segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Retrato de família

Será que, se ele descobrir, há de me perdoar um dia? [gosto da idéia de começar a carta assim, parece-me um diálogo suspenso por um café, não por uma distância física assombrosa].
Quero dizer, você bem sabe do que estou falando. Meu doce Caio viajou e seu irmão maldito, o vilão Eduardo, já tomou conta do travesseiro. Ah, como sou horrível. Bem sei o que você vai dizer, como a irmã indulgente e adorável que és, mas não há salvação para mim. Sou um caso perdido. Que outra razão há de haver? Quem mais arriscaria um casamento perfeito por um prazerzinho carnal frívolo e tolo? Com o irmão de seu marido? Isso se aceitaria se fosse Caio o vilão, se me deixasse feito nau à deriva. Mas não. Meu marido tem cheiro de tranqüilidade, e haveria de ser meu bastião de serenidade, se eu não fosse quem verdadeiramente sou.
Vou tentar não me lamentar tanto. E definitivamente vou me concentrar em expulsar o vilão Eduardo da minha cama.
Por aqui chove todos os dias, dá pra acreditar nisso? E começa sempre às quatro da manhã. O que nos dá um amanhecer cinzento e nada agradável.
Minha cabeça pensa o que quer, coisa doentia. Pouco sono, muito café, muito cigarro. Se tudo der certo, morro antes que meu doce Caio descubra quem sou.

*

Não sou indulgente e adorável coisa nenhuma. Com que direito você faz isso com o Caio, Marília? Em nome de Deus, você é louca e merece o inferno.
Brincadeira.
Sabe o que eu acho? Você, com essa sua vida de cinema, não vai se acostumar nunca à idéia de estar casada, independente do marido maravilhoso que você tem. E olha que sua vida nem é só rotina assim. Quantos lugares e pessoas você já conheceu desde que se casou com ele?
Você ama seu marido. Pense nisso antes de enfiar o vilão Eduardo na sua cama, certo? Peço isso com especial carinho por Caio também. Não posso me privar de sentir o que sinto, mas se ele escolheu a ti, o mínimo que deves a mim é fazê-lo feliz.
Mas não falemos disso.
Por aqui as coisas vão bem, tudo dentro da normalidade. Passei o final de semana na praia com alguns amigos da redação, mas é muita loucura para o meu way of life. Tenho lido pouco, mas sem explicação de causa, é só preguiça mesmo. Volto a trabalhar na semana que vem, quem sabe revisar aquelas porcarias que esses jornalistas escrevem me estimule a procurar melhor leitura.
Achei que não agüentava mais a faculdade. Agora tenho certeza que, mais um mês naquela redação, eu enlouqueço definitivamente.
Mamãe te manda um beijo. Nada disse a ela sobre as tuas peripécias sexuais, papai não volta do interior nem tão cedo, algo de grandioso está para acontecer.
E quanto a isso de morrer, eu conto ao Caio sobre você e Eduardo logo após o enterro. Pense nisso. Ódio em vida a gente resolve, talvez consiga absolvição. Agora ódio em morte eu não sei não...

*

[Arrepios.]
Quão malvada você é! Mas eu bem entendi tua mensagem, sempre cifrada, coisa de escritor. Vocês são mesmo uns bestas.
Você não sente, às vezes, que pregamos uma peça no destino [ou ele na gente] e talvez por isso as coisas todas sejam tão confusas? Digo, qualquer um que nos conheça pode afirmar, categoricamente, que vivemos uma a vida da outra. Você sempre foi o orgulho da família. Estudou a vida inteira, foi editora-chefa do jornal da faculdade e só amou um cara na vida (que por acaso é o meu marido). Mas quem é a casada-servidora-pública-classe-média sou eu. Eu me casei antes dos trinta, eu tenho o trabalho chato e eu comando a casa. Ironia. Absurda. Enquanto você passa finais de semana regados a álcool e drogas com os intelectuais interessantíssimos do jornal. E quantos livros você vai publicar? Quantas vidas de outras pessoas você vai forjar com teus personagens? E eu sempre achei que os escritores findam por morrerem sós, com um temível medo terrível e absurdo da morte em si. Mas não te assustes com isso. É a vida que eu sempre quis pra mim.
Ah, eu definitivamente expulsei o vilão Eduardo da minha cama.
Penso que há uma dor silenciosa em viver. Não sei bem o porquê, sequer encontro o contexto da afirmação. Mas penso isso sim. E sem dor, o que é curioso.
Vai, Michele, viver tua vida empolgante. Vai enquanto eu descasco as batatas para o jantar.
O doce Caio volta de viagem amanhã. Prometo que vou cuidar melhor da preciosidade que te tomei.

