quarta-feira, 27 de junho de 2007

Poética cotidiana

Eles eram assim, no fim. Meio tortos, meio turvos. Nunca estavam verdadeiramente felizes e sempre achavam que a vida podia ser um pouco pior do que era. Mas também sabiam que pertenciam um ao outro de alguma forma, uma forma completamente inexplicável e talvez até sem sentido algum. Porque ora se amavam, ora se odiavam. Porque machucavam um ao outro deliberadamente, mas nada substituía o gosto bom que um deixava na boca do outro. Ficavam juntos poucas vezes, mas sempre de maneira completa e intensa, como havia de ser, porque cada minuto que estavam juntos havia de compensar os meses e até anos que sequer se falavam.

Chegaram a considerar a possibilidade remota de ficarem juntos em definitivo, mas foi logo descartada porque eles eram absurdamente diferentes. Ele queria se casar e morrer ao lado da mulher da sua vida - ela. Ela queria ser livre e se permitir a tudo, mesmo amando a um único homem - ele. Ele queria filhos e cachorro e dívidas, o pacote completo do casamento. Ela queria "barulho, bebedeira e todo o mal"*. Eram assim, diametralmente opostos, mas ainda assim se sabiam parte um do outro. Eram doentes e só um entendia o outro, só um sentia a dor do outro, mas dificilmente se ajudavam porque estavam sempre a trocar farpas relacionadas à própria situação em que viviam.

Certa feita ela disse a ele que a única possibilidade de continuarem na vida um do outro era essa: não estar de fato. Não ser um casal, não tentar negar o que era assim tão óbvio, porque eles não funcionavam enquanto estavam juntos. Ele concordou e decidiram seguir suas vidas, do jeito que tivesse de ser, sem maiores preocupações por saberem que cedo ou tarde voltariam um para o outro.

E assim foi, durante muito tempo. Foram realmente felizes assim. Até o dia em que ele, no auge de seus cinquenta e sete anos de idade, a pediu em casamento. E ela, no auge dos seus cinquenta e quatro, negou. Achou digno. E foi daí que ele a matou.

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*Loucura - Anais Nin

2 comentários:

Unknown disse...

PUTAQUEPARIU!!! PERFEEEEEEEITO!!!

Carolhos, esse livro promete!
HAHAHAHAHAHAHAAHHA...

Unknown disse...

Sehr gut!!!