terça-feira, 7 de agosto de 2007

Fragmentos de cartas

Choveu. Parou, feito qualquer outro dia. E não é mais. Deixou de ser um dia qualquer, e há dias tem sido assim. De outro modo, tem sido sim um dia qualquer, um dia como todos os outros. Porque todos os dias a angústia é a mesma, e há sempre desesperança. E não há mais preces silenciosas, um abraço de conforto ou uma palavra para afagar o coração que não se abarca mais. A angústia é a mesma, por isso é um dia como outro qualquer. Mas o fato é sempre novo, desqualificando o dia e a vida. Ontem foi a solidão, anteontem o abandono, hoje a resignação diante das coisas que não se podem transformar. E choveu novamente, e parou como sempre, e o sol é fraco e nunca aquece. A chuva já matou muita gente, solidão e angústia não entram nas estatísticas, mas aquela moça morreu disso. E eu estou certa em afirmar que os dias dela não eram os mesmos, embora os pais dela dissessem o contrário e os amigos não acreditassem. E, como não podia ser diferente, ela morreu sozinha na sua casinha de bonecas, abarrotada de sonhos e vazia de vida. A casa, não a moça. Essa, essa foi esvaziada muito nova, a essência dela já havia se perdido. E talvez por isso fosse tão diferente das pessoas todas deste mundo. Porque roubaram a essência dela e ela quis procurar, ao contrário daqueles que mantêm sua essência guardada em pequenos frascos mesquinhos e sem profundidade alguma. E ela procurou enquanto pôde, mas o caminho era longo, frio e deserto, e todos os atalhos eram tão incertos quanto a noite escura. E, ainda que não se pareça crível, um dia ela parou de procurar, porque alguém de sorriso bonito e olhos de perdição disse a ela que a busca era inútil. E como era de se esperar ela se perdeu, para todo o sempre, um sempre a perder de vista, exatamente como o coração dela. E nunca mais se encontrou, nem foi encontrada, e foi avistada pela última vez na beira de uma estrada que levava a lugar nenhum, fumando o cigarro sem número de uma das suas vidas, seja lá qual fosse. E eu estou certa em afirmar que chovia, e depois parou tudo de uma vez, de uma interrupção silenciosa e doentia, e os pais dela choraram por três dias e três noites e foram cuidar da vida, e os amigos dela logo a esqueceram, porque nós definimos a importância das pessoas na nossa vida, e os mortos só nos importam enquanto o corpo ainda é quente. E eu, que sofria de insônia, agora descanso, o descanso justo e merecido daqueles cuja mente perturba mais que todos os sons amontoados, cujo coração não compreende o verdadeiro sentido da palavra “paz”.

****

__ Mariana, você ainda está dormindo?
__ Pergunta cretina.
__ O que você disse?
__ Nada, mãe. O que quer?
__ Você soube? Clarisse foi encontrada.
__ Já não era sem tempo. Como está?
__ Morta.
__ Puxa, quanto zelo no repasse da notícia.
__ O quê?
__ Nada, mãe. E a Regina?
__ D. Regina, mocinha. E ela está bem. Se mostrando uma pessoa forte. Bem, tenho de ir trabalhar. Não enrole na cama, senão vai se atrasar.
Pobre mamãe. Sempre acredita em tudo que dizem. Em tudo que mostram. Não é capaz de ler as pessoas.
Meu pai tinha essa capacidade. Por isso partiu enquanto podia. Eu queria ter ido com ele. Nada pior que essa casa e essas ausências. Sobreviver é para quem sabe enganar a vida, e isso eu nunca aprendi.
Tomei um banho quente ainda pensando em mamãe, mas logo desviei meus pensamentos para Clarisse. Fiquei me perguntando se ela havia conseguido enfim decifrar todas as nossas questões, e se de alguma forma pôde me passar a mensagem.
Reli meu diário, costume bobo, tomei o café amargo de minha mãe amarga e fui para a faculdade. Não há uma manhã como outra, mas aquela me parecia exatamente igual. Angústia...

***

Não posso mais suportar isso. Digo, essa coisa de acordar, colégio, dormir, acordar...Há tanto para se ver, não concorda? Tenho medo da rotina, Mari, tanto medo que me cega. Olha os meus pais e me diz, em nome de qualquer coisa, se isso é justo. Me diz se faz sentido viver trancada nesse quarto, olhando pela janela as casas iguais, das pessoas iguais, que descem dos seus carros iguais e admiram seus jardins estupidamente iguais. O que eu faço com toda essa balbúrdia dentro de mim? Como posso silenciar meus pensamentos, velozes e incompreendidos?
Já pensei nisso muitas vezes, e somente agora considero verdadeiramente a possibilidade: vou fugir, Mari. Não volto mais, nunca mais. Não, minto, volto sim. Um dia eu volto pra te buscar. Pra gente morder a vida.

