerindo!!! Já estamos chegando, já consegui o socorro!!!

Correu, e todos o seguiram. Aproveitei o ensejo para correr desabalado até a Belina cor de goiaba do Rubens, tentando convencê-lo de que haveria uma espátula lá dentro. Nunca achei que um carro pudesse estar tão distante, e enquanto corria agradecia a Deus por ter dado um tantinho de cérebro ao Fernando, e não aquela noz ressecada que a mãe dele tinha na caixa craniana e nunca usava.

Mas...ouvi um tropel de passos em nossa direção e olhei instintivamente para trás. Fernando fugia desesperado dos funcionários do hospital, que gritavam “não tem nenhum Dr. Almerindo nesse hospital, filho da puta!!!”. Fiquei parado, sem reação. Rubens despiu a jaqueta e correu de volta ao hospital, o pijama balançando de maneira tão patética que quase me fez rir. Mas não tinha como ser espirituoso num momento como aquele. Eu só consegui ficar parado, pensando tristemente: “puta merda...”.

__ Quem de vocês roubou minha espátula?

__ Ele! Foi ele que fugiu! Cadê o outro que tava com ele?

__ Eu quero a minha espátula, seus usurpadores! Ela é minha, eu paguei por ela!

Três seguranças arremessaram o Rubens no chão, que ainda bradava pela espátula infeliz. Registrei nota mental de, em uma próxima oportunidade, amaldiçoar Rubens e todas suas gerações vindouras por ele estar agindo de maneira tão estúpida. Olhei para a Belina goiaba, desejoso, e para o Rubens, furioso. Me debati num duelo interior sangrento, e a amizade de Rubens falou mais alto. Maldito.

Corri em direção a eles, tentando apaziguar a situação. Algum funcionário descerebrado do hospital achou que eu ainda sangrava e deu o alarme, ao que dois ogros enfatiotados em ternos mal cortados tentaram me agarrar. Fernando pulou nas costas de um deles e foi arremessado ao chão, tal qual um saco de batatas. Por um momento a chama da paternidade queimou em meu peito, mas eu fiz questão de mandá-la às favas e tratar de me proteger. Não sei quando, nem como, mas antes de apagar pela 2ª vez consegui ver Ana e cinco policiais fortemente armados correndo em nossa direção. Olhei para o telhado do hospital e vi dois franco-atiradores. Uma luzinha vermelha piscou nos meus olhos. Achei que fosse o laser dos snipers, mas era só sangue. Em um último esforço contra a escuridão que descia, ainda pude ouvir Rubens urrar de dor, e vi Fernando socar um dos funcionários.

*

Acordei sem companhia dessa vez. Estava em um cômodo ligeiramente escuro, quente, deitado e amarrado em um catre duro. Uma mistura de sons invadia minha cabeça e não me deixava pensar direito. Tentei me acalmar, esperar o zunido constante passar. Um tempo depois, consegui distinguir os sons. Eram dois caras conversando.

__ Aquela galega do plantão noturno?

__ Não, a outra. A que entra depois dela, de manhã.

__ A Márcia?!

__ Essa mesma. Fode bem pra caralho.

A esta altura, e considerando todos os fatos bizarros acontecidos, ouvir falar de sexo finalmente me trouxe um pouco de razão: eu ainda estava vivo e o mundo ainda era o mesmo.

__ ÔÔÔÔÔÔUUU!

Silêncio.

__ Eu sei que vocês tão aí fora, caralho!

__ O Miguel acordou...

__ Vai lá.

__ Por que eu?

__ Anda logo.

Um rapaz franzino, de uns vinte e poucos anos, meteu a cara na porta.

__ Boa tarde, Miguel.

__ Boa tarde...boa tarde é o caralho! Diz aí, que porra é essa? Tou amarrado por quê?

__ Olha, a culpa foi sua – ele foi entrando, cauteloso e inseguro – porque quando o enfermeiro foi aplicar o analgésico, você deu um soco nele e quebrou a agulha dentro da veia. Deu um trabalho absurdo pra tirar.

__ Ah...não me lembro disso...

__ Normal. Me admira que ainda esteja vivo, com esse galo na cabeça!

__ Mas...onde você disse que eu estou mesmo? Cadê a Ana, o Fernando e o Rubens?

__ Cadê quem?

__ O Rubens. O cara da espátula.

__ Ah. Não sabemos. Foi o único resgatado pela doida que chegou com os federais.

__ A Ana.

__ Deve ser essa aí. Ela é gostosona?
__ Quem?

__ A Ana. Porque a que veio com os federais era gostosona.

__ Sorte sua eu estar amarrado.

__ Ai, valentão.

__ Me diz onde eu estou.

__ Na ala psiquiátrica do hospital.

__ Mentira.

__ Juro por Deus.

__ E como foi que eu vim parar aqui?

__ É uma longa história. Escuta...você esteve desacordado os últimos dois dias, e não deu trabalho nenhum pra gente. O esquema é o seguinte: conseguimos contrabandear umas cervejas pra dentro do hospital, mas eu preciso de garantias de que você não vai nos dedurar. Pra isso, vamos deixar você beber. Mas sem tentativa de fuga, ouviu bem?

