terça-feira, 6 de novembro de 2007

A Fé Solúvel

Ajoelhada Roberta reza novamente, agora sem esperanças, para um Deus que nunca a ouve. Seus joelhos machucados pela fé que nunca a ajudou em nada já não suportam mais o mutismo intransigente e a passividade de um ser superior que vive a ignorá-la. Suas lágrimas já secaram e até mesmo a dor passou.
Roberta sempre fora um exemplo de fé inabalável dentro de sua comunidade, até o dia em que cruzara com Klaus. Um jovem modesto e cheio de ambições que levava a vida da maneira mais objetiva possível. Dir-se-ia dele uma dessas pessoas práticas para quem o tempo vale muito e não pode ser desperdiçado com algo que não gere retorno imediato.
Conheceram-se e se apaixonaram. Ela, sempre firme em sua fé, pedia-lhe somente os domingos, reservados única e exclusivamente para Deus. Todos os outros dias da semana seriam dele. Ele de início aceitou, achou até bonita aquela celebração semanal de uma fé tão fervorosa, coisa que até então desconhecia. Porém o tempo, como sempre, revelou-se o formidável combustível para incendiar o fogo da destruição causado pelas diferenças.
Klaus trabalhava de sol a sol, sempre pragmático e objetivo na construção daquilo que ele dizia ser seu império, e nessa ganância de sempre obter mais para comprar mais e desejar mais começou a aceitar trabalhos noturnos. "O dinheiro é o ópio dos homens sábios" dizia ele, e considerando a si mesmo um homem sábio, fazia jus à própria afirmação. Nesses acasos que constituem a vida, Klaus e Roberta foram se distanciando um do outro pelo trabalho que agora o consumia, acabando por restar somente o dia de domingo livre para se verem.
Roberta, que era realmente apaixonada por Klaus, encontrava-se dividida entre o amor a Deus e o amor ao namorado. Não queria abrir mão de nenhum dos dois, pois amava a ambos intensamente. Até que, dividindo-se da maneira que podia, recebeu o ultimato:

__ Roberta, larga dessa história de Igreja. O único dia que temos é o domingo. Eu não agüento mais ir à missa.
__ Ah, amor, não me peça isso. Ia ser muito mais fácil se você diminuísse sua carga de trabalho.
__ Diminuir meu trabalho? Nunca! Absolutamente tudo que conquistei foi devido a ele. E ainda tenho muito mais a conquistar.
__ Eu sei, eu entendo...mas desde que você começou a trabalhar tanto a gente quase não se vê mais. E eu não posso abandonar a Igreja. É o único dia que tenho reservado a Deus, não posso abrir mão dele.
__ Mas, Roberta...isso funcionava antes, quando tínhamos tempo suficiente pra nos vermos durante a semana. Agora, com o meu trabalho, não faz mais sentido. Vá à Igreja durante a semana, se quer tanto. Deixe o domingo pra gente.
__ Não posso! Tenho trabalho, tenho faculdade durante a semana. Além disso, tenho compromissos nas missas dominicais, o Padre João conta comigo. Não posso, Klaus, não posso!
__ E o que vamos fazer então?
__ Ora...já lhe propus isso, mais de uma vez...trabalhe menos.
__ Não vou, Roberta. Você sabe que posso crescer mais e mais na minha área, e pra isso preciso de total dedicação.
__ Só o que estou te pedindo é que se dedique a nós também.
__ E eu estou te pedindo a mesma coisa, Roberta. Exatamente a mesma coisa.

Roberta perdeu dias e dias tentando encontrar uma solução para seu caso, crente na sua fé inabalável que Deus acabaria por dar respostas. Tentou conversar com a mãe, a quem considerava uma mulher sensata e ponderada, mas só o que ouviu foram palavras de desânimo, pois tanto ela quanto seu pai desaprovavam Klaus veementemente. Achavam sua ambição negativa e um péssimo exemplo para a filha, sempre tão dedicada e subserviente. Suas amigas também não simpatizavam muito com ele, por não ser da Igreja, sequer tinha feito a Primeira Eucaristia. Padre João, porém, costumava ser seu bastão de tranqüilidade, e foi ter com ele dias após a última conversa com o namorado.