***

Pra gente morder a vida...Ela sempre escrevia isso nas nossas correspondências secretas. Já fazia tanto tempo que ela havia partido, mas eu não tinha como esquecer, afinal ela havia prometido voltar. E se foi, há quase sete anos, e eu sabia que ela jamais voltaria, mas eu esperei. E chorei três dias e três noites, como ela dizia, e preparei minha mala, pra que a gente não perdesse tempo quando ela voltasse pra me buscar.

***

__ Você sabe pra onde ela foi, não sabe?
__ Infelizmente, não, D. Regina. Sinto muito.
__ Sabe sim. Eu sei que você sabe. Sei que vocês trocam cartas. Diga-me onde ela está.
__ Já disse que não sei. E, mesmo se soubesse, não contaria.
__ Posso saber o motivo?
__ Ora, a vida é dela, ela faz disso o que bem entender. Ela precisou partir.
__ Não seja leviana! Então você acha certo o que ela fez?
__ Certo, certo, pode até não ser. Mas era necessário. A senhora não a conhecia, nunca vai poder compreender.
__ Se você sabia que ela ia fazer isso por que não fez nada para impedir, Mariana?
__ Deixa a Clarisse encontrar o que procura. Um dia ela volta pra casa, mãe.

***

Tenho tanto medo que alguém encontre essas cartas...E se a sua mãe bisbilhotar e descobrir tudo? Eu sei, ela não teria coragem para tanto. Mas ainda assim, cautela e atenção.
Nada é fácil, isso é fato, a vida é ingrata, mas eu consigo superar isso. Conheci mil pessoas, mil lugares, nem parece que saí do universo conhecido há apenas dois meses. Porque isso aqui é um universo paralelo, Mari, e a fenda que eu abri pra escapar da realidade já se fechou. Você nem acredita nas coisas que vi, nas situações que me envolvi. É tudo sonho, Mari, e eu nem tenho mais pesadelos porque não durmo mais. As pessoas aqui, do lado de fora da minha janela, são bondosas e cruéis, e tudo é volátil, e a vida tem pressa. E eu tenho pressa, você entende, é como eu. E eu tenho só treze anos, e você nem vai acreditar nisso, mas eu consigo quase tudo que quero, eu nunca menti pra ninguém, veja bem, e consigo casa, comida e roupa lavada por alguns dias ou semanas, algum dinheiro, alguns cigarros, e pego a estrada de novo, e sei que vou no caminho certo. E eu vou te mostrar tudo isso um dia, Mari, pode esperar.

***

Fiquei sozinha na capela por muito tempo, porque os pais dela não puderam faltar ao trabalho. Olhei Clarisse por longos minutos até reconhecer nela minha amiga de infância. O rosto dela estava machucado e não havia felicidade em seu semblante. Coisa estúpida de se dizer, onde já se viu morto feliz? Mas era algo de se sentir, e eu não sentia isso. Era como se a busca dela tivesse sido inútil, e aquilo me doeu, muito mais que a morte dela, disso eu já desconfiava, afinal não me escrevia havia alguns meses. E a última carta era realmente desesperançosa. Parece que os olhos de perdição eram uma grande mentira, e a vida inteira é uma doença traiçoeira, e a minha amiga sofreu por ter verdade demais num coração vasto demais.
__ Obrigada por vir, Mariana.
__ Não por isso, D. Regina. Não vai olhar sua filha pela última vez?
__ Não, não. Já vi o que tinha de ver no reconhecimento do corpo.
__ E o tio Geraldo, não vem?
__ Deve chegar para o enterro. Caíque não vem, pobrezinho, está em São Paulo a trabalho.
Eu não tinha pena dessa família. Regina é fria como um imenso bloco de gelo, Geraldo é apático como os tons pastéis. E Caíque...

***

Você e o Carlos Henrique? Não posso conceber isso, Mari, juro que não posso. Ele sempre me pareceu idiota demais, ainda mais perto de você, que é linda e incrivelmente especial. Mas o amor tem dessas coisas, e eu espero que você possa descobri-las. Quanto a mim, só sinto saudade de você. É quase como se eles não existissem mais. Ou como se nunca tivessem existido de fato.
O Rio de Janeiro é absurdamente lindo, tão bonito que cansa. André e eu estamos mortalmente felizes, o quiosque vai bem e todas as noites temos viola e fogueira. Semana que vem eu completo dezesseis anos, mas me sinto uma criança de apenas três. E só tenho uma data para comemorar. E não demora pra você também nascer de novo. Espera...

