segunda-feira, 13 de agosto de 2007

No terapeuta

"Eu sei que essa é minha primeira sessão, doutor, e sei que as pessoas costumam não falar muito assim, de início. Mas eu já não aguento mais. Preciso compartilhar isso com alguém. Sabe o que é, doutor? Eu sou médico também, olha só, sou cardiologista. Mas há uns anos, antes da especialização, na época da residência, o senhor sabe como é, a gente faz a residência. Eu fui residente em um hospital da rede pública, e logo no meu primeiro mês foi me acontecer isso. Eu residia no pronto-atendimento, via de tudo, fratura exposta, buraco de bala, gripe, infarto. Achava poético cuidar das feridas dos outros, acabar com a dor dos outros, o senhor entende, né doutor? Aquela baboseira sentimental que ataca todo médico em formação.

E foi logo no primeiro mês que aconteceu, doutor. Foi no meu primeiro mês de residência, numa madrugada fria e de chuva torrencial, que a Clarisse chegou. Não, eu não a conhecia, não era namorada ou coisa alguma. Nunca tinha visto Clarisse na minha vida. Mas ela chegou e eu fui tratar dela. Meu Deus, ainda me lembro com clareza do horror. Ela tinha sido encontrada à beira da rodovia, doutor, por um caminhoneiro que foi deixá-la no hospital. Tinha todos os documentos com ela, pobrezinha. Havia sido espancada, estuprada e esfaqueada, bem aqui, no flanco esquerdo, perto do coração. Perto do coração, doutor, o senhor entende? Fiquei chocado. Ela ainda estava viva quando me disseram pra cuidar dela. Peguei seu braço pra ver seu pulso e vi cortes, muitos cortes. Vi cicatrizes nos dois braços, depois verifiquei as pernas, a barriga...cheia de cicatrizes, a Clarisse. Era uma suicida, eu logo soube, que outra explicação praquelas cicatrizes? Mas ela não tinha feito a escolha, doutor, alguém escolheu por ela. Alguém quis que ela morresse, alguém a machucou daquele jeito horrendo. Ai, doutor, nem gosto de lembrar. Um enfermeiro chegou perto e disse que o pulmão estava perfurado, não dava dez minutos pra ela morrer, falou que ia fumar um cigarro e saiu, me deixando sozinho com ela. Doutor, eu fiquei tão pesado. Pedi a ela que abrisse os olhos e, quando ela abriu, o que vi foi um vazio, mas um vazio de um negrume absurdo e estarrecedor, vi duas janelas abertas para o nada infinito. Por Deus, doutor, o senhor não tem noção do que é aquilo. Aquela menina já estava morta, doutor, só que ainda viva. Nunca tinham me dito na faculdade que eu ia encontrar uma pessoa que morrera em vida. Por Deus do céu, ela devia ter menos de 20 anos, doutor. Morta em vida. Ela falou comigo, arre, voz baixa e silenciosa, quase uma prece. Ela falou: "faz passar". Eu levei as mãos à cabeça, assim, doutor, porque eu fiquei desesperado. Eu sabia de que dor ela estava falando, era da dor na alma dela, não tinha como curar aquilo. Não vende na farmácia, vende, doutor? Eu sorri sem graça, acho que já estava chorando quando ela falou, ainda mais baixo: "deixa pra lá". Eu entendi. Olhei o vazio do olho dela e entendi. E fui lá e desliguei todos os aparelhos que a mantinham viva. É isso mesmo, doutor. Matei uma pessoa que já estava morta. Meu Deus, finalmente consegui compartilhar isso com alguém. Obrigada, doutor, muito obrigada."


Dias depois...


__ Clínica de Psiquiatria, em que posso ajudar?
__ Eu queria marcar uma consulta.

No consultório...

"Vim confessar, algo. Também sou psiquiatra. E agora sou cúmplice. Cúmplice de um assassinato. Ajudei alguém a matar alguém que já estava morto. O senhor entende, doutor?"

3 comentários:

Dany Lynn disse...

em primeirissimo lugar...pqp....agora que a ficha caiu,...meu 1º conto e a personagem chama-se Maraina...juro dani nem me dei conta disso...ate pq escrevi aquele conto numa mistura de lucidez e surto. Agora qdo vi seu comentario e vi seu fotolog, a musica e voltei aki e vi a continuaçao da hisria...ai tudo encaixou....caralho...pq minha personhagem cahamava-se mariana....juro...naum foi plagio...o pq? naum sei.....utimamente estou sem respostas para milhares de perguntas.
Peço- lhes desculpas por este ato....e voltarei a ler o relato do triste fim de clarisse

Dany Lynn disse...

". Era uma suicida, eu logo soube, que outra explicação praquelas cicatrizes? Mas ela não tinha feito a escolha, doutor, alguém escolheu por ela. Alguém quis que ela morresse, alguém a machucou daquele jeito horrendo."
Não há como começar um comentario sem citar um pedaço de suas magnificas palavras. 1º pq sinto-me nessa situaçao. Eis aqui digitando nesse extao momento uma suicida, mas que logo alguem irá querer a sua morte.
Sinto-me ate envergonhada de pronunciar as minhas reles palavras em paginas virtuais qdo deparo-me com a beldade e simplicidade que vc tem com o mundo das letras.
Morrer em vida....Quem ira desligar meus aparelhos?

Dany Lynn disse...

linda
/naum naum
amei brasilia
é que so coloquei um pouco da minha hipocrisia que estava sentindo naquele momento...
a paisagem era fenomenal...naum leve minhas palavras tao a serio.
Me perdoe por isso.
Escrevi tudo aquilo em um caderninho espiral comprado em uma lojinha tipo camelo...e fiquei perto do museu escrevendo...tive um surto em um dos shoppings
argh....naum me leve a mal.
Sua terra é linda....e um componente lá é mais ainda ...rs
Sim...precisamos desabafar naum é???
espero lhe encontar on.