__ Padre, me perdoe, pois eu pequei.
__ Quando foi sua última confissão, minha filha?
__ Há duas semanas, padre.
__ Sim...o que houve?
__ Padre...o senhor sabe que namoro esse rapaz, Klaus, há coisa de seis meses. Mesmo ele não sendo uma pessoa de fé, aceitou a minha prontamente, por me amar e me respeitar. Mas logo isso se tornou um problema. Não a minha fé, exatamente. Ele começou a trabalhar demais e ficamos sem tempo para que pudéssemos nos ver. Na verdade, padre, o único dia em que podemos nos ver é o domingo.
__ Mas aos domingos tem a Igreja, Roberta.
__ Sim, padre, eu sei. Eu argumentei isso com ele. Pedi a ele que continuasse a compreender e aceitar, mas ele está irredutível. Pedi a ele que trabalhasse menos, pois assim eu não precisaria abandonar a Igreja, mas ele sequer considera essa possibilidade.
__ E quais são as razões dele para trabalhar tanto?
__ Ele é uma pessoa prática, padre. Além disso, bastante ambiciosa. Costuma esperar por resultados imediatos às suas ações, e sempre acha que há mais por se conquistar. Mas não é uma ambição negativa, padre, de forma alguma. Ele jamais faria mal a alguém ou a si mesmo pra alcançar seus objetivos.
__ Mas não é exatamente isso que ele está fazendo, Roberta? Abrindo mão do amor que você tem por ele, que vejo ser verdadeiro, pra conseguir tudo o que quer? Colocando você contra a parede? Responda-me...você acha isso justo, Roberta?
__ Padre, eu o amo, e sei que ele me ama. Não quero que ele perca nada por mim. Mas não quero perder nada, também. Não quero me afastar da Igreja ou abalar minha fé, por um único momento, por causa dele.
__ Sua fé já está abalada, minha filha. Do contrário, você rechaçaria de pronto qualquer chantagem nesse sentido. Lembre-se, Roberta, o amor de Deus é o único verdadeiro. É o único que vai seguir contigo por toda a vida, é o único que tem como recompensa a verdadeira felicidade.
__ Mas, padre...
__ Você tem que fazer uma escolha, Roberta. É o único caminho que lhe resta. Agora eu te repasso essa penitência, para que se arrependa por questionar o amor de Deus.
__ Amém, padre. Amém.