__ E como é que eu vou beber, ficar bêbado e fugir se eu tou amarrado, filho da puta?

__ A gente vai te desamarrar. Isso não é óbvio? Quer dizer, não desamarrar de verdade, só um braço, o suficiente pra você segurar a lata. Pode ser?

__ Porra, claro. Nem sei quanto tempo tem que eu não bebo.

__ Então tá certo. Agüenta aí.

__ Ei. Espera. E o Fernando?

__ Quem, o chato? Ele é seu filho, né?

__ Nem adianta me olhar assim, a culpa não é minha, foi criado pela mãe.

__ Tá. Enfim. Tudo que sei é que ele não conseguiu fugir. Tinha uns quatro seguranças em cima dele.

__ Hum.

Um assomo de remorso invadiu meu peito. Meu filho tentou me ajudar e eu não fiz porra nenhuma por ele. Mas o remorso não demorou a dar lugar a uma excitação juvenil quando o outro enfermeiro, gordo e de bigode, entrou com uma caixa de isopor no quarto.

__ Deus seja louvado. Nunca quis tanto uma cerveja na minha vida.

__ Espera, filhote. Vou desamarrar o braço direito. Se comporta.

__ Ei, alguém tem cigarro?

__ Isso aqui é um hospital, porra.

Olhei incrédulo para o enfermeiro. Depois parei pra pensar na situação e tentei me lembrar com clareza de todas as coisas esdrúxulas que me aconteceram desde que a Ana entrou no bar, dias atrás, nem sei mais quantos. Puta merda. Sempre sobra pra mim, sempre. O enfermeiro gorducho que apelidei carinhosamente de El Bigodón desamarrou meu braço e me deu uma cerveja. Aquele gole gelado me pareceu irreal. Bebi a latinha em pouquíssimo tempo, e fique tonto de uma maneira tão absurda que me recusei a acreditar. Nem quando eu tinha 15 anos e tava começando a beber eu ficava bêbado tão rápido.

__ Seus desgraçados. Me entupiram de remédio e depois me oferecem álcool. Isso é perverso. Doentio.

__ E você tá reclamando? Aquela puta te deixa apanhando, duas vezes pelo que tou sabendo, a gente te dá uma cerveja geladinha e você ainda reclama?

__ E quem é a puta mesmo?

__ A tal da Ana. Ou alguma outra puta te deixou apanhando esses dias?

Joguei a latinha de lado e dei um soco gostoso naquele bigodudo desgraçado. O enfermeiro magricela me olhou assustado.

__ Eu avisei, seu filho da puta. Agora me tira daqui.

Os enfermeiros se olharam, avaliando a situação. Resolvi partir para a linguagem universal, o esperanto do funcionalismo público: apelei para o suborno.

__ O negócio é o seguinte: o Rubens, da espátula, é meu melhor amigo. E tem um bar. Tenho acesso livre, a hora que eu quiser. Vocês me liberam, em segurança, e eu arrumo uma ou duas garrafas de Red Label pra vocês. Johnnie Walker, original.

O argumento final, preciso e certeiro. Eles me desamarraram e me deram outra cerveja. Mas o bigodudo parou de chofre, me olhando desconfiado.

__ E como sabemos que você não mente? Como sabemos que você é confiável?

__ Amigo, você bebe. Eu bebo. Não confie em alguém que NÃO bebe.

__ Você é cheio de argumentos, hein.

__ Tá, só me tira daqui.

__ Só um minuto. Vou pegar suas roupas no armário.


*


El Bigodón trouxe meus trapos. Nunca fiquei tão feliz em vestir uma roupa tão imunda. Exceto, é claro, naquele dia bizarro em que concebi o Fernando. Outra história.

Vestido, tomei mais uma latinha e saí andando pelos corredores, tonto feito helicóptero com hélice quebrada, escoltado pelos dois enfermeiros. Parei na porta do hospital e rabisquei meu endereço atrás de uma receita de remédio que teoricamente era pra mim. Disse a eles que contassem uns dois dias pra aparecer, e que levassem uma espátula. Eu precisava ressarcir o Rubens.

Saí andando pelas ruas, me perguntando aonde eu deveria ir primeiro: à minha casa, à casa da Ana, ao bar do Rubens ou ao primeiro boteco que aparecesse. Tendo em vista minha condição ligeiramente bêbada e a ausência de dinheiro, optei por ir até a casa da Ana. Uma caminhada de aproximadamente uma hora e meia.

Caminhar me fez melhorar. Tudo bem que vi um cachorro de três patas passeando com sua dona, mas tomei como resultado da mistura bebida + remédio, que bombeava meu cérebro, e não dei muita importância.

Cheguei à praça em frente à casa da Ana e um mal estar percorreu meu corpo. Onde estavam os mendigos de sempre? Estranho. O Alegria não estava lá. Alegria, o flanelinha que sempre estava lá, não estava lá. E ele não saía daquela praça nunca.