***

__ Mari, escuta...
__ Não precisa dizer nada, Caíque. Eu entendo.
__ Que bom. Isso facilita as coisas.
__ Agora eu entendo o porquê da sua irmã ter fugido. Quer dizer, olha pra você...
__ Como assim?
__ Nada, Caíque, esquece. Eu sei que é isso que você vai fazer mesmo...E eu não quero me arrepender depois.
__ Tudo bem, então. Vou deixar você sozinha.
Engraçado pensar que fiquei quase cinco anos com Caíque, pra terminar desse jeito. Mas quando ele bateu a porta do quarto e eu joguei o anel de noivado no lixo, me arrependi de cada segundo que passei com ele. E chorei de vergonha por ter pensado em não partir com a Clarisse caso ela viesse me buscar. Nunca disse isso a ela, nunca disse isso a ninguém, porque era feio demais. E indigno de quem eu penso ser, e muito mais indigno de quem Clarisse era. E, obviamente, Caíque não era merecedor disso, Caíque não merecia nada.
Minha mãe trouxe o Zeca do veterinário hoje, e ele anda tão fraquinho que acho que em breve vamos ter outro enterro. Feliz cãozinho, tem quase a minha idade e viveu muito mais que eu.

***

Promete pra mim, em nome de qualquer coisa, que você vai se cuidar para sempre, para nunca precisar abortar. É horrível, sangrento e desolador. Infelizmente um filho não estava nos planos, que planos? O André já se foi há algum tempo, mas ainda tem um buraco aqui. Sendo honesta, tem dois buracos, eu acho que nunca mais vou engravidar de novo, mas tanto faz, vou ser madrinha do seu filho e adotar um monte de criancinhas lindas quando eu ficar velhinha. E não serei como a D. Regina, serei a melhor mãe do mundo, e meu quintal vai ser cheio de brinquedos e cachorros, tão ou mais adoráveis que o seu incrível Zeca.
O grupo de teatro caminha, caminha bem, passeamos todo o interior, sempre com a mensagem de uma vida bela e livre. Tem a Camila, que é linda demais e me lembra você, ela voltou pra casa porque era cheia de medos, e me disse antes de partir que a gente é livre pra escolher, mas é escravo das conseqüências. E você nem acredita no quanto isso pesa no meu peito. Daí eu sonhei três dias e três noites que eu voltava pra casa e dava com a porta trancada, e eu fiquei cheia de medos também. Onde isso tudo vai parar, Mari? Detesto admitir, mas há todo tipo de escravidão, e eu sou escrava da minha liberdade.

***

Como eu disse, não sentia pena da família de Clarisse. Pouco mais de uma semana depois do enterro e a casa está cheia de gente, música alta e salgados frios, e Regina ostenta ouro e superioridade, Geraldo conversa com pessoas que não conhece, e Caíque sorri para mim como costumava sorrir no começo de tudo. Minha mãe está trancada no quarto com inveja de toda e qualquer vida que não seja a sua, e eu me sentei perto do muro com uma garrafa de vinho e um coração cheio de sonhos adormecidos. Caíque veio ter comigo e fui definitivamente grosseira, e só então consegui chorar diante dos acontecimentos recentes. Era como se não houvesse resposta alguma, afinal, apenas a resignação diante de tanta vida despedaçada. Ou intacta, caso prefira, nunca mordi a vida como isso realmente deve ser.
Conversei com Geraldo quando já amanhecia e o último bêbado ainda vomitava no jardim. Ele me perguntou o que havia feito de errado com Clarisse, qual foi o ato falho, e eu me descobri sem resposta para isso. Sempre achei que a resposta estaria pronta caso alguém questionasse, parecia tão óbvio para mim. Mas não. O que terá descoberto Clarisse em sua busca? O que a fez declinar de continuar procurando, verdadeiramente?
De repente uma angústia nova atravessou meu peito, feito ponta de lança, e eu deitei no colo de Geraldo como fazia com papai e tentei dormir, mas não pude, achei que nunca mais fosse dormir na vida, porque enfim percebi que sequer havia uma pergunta. E Clarisse fugiu disso também, ela era fraca porque fugia daquilo que não podia combater. Mas quem sou eu para julgá-la com tamanha severidade? Ela colecionou lugares, vivências e amores, eu colecionei angústias e ausências. Nunca fugi de nada, mas também nunca combati nada, fiquei sempre neutra, vendo os exércitos invadirem meus territórios e tentando permanecer ilesa, sem lutar pela posse de mim mesma.
À tarde fui ter com Clarisse no cemitério, e só consegui pedir perdão. E choveu, e parou, feito qualquer dia. Mas a minha decisão finalmente foi tomada.
Se chover de novo essa noite, eu juro que me mato.