No domingo seguinte Roberta não foi à missa pela manhã, passando na casa de Klaus logo cedo. Quando chegou o viu sentando na varanda, com uma caneca do que provavelmente seria café, um meio sorriso nos lábios. Seu cachorro corria freneticamente de um lado para o outro.
__ Bom-dia, Klaus.
__ Roberta...você não me avisou que vinha.
__ Pensei em conversar. Precisamos conversar.
__ Tudo bem. Estou ouvindo.
__ O que há com esse cachorro?
__ Nada. Só dei um pouco de café pra ele.
Roberta ficou chocada. Sabia que Klaus tinha umas idéias bastante perturbadoras, mas nunca o tinha visto colocar nenhuma delas em prática.
__ Você deu café para o cachorro? Isso é perverso!
__ Eu nunca me diverti tanto.
__ Meu Deus, Klaus, eu...enfim. Não importa. Vim para falar sobre a situação do nosso namoro. Quero saber se você vai continuar irredutível.
__ Roberta, de uma vez por todas, entenda. Eu não vou abrir mão do meu trabalho por causa do seu capricho.
__ Não é capricho, Klaus, isso é minha fé! É a única coisa na qual acredito, é a minha vida!
__ Meu trabalho é a minha vida. Eu vim do nada, Roberta. Olha pra mim agora. Será que você não percebe? Como você espera ter tranqüilidade, segurança, conforto, se eu não trabalhar pra conquistar tudo isso? Diga-me, Roberta, com sinceridade, do que vamos viver? Da sua fé? Vamos viver de amor e fé? Isso é ilusório.
__ Deus nos concede tudo.
__ E você por acaso tem uma conta bancária onde Ele, o Todo Poderoso, deposita a pensão mensal pra você pagar suas contas? Ele te alimenta?
__ Alimenta minha alma.
__ Chega, Roberta. Honestamente, me encanta que uma mulher sensata e inteligente como você tenha cegado à realidade.
__ O que me encanta é que você tenha se transformado nesse monstro egoísta e mesquinho. Você só pensa em dinheiro, Klaus.
__ E vou pensar em quê? Preciso viver, Roberta. E o seu Deus não vai me prover, disso eu tenho certeza.
Klaus tomou o café de um gole só e atirou a ponta apagada do cigarro no cinzeiro.
__ Eu te amo, Roberta. Mas acho melhor passarmos um tempo distantes um do outro. Reorganize suas prioridades.
__ Você está terminando comigo, é isso? Está terminando comigo porque eu tenho a minha fé?
__ Não, Roberta. Estou terminando com você porque não sei quem você é.
__ E você, quem é? Veja como o dinheiro talhou você, Klaus. Você costumava ser carinhoso e sonhador. Agora é um arrogante ambicioso que só espera benefícios. O Padre João estava certo.
__ Você falou com o padre sobre mim?
__ Falei com ele sobre nós. E sabe o que ele me disse? Disse que se você fosse realmente uma boa pessoa jamais me pediria pra abandonar a Igreja só porque você não pode fazer um sacrifício mínimo por mim.
__ Ah, não? E todas as manhãs que acordei mais cedo pra te acompanhar à missa? E todas as tardes que perdi ouvindo o mesmo sermão o dia inteiro? E o tanto que eu deixei de lado por você, Roberta? Não seja injusta. Eu te amo, Roberta. E fiz isso porque eu te amo. Só não posso fazer mais.
__ E por que não?
__ Porque você não me ama.
Klaus assoviou para o cachorro, que continuava sua corrida frenética sem demonstrar sinais de cansaço e sequer lhe deu atenção. Deu as costas à Roberta e entrou em casa sem dizer palavra, batendo a porta atrás de si.
Ele realmente amava Roberta. Realmente queria aquela mulher em sua vida, por sua dedicação, sua inteligência e por todo o amor que ele achava que ela sentia. Sem contar-lhe nada, Klaus fez planos para os dois, deixando um pouco de lado seu comedimento natural, pois acreditava que seria feliz ao lado dela. Tencionava lhe pedir a mão em casamento quando um ano de namoro se completasse, mesmo sabendo que os pais dela o detestavam. E por isso vinha trabalhando tanto...além de sua satisfação pessoal, queria dar à Roberta e aos seus filhos o que ele nunca teve.
Porém Klaus era, acima de tudo, uma pessoa realista. Não perdia tempo em devaneios e nem acreditava que o sobrenatural viesse resolver o que competia a ele próprio. Por isso, perdeu um compasso quando entrou em casa, deixando uma Roberta chocada do lado de fora. Mas, passados poucos minutos, ligou o computador do escritório e deu início ao seu processo pessoal de limpeza: excluiu fotos, e-mails e o projeto de cinco anos que havia estabelecido para ambos. Depois, abriu a pasta do trabalho e adiantou todo o serviço da semana. Na certa, ganharia uma excelente bonificação por isso.
Roberta, por sua vez, dedicou-se completamente à Igreja, freqüentando todas as missas e grupos que seus horários permitiam. Condenou a si mesma por ter acreditado em Klaus e no amor que ele dizia sentir, aplicando a si mesma uma pena severa que seguia à risca. Seus pais ficaram extremamente preocupados e solicitaram a intervenção do Padre João, mas Roberta estava irredutível. E acreditava que Deus iria recompensá-la por tanto esforço, aceitando seu sincero pedido de perdão e seu arrependimento.

