sábado, 5 de maio de 2007

Desesperança

Chovia torrencialmente. Ele parecia não se importar com o fato. Apenas caminhava calmamente pela chuva, como se estivesse passeando pelo parque em uma bela manhã de domingo. Estava à procura de um lugar qualquer onde pudesse se sentar e beber sossegadamente. Queria beber para esquecer o passado que o assombrava durante a lucidez da sobriedade.

Podia ver aquela tez que um dia fora tão delicada quanto a casca de um pêssego e que depois havia se tornado enrugada, ressecada e sem vida. Os lábios, outrora vivos e ardentes, tornaram-se ao mesmo tempo de um pálido sem vida e um roxo cor de morte. Ao se lembrar de como ela era bela, ele estancou na rua. Um verdadeiro dilúvio caia sobre sua cabeça. Se não estivesse chovendo seria possível ver as lágrimas que seus olhos vertiam, manifestação de seu coração destroçado pela saudade. Em alguns casos a saudade faz bem e inspira, em outros ela destrói uma pessoa, como se fosse uma onda na praia que vem com toda força e naturalidade fazendo ruir os castelos de areia.

Retornou à realidade e continuo caminhando, procurando um bar aberto. Já havia passado por três, mas ele queria um que fosse silencioso. Nada de som ambiente, nada de televisão, nada de conversas paralelas. Somente ele, a embriaguez e o silencioso som do esquecimento.

Encontrou finalmente um barzinho aberto que atendia às suas necessidades. Era um bar aparentemente bem família, e estava vazio. Ao chegar dirigiu-se ao dono sentado atrás do balcão e pediu uma dose de cachaça. Enquanto esperava ouvia a chuva desabando raivosa na rua, o som das gotas nas telhas de zinco do puxadinho do boteco e a água que descia das calhas das proximidades.

O dono deu-lhe a dose pedida, e ele pagou. Pegou o copo e sentou-se no fundo do bar, próximo aos sanitários, virado para a parede. As lembranças recomeçavam a surgir. Lembrava-se da última viagem que fizeram juntos para a praia. Meses de planejamento, outros tantos juntando dinheiro para a viagem tão desejada: lua-de-mel em uma praia o mais deserta e paradisíaca possível. Conseguiram juntar o dinheiro necessário e viajaram. Choveu tempestuosamente todos os dias, uma chuva parecida como a que caia agora.

Ele olhava fixamente a parede à sua frente, cheia de rabiscos e sujeira. Por mais vidrado que parecesse seu olhar ele não estava alheio à realidade. Ouvia à chuva, e chorava silenciosamente. Um choro imperceptível para quem o via de costas. As lágrimas simplesmente rolavam pelo rosto, sem emitir nenhum som. Sua dor era silenciosa e privativa.

Levantou-se, sem tocar no copo, foi ao balcão e pediu a garrafa toda ao dono do local. Pagou e retornou à mesa, na mesma posição em que estava. Sentou-se e começou a tomar a cachaça. Três copos seguidos. Ao perceber que as lembranças começavam a afogar-se no álcool, resolveu degustar o quarto copo. Agora permanecia somente uma pergunta: "por que ela"? A mesma pergunta de sempre, a única que nunca ia embora e que nunca era respondida. Talvez fosse essa pergunta que lhe causasse tantas lágrimas e tanto desgosto, ou ainda a causa de tanto sofrimento fosse a ausência de uma resposta lógica para ela. O peito ardia, o fôlego faltava, aquele nó na garganta nunca se desatava e as lágrimas desciam; silenciosas e cristalinas.

O amor que morre naturalmente merece as lágrimas da saudade, e da tristeza por ter se acabado. O amor que morre abruptamente arranca do peito as lágrimas pelas infinitas possibilidades dizimadas, pelo amanhã que nunca chegará, pela saudade que nunca há de cessar porque não houve um obstáculo que tornasse aquele amor, que era um mar de rosas, em um fardo a ser carregado por um caminho de espinhos.

Câncer. Em estágio avançado. Quimioterapia, sofrimento, dor e mais quimioterapia. Durante o tratamento a semente do sofrimento havia sido plantada junto com a semente da esperança em seu coração, e cada qual deveria ser devidamente regada para se desenvolver. A semente do sofrimento havia sido regada com morte, e germinara. A semente da esperança não tinha esperanças.

"Etliches fiel unter die Dornen; und die Dornen wuchsen auf und erstickten's".
Matthöus 13:7

4 comentários:

m.elissa disse...

eu só não entendi a última parte, me parece alemão...
mas o resto simplesmente...não tenho palavras, muito bom mesmo!
eu não gosto muito de ler contos e tal, mas isso que vc escreveu me roubou a atenção como um livro que eu li e nem notei a quantidade de páginas (Os Sete).

eu tô pasma.
parabéns mesmo!

Unknown disse...

Que bom que você gostou Melissa. A última parte é um versículo da Bíblia. Alemão? Só para dar um suspense e fazer as pessoas procurarem o que está escrito lá.

Anônimo disse...

Gostei muito deste conto, e você sabe que eu só leio contos por sua causa, e só os teus, continue sempre escrevendo!
Beijos

Daniela Andrade disse...

ainda não li o texto, só passei correndo pra agradecer pelo "discípula e mestra"

te amo, tóim!