***

Não sei como começar essa carta, Mariana. Achei que tivesse descoberto tudo que precisava, achei que meus olhos de perdição enfim me mostravam o caminho, e me dei por satisfeita. Mas os olhos de Valter são de perdição em embriaguez e fúria, e agora sou escrava das promessas que ele me fez um dia. Descobri o gosto ruim da vida, o pedaço podre de tudo isso, e não sei como me livrar. Tudo é tão negro perto de mim agora, não tenho mais ânsia de viver. Como isso é triste, cara amiga! Como é difícil aceitar que esse é o ponto de chegada, e fim! Sinto falta da minha casa, que coisa doentia isso de viver. Não há beleza, entende? Porque eu transformei tudo que acreditava em continuidade do viver de outra pessoa. E eu nunca fui assim, você sabe que não, mas não posso mais acreditar nisso, não confio mais em mim. Porque eu falhei miseravelmente, e estanquei o sangue que latejava incontrolavelmente. Tenho vinte anos e não conquistei absolutamente nada, e não posso morrer assim, sozinha, cheia de angústias, em uma casa que não é minha e ao lado de alguém que não me vê.
Estabeleci um prazo para mim mesma. Se em dois meses eu não escrever novamente, pede pra D. Regina arrumar meu quarto, porque se não funcionar da maneira que tem que ser eu volto pra casa.

***

Minha mãe teve um acesso de insanidade temporária e revirou meu quarto atrás de maconha, coisa mais absurda, e encontrou as cartas de Clarisse, todas elas. Tive que lembrá-la que Clarisse estava morta, porque me proibiu de ter com ela. Daí foi minha vez de ter um acesso, mas de riso, porque era só o que me cabia. Ri porque tinha pena de minha mãe, de Clarisse, de mim mesma. Ri porque choveu todas as noites e eu não me matei, conforme havia decidido. Ri porque amava Caíque, ainda, e junto com ele toda a segurança que isso implica. Ri porque meu pai me abandonou quando eu tinha cinco anos, foi comprar cigarro e nunca voltou, e ao invés de odiá-lo eu odeio esse vício, detesto esse bastão nicotinoso. Ri porque toda a minha vida é um emaranhado de defesas pré-estabelecidas, e eu sempre apertei o botão vermelho inconscientemente.
Minha casa parecia um bloco de carnaval fora de época. Regina e mamãe, brigando feito cães, no duelo dos trios. Vez ou outra eu ouvia meu nome, seguido de adjetivos nada elogiosos. E Geraldo, folião de quarta-feira de cinzas, sentado no sofá com olhos profundamente interessados no nada.
__ Ela te amava, sabe?
__ Hã?
__ Clarisse. Não sei quanto à Regina e ao Caíque, mas estou certa em dizer que ela te amava, tio.
__ Eu sei, Mariana. Porque tudo que ela viu em mim, precariamente escondido, fez com que escolhesse esse caminho. E eu me orgulho dela por isso.
Escapei à francesa e fui ter no quarto de Caíque, que dormia o sono solto e sem preocupações de quem não quer morder a vida, apenas enganá-la enquanto ela deixar. Me deitei ao seu lado e não me surpreendi quando ele me abraçou e me chamou pelo nome.
__ Posso ficar um pouco?
__ Fique para sempre.
__ Sempre é muito tempo.
__ Eu sei. Por isso mesmo.
Dormi. Dormi o sono de quem ama.

2 comentários:

Dany Lynn disse...

Sempre quis ser Clarisse...colocar a mochila nas costas e ir embora. Talvez teria o mesmo desfeicho dela, mas e dai???
Hoje sou uma Mariana com um vinho na mão amando alguem longe e morrendo aos poucos. Escutando bed of roses e chorando pq hj não está está chovendo e nem tenho nem o prazer de rir por não ter cumprido a promessa que havia feito em algum lugar: "Se chover de novo essa noite, eu juro que me mato."

Bjuss de alguem que te adora d+

Dany Lynn disse...

" ela morreu sozinha na sua casinha de bonecas, abarrotada de sonhos e vazia de vida"

fico relando e me vendo....