Dedicando-se integralmente à Igreja, Roberta acabou deixando de lado o trabalho e a faculdade, acabou negligenciando a família e os amigos, e em pouco tempo se viu completamente sozinha.
Sem perspectiva, Roberta resolveu procurar por Klaus, depois de meses sem nenhum contato, nenhuma notícia. Descobriu que ele havia sido transferido para a sede da empresa, em outro estado, para ocupar um cargo de alto prestígio e alto salário. Descobriu que ele ainda podia alçar vôos maiores, por sua dedicação, competência e ambição. E até pôde imaginar Klaus feliz, por ser isso tudo que ele sempre quis, tudo pelo que ele sempre lutou. E ela, o que exatamente tinha? Pelo que havia lutado? Quais eram as suas conquistas? Pela primeira vez em sua vida, Roberta sentiu revolta e cansaço. Roberta pôde ver a si mesma completamente abandonada, porque o Deus em quem ela tanto acreditava parecia ignorá-la completamente. Pela primeira vez ela se permitiu a questionar se esse Deus realmente existia, se realmente era bom e misericordioso...e se existia, qual seria a verdadeira razão para que Ele permitisse que isso tivesse acontecido a ela. E se lembrou de uma frase que ouviu de Klaus, há meses, assim que começaram a brigar: “Deus é perverso a maior parte do tempo. Nos joga aqui e ainda espera que nos arrependamos pelos atos que ele diz que podemos tomar. E enquanto nos deixa aqui, sequer se digna a nos ouvir ou atender nossas preces”. “Mas podemos conversar com Ele. Pra isso existe a confissão, Klaus. Nós falamos e Ele nos ouve. Depois Ele nos responde, seja pela Eucaristia, seja pelo sermão do padre. Nós falamos, um de cada vez. E ouvimos, um de cada vez”, retrucou Roberta. Klaus, incrédulo, apenas respondeu: “dois monólogos não fazem um diálogo”.

Klaus estava sentado na varanda de sua nova casa. Seu irmão estava em casa, para uma visita. O cachorro, mais uma vez, corria freneticamente.
__ Você deu café para o cachorro de novo? Meu Deus, Klaus, você é doente.
Klaus sorriu, satisfeito. Acendeu um bom charuto cubano, deu uma golada no excelente Johnny Black que ganhou por ajudar um amigo e suspirou:
__ Ah...isso sim é que é vida.

5 comentários:

Unknown disse...

CARAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAALHO!!!

Você é muito foda, Dani!
Ficou perfeito!!!
uhauhauhauhaauhuahauhauha...


Velho, não ficou muito bom, não... ficou excelente!!! EXCELENTE!!!!!

Preciso praticar, preciso praticar, preciso praticar... senão eu não te alcanço nunca!!!

PARABÉNS!
:-*

Dany Lynn disse...

No primeiro momento surgiu em minha mente: (desculpa as palavras impropriadas, mas serei natural..rs)
'Roberta, manda esse Klaus se fuder.'
Klaus, manda essa Roberta se fuder.'

No segundo momento:
'Roberta, tenha a santa paciência, manda logo esse padre pro quintos dos infernos.'

No terceiro momento:
'O que???????? Ele deu café pro cachorro????
Cool!!!!!!!!!'

No quarto e ultimo momento:
'Jamais confie em algo que você não pode ver e nem tocar. E se esse algo tiver um nome Deus, então arrume suas malas e parta com o primeiro bonitão que surgir.'
'Ele deu café de novo pro cachorro????????
Very very Cool!!!!!!'

Dani...simplesmente perfeitoooo!!!

Te amo!!!

Unknown disse...

Eu sabia que mais alguém ia gostar da idéia de dar café pro cachorro!

Tá vendo Dani, eu não sou doente... pode-se dizer que eu seja um semi-sádico criativo.
:-P

Dany Lynn...
Veja aqui como surgiu a história de dar café pro cachorro.
Cotidiano

Unknown disse...

ouuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu

CAFÉ CAFÉ PARA MY BANGO
HAHAHAHAHAHA

ou a Mona até que gosta de uma cerva.....

ZINK disse...

Eu acho que todos vocês devem pedir perdão pois há um deus piedoso que perdoará todos vocês.


Eu posso auxiliar, por favor depositem seu dízimo na seguinte conta:

Banco do Brasil
Ag: 3603-x
Cc: 11052-3

Façam isso ou podem ir para o Inferno!

amém