__ Camila, o que eu faço com essa caixa?
Olhei de viés para o Guilherme, tentando equilibrar mais de trinta pratos na mão.
__ Que caixa?
__ Essa. Tem seu nome.
Deixei os pratos no balcão da cozinha e abri a caixa. Havia anos, muitos anos que eu não mexia naquelas coisas. Cheirava a passado mal-resolvido, a feridantiga (como diz o Caio Fernando). Estreitei os olhos e senti o pesar atravessar meu peito.
__ Eu me viro com essa. Pode deixar.
Subi as escadas rapidamente, trancando a porta atrás de mim. Guilherme não fazia parte daquela outra vida e não fazia sentido, não tinha porquê eu participar a ele o que me ocorrera há tantos anos, ele não entenderia. A primeira coisa que tirei da caixa foi uma foto. Uma foto já amarelada pelo tempo, dobrada nas pontas, envelhecida e cansada como eu. A única foto da trupe.
Foi há mais de vinte anos. Eu tinha apenas treze e fugi de casa, com um namoradinho da época que me prometera uma vida bonita e livre. Fomos parar no interior paulista, onde nos encontramos com alguns de seus amigos, e seguimos com um grupo de teatro e circo que atuava nas ruas das cidades interioranas, passando a mensagem de liberdade e beleza verdadeiras. Era muito poético no início. Mas eu tinha mais medo que qualquer outra coisa à época, e um dia decidi voltar pra casa e encarar a tirania dos meus pais no conforto do meu quarto aquecido e das três refeições diárias e regulares. Passei anos evitando me lembrar daquele tempo pra não me sentir muito covarde, e tinha conseguido, até aquela caixa renascer das cinzas. Eu devia tê-la jogado fora, eu me dizia agora, tardiamente.
Reconheci Clarisse de imediato. Minha Clarisse, minha melhor amiga daqueles meses infernais. Passávamos a noite a falar de tudo que nos vinha, de todos os medos, de todas as vivências, de todas as perdas, das pequenas conquistas...ela já estava longe de casa há anos, já tinha se apaixonado, já tinha desapaixonado, feito um aborto, enfim. Ela tinha vida. Eu tinha apenas a imitação da vida que eu queria pra mim, apoiada num discurso frágil de liberdade que no fundo eu não queria. Clarisse foi meu porto seguro, acima de tudo, e bem mais que meu namoradinho. Ela me roubava sorrisos e enxugava lágrimas. E me encorajou a voltar e assumir a condição, quando disse a ela que não mais podia com aquilo.
Ainda trocamos cartas por um tempo, até que elas pararam de chegar, de repente. Nunca soube o que havia sido feito de Clarisse, e julguei que tivesse me esquecido ou coisa que o valha, porque o meu namoradinho me esqueceu, e meus outros amigos me esqueceram. E por fim eu esqueci, e conheci Guilherme, e vivia agora uma vida que nunca quis, mas que me satisfazia porque eu me enganava.
Remexi um pouco mais na caixa e encontrei as cartas que ela me mandava, todas elas. Ouvi Guilherme gritar com Pablo no andar de baixo, ele não era um pai muito paciente, sorri sem querer sorrir. Reli carta por carta e chorei em todas elas. E a dor da feridantiga foi crescendo, a cada letra, a cada lágrima. A última carta era infelicíssima. Clarisse tinha conhecido esse Valter e abandonara o grupo pra ficar com ele, julgando ter encontrado o amor que tanto buscava. É claro que não era nada daquilo, nunca é de verdade, nunca é nada. Sei que ela não estava bem, queria voltar pra casa, pela primeira vez em muitos anos ela considerava a possibilidade de voltar pra casa, mas não sabia como seria. A mãe dela, pelo que contava, era um verdadeiro pesadelo. Tinha o pai, a quem ela amava verdadeiramente, mas não entendia. Tinha o irmão, namorado da melhor amiga dela. E tinha essa melhor amiga, Mariana, que devia ter fugido com ela mas nunca pôde, ou nunca quis. Mariana era a única coisa que estimulava Clarisse a voltar, mas ela não aceitava a volta, não aceitava o erro. Terminou a carta dizendo que me abraçava apertado e daria um jeito de me ver na capital em breve. E sumiu.
Dei algumas voltas pelo quarto, a cabeça trabalhando rápido, o coração fervendo. Tentei imaginar Clarisse mais velha e criando filhos, como eu, mas não dava, a imagem dela jovem e livre estava grudada na minha memória. E a dor de feridantiga atingiu seu ápice. Eu sabia o que devia fazer.
Três dias depois eu estava em frente à casa de Clarisse. Nem podia acreditar que atravessei metade do país praquilo, mas lá estava. Bati à porta e um senhor me atendeu, um homem velho-novo, se é que me entende.