Decidi refazer meu plano, aquela situação era muito incomum. Não ia entrar de uma vez na praça. A lembrança dos snipers e daquele bando de agentes armados ainda estava vívida em minha cabeça. Dei a volta por trás de um bloco comercial e parei numa esquina, perto da padaria.

De longe eu reconheci um dos agentes que acompanharam Ana ao hospital, aquela cicatriz tosca que ia da boca até a orelha era inconfundível. Ele estava à paisana, mas parecia em estado de alerta. E todo agente à paisana fica de óculos escuros e aquela pose de tira do FBI.

Revirei o lixo da padaria e encontrei um pedaço de pau, grande até, acho que armação de cama. “Quem não tem cão, caça com Deus”, dizia meu avô, abençoado seja. Segurei o pedaço de pau nas costas, gargalhando internamente com a excelente piada que isso daria no balcão do bar do Rubens, me enchi de coragem e atravessei a praça. Já estava quase no centro quando o agente me abordou.

__ Ei, você.

__ Fala, Tripa Seca.

__ Como é que é?

__ Nada. Nada não. Posso ajudar?

__ Tá indo aonde?

Fingi indignação, e ele percebeu que a abordagem não tinha sido das melhores. Acho que isso explicava a cicatriz na cara dele.

__ Me sentar num banquinho! Pensar na vida! Refletir!

__ Ah, não me diga.

__ É sério. Quer conversar?

O agente titubeou, mas aceitou o convite. Eu enchi o saco dele, coitado, e não sabia como me livrar. Falei do meu pai e como ele queria que eu fosse regente de orquestra, como ele. Falei da minha mãe e de como ela ainda me abrigava em casa, mesmo eu tendo mais de 40 anos. Falei de meu filho nascido aos meus quinze anos e de como a mãe dele, aquela riponga doida, levou o moleque pra uma sociedade alternativa e só me voltou agora, 18 anos depois, pra deixar um completo estranho sob meus precários cuidados. Falei de como eu não o suportava, de como eu odiava a mãe dele, de como eu odiava meu pai e de como minha mãe não me suportava. Falei do meu melhor amigo, que ele podia ter sido bem sucedido se não fosse tão conivente com os bebuns folgados que penduravam a conta há anos, eu inclusive, que nunca paguei um único copo de cerveja que bebi no Rubens. Falei da mulher que eu amava, de como ela tinha uns 20 anos a menos e não me amava, nem queria saber de mim. Falei, falei, falei. Falei tanto que o agente foi atrás de umas cervejas pra gente, e sentou e bebeu e falou. Falou, falou, falou. Ele era fraco pra bebida, logo vi, pendurou a cabeça no meu ombro e reclamou horrores do superintendente.

__ Mas o pior de tudo é aquela filha dele. Meu Deus, eu não suporto aquela mulher.

__ Por quê?

__ Porra! Ela pensa que é a Polícia Federal! Dia desses ela destacou um aparato completo da PF, com snipers e tudo, só porque um amigo dela tava virtualmente preso num hospital público. E agora eu tenho que ficar aqui, zumbizando a casa dela.

__ Sério?

__ Tou falando! Parece que o cara é o amor da vida dela, mas é só um velho desocupado. Isso foi o que o pessoal comentou depois.

__ Ah, não. Eu tenho certeza que ele tem um bom coração.

__ Pode até ser. Ou não. O cara é dono de boteco, pelo amor de Deus! E passou os últimos dias perturbando Deus e o mundo por causa de uma espátula.

__ Como é que é, amigão?

Meu estômago revirou, deu voltas. Ana e Rubens? Seria possível? Não, o Rubens jamais faria isso comigo, sabia que eu a amava, sempre soube.

Foi aí que vi Rubens sair da casa dela, acompanhado dela. Caminharam felizes e quase saltitantes, as mãos dadas, até a padaria. Me levantei num impulso absurdo, como se o banco estivesse em brasa, e corri até eles, brandindo o pedaço de pau tal qual espada. Rubens me olhou estupefato, sacou a espátula do bolso do jeans, mas não ofereceu resistência alguma.

Dias depois, acordei num lugar que parecia uma cela, suja e mal cheirosa. “Vazia, Deus é bom, Deus é justo”, eu pensei. Me levantei com alguma dificuldade e divisei Fernando, ladeado por um carcereiro e com uma marmita nas mãos, do outro lado das grades.

__ Oi, pai.

__ Lá vamos nós de novo. Puta que o pariu.



***

O primeiro post realmente escrito a quatro mãos, enquanto bebíamos idéias e trocávamos cervejas. Escrito dia 09/12/2007, numa das mesas da Adega da Cachaça.

2 comentários:

Dany Lynn disse...

Por isso sempre digo: Amar é uma merda mesmo.

Mas porra Dani...muito bom esse post escrito a 4 mãos....Parabens às habilidosas mãos!!!

Tácia disse...

Caraca!! Meus parabéns a vocês!!
Sempre passo por aqui pra ler seus post, mas dessa vez não resisti e quis comentar.

Abraços a todos!