*

A cúpula da insanidade perpassou essa casa e causou um estrago que faria inveja a qualquer furacão da América Central. Nem o Papa tem poderes para exorcizar as gargalhadas que Satã tem dado às custas da nossa família.
Papai voltou do interior e finalmente pediu o divórcio. Felicitações, bravos e tudo o mais, passamos os últimos dez anos esperando por isso. Mas a mamãe ainda tinha alguma esperança, pobre mulher. Quebrou a casa toda, atirou a prataria histórica na cabeça do pobre homem, que está a salvo em um hotel no centro. Não tem graça nenhuma nisso, e a dor silenciosa de viver grita histérica pela casa. Sei que não parece agradável, mas o que acha de uma visita?
Quanto a tua última carta, pensei muito nela. Não quero sentir ódio ou inveja de ti, afinal você é minha irmã, e é a única que tenho. Mas não me faça acreditar que eu merecia a sua vida, seu marido, seu trabalho, sua casa. Talvez eu fosse mesmo a melhor opção para o Caio, mas o que fazer disso? Não vou tomá-lo de ti, ou esperar que você meta os pés pelas mãos. Há algo em ti que o encantou e não posso lutar com isso. E chego a crer que esse encantamento reside justamente no fato de sermos tão diferentes uma da outra. E seria justo, sensato e delicado da sua parte não me lembrar disso todo o tempo. Não vivo a vida que quero, mas certamente não quero a sua. Afinal, juventude de drogas e roquenrou, aliada à infidelidade com o cunhado não é lá meu estilo.
Amo-te, Marília, sobremaneira. E Caio também. Reclama menos e valoriza mais, não deve ser assim tão difícil.
Mamãe te espera, desesperada.

*

__ Quanta hostilidade na tua última carta.
__ Não começa, Marília. Ninguém aqui precisa do teu jogo.
__ Eu sei. Desculpe.
__ Já esteve com mamãe?
__ Ah, sim. E não me sobra energia para mais nada. Quando você vai para Brasília?
__ Não vou mais. Não posso deixá-la sozinha. É uma grande oportunidade, mas vou ter de esperar pela próxima.
__ Vai tranqüila. Eu fico com ela.
__ E Caio?
__ Ah...acho que Caio não vai se importar se eu não voltar. Não depois da conversa que tivemos.
__ E como devo entender isso?
__ Da maneira correta. Meu casamento acabou.
...
__ Até que demorou muito.
__ Pro inferno, Michele. Vai pro inferno.
__ Dá cá um abraço, criança. Não se morre dessas coisas.

*

Caio não reconsiderou, o que eu já esperava. Agora a vilã Marília pensa em voltar à faculdade, passar um tempo com papai no interior e, quem sabe até, rever o vilão Eduardo. Deus sabe que tipo de resoluções sou capaz de tomar.
Mamãe vai bem, acho que seis meses é tempo suficiente pra começar a aceitar certas coisas tão óbvias. Ela até faz piada com a situação, vê bem: uma divorciada com trinta anos de casamento e outra com três. Formamos uma boa dupla.
Há tempos não recebemos suas cartas. Sei que Brasília te tira vida. Como se sente? Ainda respira?

*

Vilã Marília?
[Risos gargalhantes].
O trabalho me tira vida, mas é exatamente o que eu esperava. A cidade é linda e quente, gosto demais disso. Achei que fosse derreter sem praia, mas nem sinto falta.
O vilão Eduardo está no exterior, não soube? Foi torrar a herança familiar na Europa. Pelo menos ele tem charme.
E já que o assunto é família, o doce Caio vem à Brasília com certa freqüência. Parece-me bem, com saúde, trabalhando bastante. Mesmo sendo jornalista da concorrente, ainda conseguimos almoçar juntos sem maiores problemas de vez em quando.
[Suspiro].
Talvez nenhum de nós esteja pronto pra isso.