__ Boa tarde. Geraldo?
__ Em que posso ajudá-la, senhora?
__ Sou...quero dizer, fui. Fui amiga de sua filha, a Clarisse.
O olhar dele fugiu, ele não conseguiu me encarar.
__ Minha filha morreu há muitos anos.
__ Eu sei. E sinto muito por isso. Mas eu queria falar com a Mariana. A melhor amiga dela. O sr. sabe onde posso encontrá-la?
__ Deve estar em casa. Atravesse a pista.
Ele apontou para a casa em frente e fechou a porta, sem me dar oportunidade de dizer mais nada. Idéia estúpida, pensei logo. O que diabos eu diria para a Mariana? "Oi, fui amiga da Clarisse, vim só dar um alô?"
Atravessei a pista ainda em dúvida. O quintal da casa estava atulhado de brinquedos e um cachorro latiu quando eu me dirigi até a porta. Toquei a campainha e a porta se abriu quase que instantaneamente.
__ Oi, moça.
__ Oi. Sua mãe está?
__ Está. Vou chamar.
A criança que me atendeu correu até o interior da casa. Logo depois Mariana estava diante de mim. Eu tentava a todo custo não chorar.
__ Desculpe incomodá-la. Fui amiga de Clarisse. Meu nome é Camila.
Ela sorriu de maneira tão sincera que me senti em casa.
__ Por favor, entre. Clarisse falava muito de você nas cartas. Sempre com muito carinho.
__ Era o mesmo com você.
__ Ah. Ela faz falta. Todos os dias. Venha, venha até a cozinha, estou ajudando essa criança a preparar biscoitos.
__ Seu filho é lindo.
__ Obrigada. Mas não se parece nada comigo. É a cara do Caíque.
__ O irmão da Clarisse?
__ Esse mesmo. Está trabalhando, não deve demorar a chegar.
Conversamos amenidades por duas horas, aproximadamente. Filhos, casamento, carreira, as vidas que decidimos seguir. Mas ao contrário de mim, Mariana parecia feliz. E eu a invejei por isso, e disse isso a ela. Quando Caíque chegou, criança e cachorro fizeram festa e eles se ocuparam para me deixar à vontade com Mariana.
__ Sabe...há uns dias, quando revi as cartas e as fotos, senti tanta dor...eu vivo uma mentira. Não sou feliz. E meu marido sabe disso, e meu filho vai ser vítima disso, cedo ou tarde.
Mariana sorriu, condescendente.
__ Eu passei muitos anos invejando a Clarisse. Sério. Me sentia mal por não ter tido coragem de fugir com ela, me sentia mal por namorar o irmão que ela tanto detestava, me sentia mal por ter seguido com minha vidinha enquanto ela estava acelerando o processo natural das coisas. Até aceitar que eu era completamente diferente dela. Nem melhor nem pior. Só diferente. Sinto falta da minha amiga todos os dias, e ainda hoje não há quem a substitua. Mas o fim que ela teve foi tão indigno de quem ela era, que me fez questionar se também era isso que eu queria.
Eu já chorava.
__ Ainda dá vontade de fugir, às vezes. Minha vida não é esse comercial de margarina light que parece. A vida de ninguém é. Mas eu sou feliz. Caíque me faz feliz, meu filho me faz feliz, meu cachorro, meu trabalho, os poucos e valorosos amigos. E quando sinto tudo excessivo, entro no quarto e respiro no saco. É sério! Respiro no saco e fica tudo bem.
__ E o que eu faço? Respiro no saco também?
__ Há ungüento para toda dor, Camila. Encontre o seu.
Conversamos mais um pouco, até a noite. Tive de pedir desculpas, tinha que voltar pra casa, ela me convidou pra pernoitar, disse educadamente que não, precisava me resolver com meu peito. Dirigi a esmo até a cidade seguinte mas não dormi, não conseguia parar, eu estava prestes a enlouquecer. O celular estava desligado desde que saí de casa, três dias atrás, e eu o mantive assim enquanto dirigia, sozinha no carro, Chet Baker me tocando como poucas coisas na vida tocavam.
Mais três dias de estrada e voltei pra casa. Guilherme estava à beira de um infarto, coitado, senti tanta pena dele por ter dedicado os últimos anos pra um casamento de farsa que era o nosso...mas ainda me via sem coragem pra nada. Abracei meu filho como se pudesse transmitir naquele abraço todo o meu amor e, ao mesmo tempo, me desculpar. Abracei meu esposo com a frieza de quem se despede, com a sobriedade de quem tomou a decisão mais importante da vida. E então disse adeus.
Chet Baker ainda tocava no som do carro. Não sabia pra onde ir. Apenas ia. Apenas fui.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008
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