quinta-feira, 24 de maio de 2007

Fuga

Chuvinha fina, daquelas bem chatas, e eu correndo com uma pressa monstra pra um encontro que eu sabia malfadado desde o começo. Ela já devia estar me esperando há horas, impaciente, respirando fundo, aqueles cacoetes odiosos que ela tinha, mania de estralar os dedos que me enlouquecia. Trac trac trac. Eu odiava aquele estralar de dedos, eu odiava os suspiros de impaciência, eu odiava aquela mulher.

Parei debaixo de uma árvore, contrariando as orientações de não me aproximar de árvores na chuva, e acendi um cigarro. Eu tremia de frio, de frio e expectativa, queria ouvir o que ela tinha a me dizer, qual seria a desculpa da vez. Fumei o cigarro com alguma pressa e voltei a correr, cheguei ao lugar marcado e a vi de longe, também fumando um cigarro e balançando a perna daquele jeito incômodo que ela fazia como ninguém. Me aproximei com cautela, quase como se estivesse prestes a atacar a presa, mas ela nunca era presa, era sempre a predadora, besta fera maldita. Sentei à mesa respingando, o nariz escorrendo, certamente eu a estaria envergonhando, mas ela não olhava pra mim. Sacudi o cabelo com violência e enfim falei:

__ O que você quer?
__ Nada. só te dizer que estou de viagem marcada. É preciso uma movimentação de guerra pra falar com você.
__ Só isso? posso ir?
__ Minha filha, eu pensei se queria vir comigo.
__ Não me chame assim. Nem me peça pra ir contigo.
__ Não te chamar de "minha filha"? Mas você é!
__ Isso não significa que você seja minha mãe.

***
__ Oi, amor.
__ Oi, meu bem. Como foi a conversa?
__ Conversa com quem?
__ Com o papai noel. Claro que com sua mãe, Lígia.
__ Eu não estive com ela.
__ Eu odeio quando você mente pra mim. Ou insulta a minha inteligência. Insulta até a parca inteligência da sua mãe. Você acha que ela não ia me ligar, contando o último capítulo do seu drama? Não seja burra. O que ela queria?
__ Me convidou pra uma viagem. Eu não aceitei, se quer saber.
__ Faça o que quiser. Não me importo mais.
__ O que você quer dizer com isso?
__ Que eu não sou sua mãe.
__ Então você desistiu de mim? Não me ama mais?
__ Eu te amo como mulher. Não como filha. E, ainda te amando como mulher, não posso te impedir de nada. Se quiser voltar pro conforto do seu lar, esteja à vontade, Lígia querida. Não vai ser a primeira vez que você me deixa mesmo.
Bingo. Era o que eu precisava ouvir pra me sentir em paz com minha consciência. Pobre Bárbara. Já a manipulava há alguns anos, mas ela sempre perdoava, ela sempre se deixava ficar, sempre se negaceava por mim. E eu estava prestes a abandoná-la, forçando-a a dizer coisas que me fizessem abandoná-la sem me sentir um monstro por isso.

É muito fácil pra qualquer pessoa fingir que é um ser humano moderninho, desprovido de preconceitos, que usa algodão egípcio, lê Sartre e come comida de coelho. É muito fácil criticar e apontar o dedo inquisidor pra quem critica e aponta o dedo inquisidor, e se dizer libertário ao extremo. Tudo isso é fácil. Difícil é estar do outro lado da fronteira, difícil é ser o alvo dos dedos inquisidores. Difícil é ter um relacionamento com outra mulher e agüentar, serenamente, todas as piadinhas fora de hora, todos os olhares de esguelha, todos os “vocês são o casal mais lindo que já vi” seguidos de um olhar frio e duro de reprovação, porque até mesmo esses moderninhos não perderam o ranço de sua educação cristã e continuam julgando, condenando, estagiando para o Deus malvado deles que pune e castiga.

Repassei mentalmente meus últimos sete anos e vi que, nem de longe, amei Bárbara como ela me amou. Porém isso não me fez sentir que a decisão dessa noite seria menos árdua. Desejo vem e passa. Queria que ela tivesse isso tão claro como eu tenho na minha cabeça, mas ao mesmo tempo penso que isso pode ser só uma desculpa que crio levianamente. Amei Bárbara, verdadeiramente? Talvez. Lutei por ela. Escolhi odiar minha mãe para amar Bárbara. Mas a amei? Ou só a desejei violentamente enquanto meu corpo ainda carecia de desejo? Pensei em E., devia estar arrumando as malas agora. Valia mesmo a pena abandonar essa mulher que me tem há sete anos pra fugir com esse homem que conheço e recebo há apenas alguns meses?

Vá lá. Pode até ser que eu perca esse frio na barriga que sinto diariamente ao lado dela. Pode até ser que eu não freqüente os lugares bacanas, pode ser que eu nunca mais vá a uma ópera, pode até ser que eu tenha filhos e casa e cachorro, o kit completo, antes dos trinta. Vá lá. Mas eu só quero agora “a sorte de um amor tranqüilo”. Eu só quero deitar minha cabeça no travesseiro e dormir o sono solto de quem só ama. Quem sabe dar um descanso pra minha mãe, quem sabe ela dê um descanso pra mim. Quem sabe permitir que Bárbara se permita com outra pessoa, e seja feliz com alguém que queira ser feliz ao lado dela. Covarde? Que seja. O que eu quero não é aventura, desejo, loucura. Quero serenidade.

Passava das cinco da manhã e ainda chovia quando abri cuidadosamente a porta pra não escapar nenhum ruído. Nenhum bilhete. Nenhum abraço ou beijo de despedida. Nenhuma roupa esquecida no armário. Nem meu cheiro quis deixar pra ela. Apenas saí, tranquei a porta, passando a chave de volta para dentro por baixo da porta, pra que eu não tivesse desculpa alguma pra voltar. Lá fora o vento cortava, E. já me esperava no carro, esfregando as mãos umas nas outras pra tentar aquecer. Frio na barriga. Não era medo, nem expectativa. Era só um filho. Um filho que eu já tinha.

Um último olhar pra janela dela. Um último aceno. E, se tudo der certo, minha última fuga.

2 comentários:

Daniela Andrade disse...

oi! oi! oi! por que ninguém me lê?

=T

Unknown disse...

Bem, eu não cheguei a ler o conto inteiro de uma vez. Eu o li metade num dia... metade noutro dia...

Sei lá... acabei não me envolvendo com a história.