*

Eis que me vejo no centro de tudo. E não há ninguém ao redor.
Papai se mudou em definitivo para o interior. Mamãe foi visitar parentes em Minas.
Eu tinha um marido, que tomei de minha irmã, que está prestes a tomá-lo de volta.
Eu tinha um amante, que a essa hora deve estar em meio a uma orgia com algumas francesinhas lascivas.
Meus amigos dos tempos da faculdade sumiram, casaram, esqueceram...enfim.
Vê bem, em carta anterior disse que meu sonho era morrer sozinha. Mas é difícil ter certeza disso agora, sozinha de fato. Não sei por que me mudei pra São Paulo, ela não me é acolhedora em nenhum sentido. Acho que volto pro Rio.
Sei que existe dor em viver. Mas ela não silencia mais. Do contrário, grita enlouquecida pelas lacunas do peito.
Ama o Caio como não amei, e o faz feliz como não o fiz. Eu sei que você pode isso. E sei que estamos todos prontos pra isso também.
Preciso de gente por perto, Michele. Viver só comigo não é a melhor coisa do mundo.
Ah, tia Mariana esteve por aqui dia desses, e fomos à igreja. Sou pouco religiosa. Vi logo que entrei lá. Não sabia da missa a metade. E não pense que dormi de babar. Ouvi tudo o que o padre disse. E tive de tomar um porre depois, pra ver se o desejo de morrer passava.

*
Você disse certa vez que há uma dor silenciosa em viver. É possível que sim. Assim como é possível que haja um prazer inescrutável em sofrer. E penso, querendo estar errada, que você se apega a esse sofrer para que possa sentir essa dor, e concomitantemente, sentir sua própria vida jorrando pelos poros.
Preciso dizer que isso é desnecessário, minha amada irmã? Preciso lembrar a ti que a vida é feita de escolhas, e a única coisa que há de nos restar dela é o usufruto da memória? Espero que não, afinal é o teu discurso, e odeio imaginar tanta inteligência perdida em meio a questionamentos vãos.
Certo, ambas teríamos de concordar que tua vida não tem o céu azul de antes. Mas, apesar de me doer, tenho de dizer: você nublou seu céu. Lembre-se que a vida não faz escolhas por nós.
Esqueça o vilão Eduardo, esqueça a paranóia da mamãe, esqueça a tentativa risível de papai de se tornar um eremita. Volte a se permitir, Marília. Viaje, conheça, conquiste. Depois esqueça, se assim lhe for conveniente. Mas não se prive. Não quero te ver assim engasgada, cara amiga.
E quanto ao doce Caio, deixou um gosto amargo na boca. Preciso urgentemente variar meu paladar.

*

Eis que então Michele há de ser tia? E uma tia fantástica, suponho.
Vilão Eduardo e eu chegamos há pouco de Paris, ele prepara o chá enquanto aqueço a água do banho no inverno londrino. Pois que há muito charme nisso, vê bem: quantas pessoas atravessam o oceano para recuperar um amor que se julgava perdido? Quem recomeça uma história de amor em Paris? Digo recomeçar com uma energia nova no peito, pois já havia um romance. Era só o alvo errado para a pessoa errada. E agradeço a ti e ao doce Caio por isso.
O adorado Eduardo (vê? Até rima!) te manda abraços calorosos. Esteja certa, nossos dias de vilania estão prestes a findar.

*
Pois que há magia em viver. Agradável certeza.
Publico meu livro em dois meses, então volto à casa maternal. Caio não vem mesmo, e nada mais me dói. Aceito a condição. Certa feita você disse que escritores findam por morrerem sozinhos, com medo da morte.
Não é isso. É amor à vida.
Tanto clichê. Quando foi que nos tornamos assim?
Bem, que assim seja. Há uma motivação nova em cada respirar do universo, por isso abro as janelas em par todas as manhãs.
Vai, Marília, viver tua vida empolgante. Pode deixar que eu passo o café.

3 comentários:

Dany Lynn disse...

Espero um dia ter o belo fim de marilia. Espero econtrar o falso vilão que ira fazer-me sorrir todos os dias em uma manha não londrina, mas real.

Dany Lynn disse...

linda...a mais feridas que eu pensava existir.
isso é terrivel.
Sinto-me um lixo.
Queria vc aqui. Queria um abraço.
te amo

Dany Lynn disse...

linda....nao tem problema...qdo tiver tempo vc lê o eu post.
Sim o texto é meu, apenas com pseudos nomes...é o irreala com pitadas de real (as vezes é o contrario) lembra??

bjusss